Uma peça de teatro. Ou seria mais uma dramatização de
pequenos detalhes de minha própria vida que encenava? Sei que atrás
das cortinas, que separavam o público dos atores, lá estava meu
espírito entregue à mais um devaneio. Apesar de já ter
superado a maioridade cívica algumas décadas atrás , ainda
persistia na atividade lúdica. O sonho que me acompanhava desde a infância
ainda era o mesmo. Talvez o cenário estivesse sido alterado. Mas o que
mudou mesmo foi apenas o enredo do meu ponto de vista.
Cresci e aquilo que me causava medo no início de minha caminhada agora
era a cereja do bolo que dividiria dom a plateia. Mesmo assim ainda existiam
conflitos interiores que nunca me abandonavam. O enredo,é verdade, às
vezes mudava. Principalmente conforme a idade passava. Dramas, tragédias,
comédias. Às vezes com um tom mais realista, outras tantas de
cunho romântico. Muitas vezes de um expressionismo que me levava a criar
outros mundos, onde, inclusive, me refugiava nas noites chuvosas. Ou mesmo naqueles
dias que o céu amanhecia nublado.
Segundo Ato.
A perspectiva da existência de Deus não me preocupava mais. Talvez
pelo fato da metáfora ser algo constante em minha vida. Uma ferramenta
de trabalho. A minha foice. O meu martelo. O súor do meu rosto. Entendia
perfeitamente o que era a Fé. Ou, valendo-se da dubiedade, meu entendimento
sobre esta questão metafísica me aproximava de um ponto pacífico.
Em todo caso ainda não compreendia o patrão, a mais valia e a
opressão do, aparentemente, mais forte sob o, frequentemente, mais fraco.
No entanto, a casa estava cheia. Bom sinal.
Não arrisquei passar perto da bilheteria, como também evitei dialogar
com quem quer que fosse. Poderia verbalizar esta emoção como sendo
uma típica ansiedade antes da estreia de uma peça. Foi
então que meus passos me encaminharam para um camarim que julgava vago.
Em um determinado momento na peça haveria um poema que desencadearia
uma série de reviravoltas, mudando toda a concepção do
espetáculo para cada um das personagens em cena.Mas aquele papel essencial
na trama estaria à cargo de alguém que surgiria somente para recitar
o crucial momento dramático. Por isso mesmo não sabia ao certo
quem o interpretaria. Um ator? Uma atriz? deixei esta incumbência para
o diretor da peça. havia concebido a possibilidade se ser um anjo.
A porta estava entreaberta e fui adentrando como uma animal perseguido por caçadores
e que se vê diante do seu esconderijo. Deslizei sutilmente para o que
seria meu aconchego. No entanto, para minha surpresa e espanto presenciei a
beleza de um corpo nú. Uma legítima estátua grega. A Vênus
de Milo na sua forma humana. Talvez estivesse tendo um colapso e tivesse sido
cometido por uma alucinação de Michelangelo.
Ao mesmo tempo, por instinto, senti uma certa excitação de ordem
física. Aquilo ou aquela visão visão ou a possibilidade
que essa mesma visão me proporcionava mexeu não só com
minha mente, mas também com a carne. Ela estava de costas e diante um
espelho. Pelo reflexo percebi que sentiu minha presença. Notei seu olhar
que ainda tentou se comunicar. Mas, ainda não refeito do susto, sai dali
em busca de outro ambiente para acalmar meus sentidos. não sabia ao certo
o que havia visto. Apesar da penumbra e da distância imaginei ver a nudez
que não se revelava como algo a ser apreciado. enfim, fiquei confuso.
Ato Final.
Lembrei da sala de espera do aeroporto. O voo estava atrasado. Mas este não
era o motivo de minha aflição. Pensava nos negócios. Será
que desta vez tudo daria certo? Como se não bastasse meus próprios
dramas pessoais. Ainda havia mais este. No celular haviam nove chamadas perdidas.
Provavelmente a gerente do banco oferecendo um novo empréstimo para quitar
minhas dívidas. se fechasse aquele contrato tudo estaria resolvido.
Mal conseguia concentrar meus olhos na leitura que fingia fazer daquele artefato
literário que estava entre minhas mãos. Toda essa angústia
me acompanhou durante este intercurso. A aeromoça foi simpática
e cordialmente aceitei o drink oferecido. baixou um pouco a pressão.
Então, naquele instante, pensei ter sido tocado por uma musa. Dríade,
a ninfa dos bosques e florestas. Olhei pela janela do avião e vi um rosto
feminino que sorriu.
Aliás, era o mesmo sorriso que se desenhou junto com o olhar que vi refletido
no espelho instantes antes. Tudo correu bem. As cortinas não foram uma
fortaleza instransponível para a plateia que aplaudia ao fim da
encenação. Alívio. Logo mais fomos todos , da trupe teatral,
comemorar em uma cantina toda a receptividade e acolhida do público.
Ao degustar mais uma taça de vinho pude observá-la melhor.
Ela era linda. Apesar de distante. Confesso que estava hesitante. Mas ela toda
deslumbrante. O sorriso era demasiadamente cativante. Busquei uma aproximação.
Fixei o olhar na intenção de capturar sua atenção.
Queria que seus olhos pousassem nos meus. Então, foi por pura intuição
que notei suas asas.
Por um momento quis gritar. Pensei em apontar o dedo e revelar a presença
celestial entre nós pobres mortais. Mas um sopro de vida conteve meu
impulso. Não tinha a intenção de servir como ferramenta
para o mal. O desconhecido, às vezes assusta, e o fascínio, outras
tantas, pode colaborar para a idolatria insana que beira a fronteira entre o
bem e o maligno. Refleti que talvez devesse mesmo esconder suas asas para não
ser despedaçada. Meus olhos se encheram de lágrimas que não
deram ao luxo de se derramar.
"Deixa estar como está, pois assim nos convém cumprir toda
a justiça"