A Garganta da Serpente
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Noite Sinistra

(Carlos Pompeu)

Já era mais de meia noite e no corredor que levava a ante sala do estúdio estava vazio. Uma barata agonizava com as patas para o ar. Se alguém estivesse ali talvez sentisse nojo daquele inseto. No prédio, onde funcionava a rádio, não havia quase ninguém. O programa que estava no ar era o Noticiário Noturno. Era feito ao vivo. Por isso, havia a necessidade que alguém redigisse algum texto se fosse preciso. Uma notícia de última hora por exemplo. Para dar a ideia de que o programa estava acontecendo naquele instante. Esse alguém era Blanche.

Blanche Richards era o seu nome. Escrevia textos sob encomenda. Trabalhava como ghost writer. A pessoa que pagava pelos seus serviços sempre assinava. Isso acabou virando sua fonte de renda. O mágico Houdini utilizou os serviços de ghost writer de H.P. Lovecraft. Ela não tinha o que reclamar dos valores recebidos. Tinha o hábito de vagar pela rádio durante as madrugadas. Assim, se alguém estivesse precisando de uma mensagem sabia onde poderia a encontrar.

Às vezes o locutor escalado para aquela jornada nem chegava a vê-la. Entrava no estúdio e por lá ficava até a hora de ir embora. Tinha água e uma garrafa térmica contendo café. Após o noticiário noturno entrava um programa gravado. Era do Padre Doveque. Tinha uma boa audiência. O padre havia ficado famoso por ter participado de um reality show quando ainda era seminarista. Sua participação despertou a atenção da mídia. Ganhou o prêmio e levou a fama. Anos depois, já ordenado padre, chegou a gravar um disco com músicas de louvor. Isso manteve os holofotes acesos. Mas, atualmente, tem atuado em outra área. O seu programa era um reflexo imediato de sua nova atividade. Padre Doveque praticava exorcismo.

Teve um caso que ficou famoso. Foi até televisionado. Altos indíces de audiência. Uma criança, especificamente uma menina, havia sido possuída por espíritos do mal. Devandra era o seu nome. Ele conseguiu expulsá-los e a população foi ao delírio. Durante o programa isto sempre era lembrado subliminarmente. Blanche deixou a rádio antes que o programa se iniciasse. Algo havia chamado sua atenção pela janela. A visão que tinha era de um cemitério. Percebeu uma movimentação de vultos. O ar condicionado ligado impedia que identificasse qualquer tipo de som. Aquilo despertou sua curiosidade. Resolveu conferir.

Vestiu sua capa preta, uma espécie de sobretudo com capuz, e se encaminhou naquela direção. Chegando lá percebeu que alguma coisa havia acontecido. O portão estava aberto. Entrou. Não havia ninguém na guarita. Havia um zumbido de um radinho de pilha. Alguém estivera ali. O vento soprava forte e fazia barulho. Ela caminhou por entre os túmulos e se deparou com um pé de botina. Deveria pertencer a um daqueles vultos que havia observado da janela da rádio. Continuou em frente. Logo percebeu do que se tratava. Eram ladrões de túmulos. Violadores de sepulturas. Um bando de canalhas e cretinos. Mas algo havia os assustados. O que poderia ter acontecido?
"Isto só pode ser coisa do sobrenatural"... foi isso que ouviu ao voltar até a guarita. Era a voz do Padre Doveque. A frequência diminuiu e a pequena caixinha de plástico começou a chiar novamente. Então, outro barulho ganhou destaque. Era o portão que estava rangendo com a ação do vento. Mas ela não teve tempo para ficar pensando nisso. Seguiu seus instintos. Alguma coisa lhe dizia para tirar isto a limpo. Foi o que fez.

Respirou fundo e apertou o passo. A noite escura não parecia intimidar seu ímpeto. Seguiu em passos firmes e seguros pelas sombras. A imagem de Harry Houdini veio a sua cabeça. Ele costumava desmascarar aqueles que diziam ter poderes paranormais. Ele se infiltrava em sessões mediúnicas e identificava os truques utilizados para ludibriar os mais incautos. Talvez por isso acabou sendo calado. Mas a perspectiva da morte não a abalava. Ela sentia que algo estava tentando revelar um sinal.

"Será que tudo isso tem um significado? Alguma coisa em comum?". Enquanto caminhava a passos rápidos questionava. O sumiço de Bernardo Belisário, o investidor, aconteceu após um casamento celebrado pelo Padre Doveque. Na noite anterior a igreja dele havia sido, literalmente, saqueada. "Haveria alguma ligação?". Foi então que se assustou com uma coruja que passou voando ao seu lado. Estava absorvida naquele pensamento. Não havia nenhuma evidência plausível de que os ladrões de arte sacra fossem aqueles assustados vultos do cemitério. Mas de alguma forma estava associando estas possibilidades.

As ruas estavam desertas. Naquela hora os semáforos não ficavam nem vermelho nem verde. Apenas piscavam a luz amarela. Mas isto também não chamava sua atenção. Esta estava canalizada em uma única direção. Um mistério a absorvia e a escuridão era sua cúmplice. Aumentou a velocidade dos seu passos. Após alguns minutos neste ritmo pode perceber uma espécie de vulto se movendo. Não parecia ser alguém assustado. O movimento era mais cadenciado.
Ou seja, não demonstrava estar afobado. Parecia relutante. Enfim, sua intuição estava correta.

Pensou em correr. Possivelmente sua correria não surtiria efeito. Poderia se fazer notar por aquele vulto distante. Não era essa sua intenção. Preferiu continuar no mesmo ritmo. Viu que o vulto praticamente se arrastava. Assim, estava se aproximando cada vez mais sem chamar atenção. Era como se sentisse a sensação do dever cumprido. Se desligou do mundo ao seu redor. Não se tocou que ainda estava sendo observada pela coruja. Estava mais preocupada com outra criatura da noite.

O vento assobiava uma canção gótica. Essa poderia ser uma licença poética para se referir ao barulho que a ventania provocava. Blanche seguia em passos firmes. Por um instante pensou tratar-se de um morador de rua, um mendigo em busca de abrigo em meio àquela noite sinistra. Talvez, pelo fato de o vulto estar mais próximo do seu campo de visão. Suas vestes aparentavam estar sujas como se fosse um maltrapilho. A sua curiosidade ficou mais aguçada. Tentou controlar a ansiedade. Não queria especular com a imaginação. Tinha que passar isto a limpo. Foi então que recebeu o sinal.

Um pequeno papel foi levado em direção ao seu rosto. Instintivamente levou a mão até a altura da cabeça para se desviar do que se revelou ser um flyer, um panfleto de divulgação de um show de uma banda de rock. Era uma espécie de xerox e em preto e branco se destacava o nome "Noite Macabra". Apesar das letras estarem estilizadas conseguiu fazer a leitura, assim como conseguiu identificar o local da apresentação como sendo Limbo. Segundo aquelas informações o horário do evento estava marcado para a meia noite.

Aquilo tudo começava a fazer sentido. Não sabia ainda o que isto significava. Mas havia encontrado a chave para desvendar o mistério. Entretanto, o vulto havia saído do seu campo de visão. Desapareceu. Mas ela sabia para onde teria ido. Tudo indicava que estava próxima do lugar que estava acontecendo a apresentação. Era como se tivesse visto com seus próprios olhos o suposto vulto entrando lá. Foi com esta certeza que seguiu em frente. Todavia, se descuidou um pouco e baixou a guarda. Então, tomou um grande susto ao se deparar com um homem que quase passou por cima dela. Não chegou a esbarrar. Mas apareceu de surpresa. Não havia enviado nenhum aviso. Se esquivava pela noite como uma assombração.

Além de tudo era um sujeito grosso. Nem se desculpou. Aparentemente nem se importou ou chegou a perceber sua presença. Foi essa a impressão que Melquíades causou. Realmente, ele parecia estar apressado. Então, um portão foi aberto e ele entrou no Limbo. Blanche se refez do susto e agora sabia onde aquele vulto, que ela seguiu do cemitério, havia entrado. Foi então que ao invés de ter saciado sua curiosidade ficou ainda mais intrigada. Havia algo de estranho com aquele sujeito com o qual havia quase esbarrado. Ele parecia estar sangrando. E aquele não era o lugar ideal para se ir quando estamos sangrando. Foi isso que ela pensou ao ver uma poça de sangue no chão.

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