Trouxeram rendas, cristais, pratarias, móveis de madeira brasileira,
roupas de pompas, retratos, cartas de apresentação, discos de
Amália Rodrigues, quilos e quilos de pistache, um Camões, um Pessoa
e um estandarte do Futebol Clube do Porto.
Joaquim conhecera e galanteara Manoela num ginasial da cidade do Porto. E fora
conquistado pelo jeitoso bailar da moçoila durante as apresentações
folclóricas, nas festividades do colégio. No enlace inicial, o
astuto havia prometido fazer-lhe artista dos altos musicais. Assim:
- Quero-te estrela a brilhar para mim... - e com olhar atrevido, arrancou suspiros
de Manoela.
Com o passar dos tempos, o sonho de ambos se perdeu. Ela descartou primeiro
e ele desistiu de relutar com a engorda dela.
Houve uma boda, uma gravidez e um parto, mas não houve criança
na casa por muito tempo. Pneumonia, segundo a medicina. O trauma também
comprometeu futuras concepções da esposa; fatos que nem ancestrais
ou verdadeiros amigos souberam além do necessário.
Daí em diante, acostumaram-se a conviver com a amargura e com a dor,
que tornaram-se tantas a ponto de Joaquim elaborar e apresentar a Manoela seu
plano imigratório. Antes porém, herdaram a padaria do pai dela
e permaneceram junto ao balcão por mais de duas décadas; na batuta
e nos resquícios de Salazar, dizimando-lhes a fartura noutra dança.
Morar no Brasil, de simples anseio a princípio, transformara-se em obsessão
para Joaquim; e numa imensa fuga afetiva para Manoela, que vira: evaporar o
sonho artístico, morrer o filho antes de pronunciar-lhe o parentesco
e desfalecer o patrimônio.
Aportaram na Guanabara em meio a lutas sindicais e suposta anistia - ou abertura,
como se costumava dizer. Joaquim conheceu a inflação e investiu
o pouco que lhes sobrara na agiotagem. Fez o dinheiro crescer sozinho à
base de muito suor - na captura de seus devedores - e sacrifícios pessoais.
A conta era simples: Joaquim convertia em dólares na ocasião do
empréstimo, acrescia dez por cento e aquele tanto de moeda americana
quitava a dívida no dia pré-determinado; mais dez por cento de
juros de mora aos inadimplentes.
Moravam até então, numa cabeça de porco: quarto e banheiro
num imenso casarão do século dezoito, onde amontoavam-se mais
de vinte famílias - bairro da Glória. Enfim, Manoela alcançara
no nome do lugar, algo digno de seu bailado. Acalentaram-se no tropicalismo
carioca e prosperaram até que abriram seu panifício, na Rua do
Lavradio. Era o recomeço, depois dum horizonte inteiro.
Financiaram um dois quartos no Catete e compraram um usado à vista -
que os levava a São Januário e à Igreja da Penha.
No segundo aniversário do estabelecimento, já mantinham - mensalmente
- metade dum automóvel zero no caderno e forneciam pães, queijos
e doces para dezenas de refeitórios e restaurantes da região central.
O futuro prometia-lhes um condão e nem mesmo o sumiço da farinha
- debaixo dos olhos dos fiscais do Sarney, fizera-os estancar. O astuto Joaquim
jamais abandonara o crédito pessoal e muito se garantia com ele, entre
permutas e confiscos; tinha um fiel escudeiro, antes bancário, que comandava
suas cobranças com severa brutalidade, se preciso. Malandro algum se
atrevia.
Adotaram um órfão e deram-lhe o maior dos sentimentos, na tentativa
vã de estancar a dor, mas o tempo tratou de espelhar no adotivo, a tragédia
do herdeiro morto. A infelicidade era-lhes um dom, uma melancolia que - aos
poucos, abrasileirava-se na saudade d'além mar.
O filho formou-se adulto nas entrelinhas dos pais e na exposição
da rua como brinquedo. Formatou sua linguagem e, uma vez que criou pêlo,
decidiu desvincular-se do casal para seguir carreira de soldado - no morro.
Não tardou e Joaquim providenciou-lhe cova no São João
Batista. Mais dor, embora amenizada pela distância e pelas obscuras ou
derradeiras notícias do adotivo. Manoela dizia que a criança morta
era prenúncio de que não lhes era de bom grado proliferar.
Envelheceram cercados deste turbilhão de más recordações.
Passando dos setenta, Joaquim encontrava-se mergulhado na nostalgia juvenil
e nos imensos atropelos emocionais que a vida os conduzira. Qual a valia de
sua existência? Como determinara pífia existência a sua amada
Manoela? Qual coração seria tão egoísta a ponto
de apagar a estrela que o fazia bombar? Respondia-se com silêncio profundo
de olhos fundos.
Certo quinto dia útil, após pagar seus funcionários e baixar
a porta comercial, o lusitano entornou bons e cheios cálices de vinho
até findá-lo e seguiu na aguardente de cana, embriagando-se lá
e cá. Completamente alto, uma ideia o embaralhou. Precisava dar
holofotes à esposa. Torná-la notável virou sua nova obsessão.
Foi para casa neste redemoinho, cogitando de tudo um pouco: desde comprar-lhe
espaço na mídia até torná-la escritora famosa comprando
texto dalguma fracassada. Nada feito. Dormiu pesado, entre sonhos e pesadelos.
Manhã bem cedo, Joaquim tomou um comprimido e disse a Manoela que decretara
feriado na data e iriam à praia de Copacabana, aproveitar um dia disfarçado
de domingo. Manoela desgostou a princípio, mas o marido suplicou e ela
então acatou.
Bobearam na areia durante horas e, depois de meia-dúzia de caipiras,
Joaquim revelou-lhe seu plano de estrelato. Ela envergonhou-se de súbito,
porém, a vida toda fora convencida pelo marido e estava velha demais
para começar a discordar dele.
Dançaram uma valsa com os pés n'água e lançaram-se
ao mar. Beijaram-se sem pudor, afagaram-se, pegaram jacaré, riram à
toa e foram se despindo, até não lhes sobrar roupa alguma. Grampearam-se
numa pegada de minutos - ventres, línguas, membros; e nus, deixaram o
mar e atracaram-se na areia, num coito próprio de adolescentes afoitos
- escandalizado pelo intumescimento atemporal e farmacêutico de Joaquim.
Copacabana parou. Alguns riam, outros se escandalizavam. Aprovações
e reprovações. Palmas, urros, vivas, gargalhadas. A multidão
aglutinou-se para ver a trepada do casal. A seguir, veio a polícia, que
com o respeito devido aos anciãos, cobriu-os e removeu-os - de camburão
- à delegacia mais próxima. Ficharam o casal de primários
e liberaram-no, para uma vasta fatia da imprensa que o esperava à porta.
Entrevistas, participações especiais na TV, convites para revistas
e filmes pornográficos...
Atingiram enfim, toda a mídia, de modo inusitado e inovador. Com os cachês,
Manoela abriu e fechou sua companhia de dança, falida pelo zelo exacerbado
na criação dos filhos:
- Na escola da portuguesa profana? Nem pensar... - mães repetiam.
Joaquim viu dobrar o movimento da padaria, e perdeu a conta de quantas vezes
repetiu a história a outrem.
Quando, de abusado, o fato transformou-se em patético, recolheram seus
pertences e retornaram à cidade do Porto, para findar suas existências
e fincar-se - cada qual a seu tempo - acima do filho morto.