Assis era menino solto que tão logo aprendera a contar, a mãe
o incumbira da providência do pão e do remédio - além
doutras urgências. Faltava alho ou limão para o peixe(?), lá
ia o moleque; sabão(?), na hora! Para incentivá-lo na aritmética,
ela o premiava com um exemplar do menor dinheiro em papel toda vez que o troco
conferia; já as moedas eram introduzidas num baú diminuto, mantido
a cadeado e aberto todo dia dez do mês, para que as mesmas somassem a
outras tantas na caderneta de poupança. Do banco sairia o desfecho educacional
do garoto, quando este tivesse altura e discernimento para abarcar carreira
específica.
Desta maneira, Assis minuciou as ruas do centro do Rio, orbitando a esquina
da rua do Riachuelo com a Frei Caneca. Nas aventuras, alargava a elipse à
Central do Brasil, ao pé de Santa Teresa, aos Arcos da Lapa, ao Largo
da Carioca ou à Cinelândia. Para evitar o mau humor da mãe,
depois da sentida e desesperadora ausência, o filho recolhia flores em
canteiros e praças, presenteando-a e perfumando a casa.
Aos dez, era guia turístico pronto. Muitos vizinhos - alguns de avançada
vivência - socorriam-se do menino quando careciam de orientação
logística a endereços remotos - às vezes tanto, que nem
os catálogos identificavam. Assis era um competente direcionador. Muito
disso vinha do seu apego ao lugar onde nascera. Ali desejava viver para sempre(!);
por gosto, não obrigação.
Peculiaridade era que o moleque detestava acordar cedo. Ele constatara que a
pressa matutina, repleta de compromissos, não permitia conversas despreocupadas
- as quais viriam com o crepúsculo; e sua idiossincrasia era aprender
na rua - olhos e ouvido. Tinha anedotas na ponta da língua, ditos e crendices
em abundância.
Durante as férias escolares, não faltando nada na cozinha, pelas
manhãs o moleque só fazia dormir. Depois saracoteava nas voltas
da Praça da Cruz Vermelha. Bisbilhotava no Instituto Médico Legal,
no Hospital do Câncer e no Souza Aguiar. Quase sem razão, apenas
aquela curiosidade intensa que os humanos nutrem pela desgraça alheia.
Já no letivo, Assis despertava às seis, mas retardava o levantar
o quanto podia; até a mãe ameaçar-lhe a coça, ou
- de fato - numas suspendê-lo pela orelha, noutras alardeá-lo com
água fria. Não raras as vezes em que ela o carregava pelos embaraçados
cachos negros. Então, ele tomava um café com leite e engolia um
pão com manteiga, ainda tropicando de sono. Em seguida, pestanejaria
em sala de aula, quando muito.
Os anos passavam atropelados desta maneira, ou melhor, de qualquer maneira.
O garoto cabulava até não mais ter o direito de adoecer sem reprovar
por excesso de faltas. Astuto nas contas, invadira - desde muito cedo - a matemática
financeira. Bom(!), pois isto garantia sua assiduidade escolar - a mínima
permitida! - e a nunca ficar sem nenhum no bolso; deste modo, retribuiria a
educação à mãe, quando esta se esgotasse para o
trabalho.
Já havia um tempo que a mãe se esquivava da vizinha. Incessantes
convites para subir Santa Teresa de bonde: domingueira de almoço na casa
da irmã dela e bingo no Largo das Letras, Santa Teresa. Talvez por desgostar
do trepidante transporte, ou para não dispensar a decorada programação
da TV. Quase resistiu, mas batizar filho na vizinhança é agregar
e isto gera uma intimidade suprema. Relação ampliada pela viuvez
precoce da dinda de Assis e pela rara presença do pai deste. Foram os
três, logo cedo. Subiram ladeira na força elétrica - linha
Paula Mattos, com o menino desgostoso por ser atormentado no domingo - dia de
dormir muito!
Muita paisagem. Após desfilar sobre os arcos, o carro desandou a subir
às encostas. Muitos saltavam, agarrando-se ao bonde em movimento; outros
acenavam para subir. Não tardou a lotar. Assis despertara plenamente
e contorcia-se todo em busca dos melhores ângulos para ver seu terreno
de cima. O amontoado de prédios e a baía ao fundo. A catedral,
os prédios comerciais, até a ponte Presidente Costa e Silva -
caminho para Niterói. As ruas Joaquim Murtinho e Almirante Alexandrino
foram encantadoras para o garoto e o despertaram plenamente.
Atravessaram o Curvelo, subiram ao Largo dos Guimarães e dali rumaram
até o Armazém São Thiago, pessoa jurídica estabelecida
desde 1919, famoso Bar do Gomez - espanhol, cincoenta anos de balcão.
Este, conversava com um mendigo sentado na entrada do secos e molhados; e ambos
desfrutavam dum bom punhado de acerolas - selecionadíssimas pelo ocioso
homem.
Pouco antes, o bonde esvaziara e foi o suficiente para Assis se atrever pelas
suas bordas. Caminhava pelo estribo, agarrado com desleixo a exibir-se, sem
a mínima atenção aos esculachos da mãe. Fugia dela,
atormentando-a. Ela prometera dar-lhe na primeira ocasião e passou a
tratar com indiferença os saracoteios do filho.
Quando o moleque avistou o andarilho, cessou as estripulias. Hipnotizou-se
com o cavanhaque machadiano e a fidalguia das vestes desgastadíssimas
do viramundo. Velhas, porém limpas, suas roupas ilustravam um passado
glorioso abandonado no tempo. Ao que o mendigo percebeu Assis, sorriu-lhe duma
sapiência gigantesca e bradou a fim de sobrepor a engrenagem do coletivo:
- Passarinho que levanta tarde, come fruto verde! - e gargalhou sem o menor
esforço, saboreando uma nova fruta.
Assis estalou os olhos e a lembrança da cena o acompanhou durante o passeio
todo, perseguindo-o vida afora. O moleque ponderou palavra a palavra do aviso.
O passeio prosseguiu nos conformes: carne seca na casa da irmã da dinda,
bingo com direito a badulaques de premiação - o mais bisonho era
um relógio de parede que imitava um Rolex de aço e ouro, podado
na pulseira. Voltaram de ônibus, pois a mãe não repetiria
o bonde na mesma data - nem por promessa.
Dali em diante, o moleque doutrinou-se a preencher as manhãs de ócio
com alguma utilidade. Viu nas manhãs coloridos essenciais e sempre que
ouvia pássaros, visualizava o mendigo e sua retumbante exclamação
vibrava-lhe no âmago.
Adulto, Assis virtuou-se na jardinagem e usou das economias - outrora acadêmicas
- para providenciar seu próprio canto. No centro, é claro. Bairro
de Fátima, perto de Santa Teresa. Providenciou esposa e casal de filhos.
Ali, Assis viveu a tomar seu café, ler o jornal e ouvir música
na companhia de seus canários; e dali saía - antes das oito, para
tratar de flores ao sol carioca.