A Garganta da Serpente
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No bonde de Santa Teresa

(Conrad Rose)

Assis era menino solto que tão logo aprendera a contar, a mãe o incumbira da providência do pão e do remédio - além doutras urgências. Faltava alho ou limão para o peixe(?), lá ia o moleque; sabão(?), na hora! Para incentivá-lo na aritmética, ela o premiava com um exemplar do menor dinheiro em papel toda vez que o troco conferia; já as moedas eram introduzidas num baú diminuto, mantido a cadeado e aberto todo dia dez do mês, para que as mesmas somassem a outras tantas na caderneta de poupança. Do banco sairia o desfecho educacional do garoto, quando este tivesse altura e discernimento para abarcar carreira específica.

Desta maneira, Assis minuciou as ruas do centro do Rio, orbitando a esquina da rua do Riachuelo com a Frei Caneca. Nas aventuras, alargava a elipse à Central do Brasil, ao pé de Santa Teresa, aos Arcos da Lapa, ao Largo da Carioca ou à Cinelândia. Para evitar o mau humor da mãe, depois da sentida e desesperadora ausência, o filho recolhia flores em canteiros e praças, presenteando-a e perfumando a casa.

Aos dez, era guia turístico pronto. Muitos vizinhos - alguns de avançada vivência - socorriam-se do menino quando careciam de orientação logística a endereços remotos - às vezes tanto, que nem os catálogos identificavam. Assis era um competente direcionador. Muito disso vinha do seu apego ao lugar onde nascera. Ali desejava viver para sempre(!); por gosto, não obrigação.

Peculiaridade era que o moleque detestava acordar cedo. Ele constatara que a pressa matutina, repleta de compromissos, não permitia conversas despreocupadas - as quais viriam com o crepúsculo; e sua idiossincrasia era aprender na rua - olhos e ouvido. Tinha anedotas na ponta da língua, ditos e crendices em abundância.

Durante as férias escolares, não faltando nada na cozinha, pelas manhãs o moleque só fazia dormir. Depois saracoteava nas voltas da Praça da Cruz Vermelha. Bisbilhotava no Instituto Médico Legal, no Hospital do Câncer e no Souza Aguiar. Quase sem razão, apenas aquela curiosidade intensa que os humanos nutrem pela desgraça alheia.

Já no letivo, Assis despertava às seis, mas retardava o levantar o quanto podia; até a mãe ameaçar-lhe a coça, ou - de fato - numas suspendê-lo pela orelha, noutras alardeá-lo com água fria. Não raras as vezes em que ela o carregava pelos embaraçados cachos negros. Então, ele tomava um café com leite e engolia um pão com manteiga, ainda tropicando de sono. Em seguida, pestanejaria em sala de aula, quando muito.

Os anos passavam atropelados desta maneira, ou melhor, de qualquer maneira. O garoto cabulava até não mais ter o direito de adoecer sem reprovar por excesso de faltas. Astuto nas contas, invadira - desde muito cedo - a matemática financeira. Bom(!), pois isto garantia sua assiduidade escolar - a mínima permitida! - e a nunca ficar sem nenhum no bolso; deste modo, retribuiria a educação à mãe, quando esta se esgotasse para o trabalho.

Já havia um tempo que a mãe se esquivava da vizinha. Incessantes convites para subir Santa Teresa de bonde: domingueira de almoço na casa da irmã dela e bingo no Largo das Letras, Santa Teresa. Talvez por desgostar do trepidante transporte, ou para não dispensar a decorada programação da TV. Quase resistiu, mas batizar filho na vizinhança é agregar e isto gera uma intimidade suprema. Relação ampliada pela viuvez precoce da dinda de Assis e pela rara presença do pai deste. Foram os três, logo cedo. Subiram ladeira na força elétrica - linha Paula Mattos, com o menino desgostoso por ser atormentado no domingo - dia de dormir muito!

Muita paisagem. Após desfilar sobre os arcos, o carro desandou a subir às encostas. Muitos saltavam, agarrando-se ao bonde em movimento; outros acenavam para subir. Não tardou a lotar. Assis despertara plenamente e contorcia-se todo em busca dos melhores ângulos para ver seu terreno de cima. O amontoado de prédios e a baía ao fundo. A catedral, os prédios comerciais, até a ponte Presidente Costa e Silva - caminho para Niterói. As ruas Joaquim Murtinho e Almirante Alexandrino foram encantadoras para o garoto e o despertaram plenamente.

Atravessaram o Curvelo, subiram ao Largo dos Guimarães e dali rumaram até o Armazém São Thiago, pessoa jurídica estabelecida desde 1919, famoso Bar do Gomez - espanhol, cincoenta anos de balcão. Este, conversava com um mendigo sentado na entrada do secos e molhados; e ambos desfrutavam dum bom punhado de acerolas - selecionadíssimas pelo ocioso homem.

Pouco antes, o bonde esvaziara e foi o suficiente para Assis se atrever pelas suas bordas. Caminhava pelo estribo, agarrado com desleixo a exibir-se, sem a mínima atenção aos esculachos da mãe. Fugia dela, atormentando-a. Ela prometera dar-lhe na primeira ocasião e passou a tratar com indiferença os saracoteios do filho.

Quando o moleque avistou o andarilho, cessou as estripulias. Hipnotizou-se com o cavanhaque machadiano e a fidalguia das vestes desgastadíssimas do viramundo. Velhas, porém limpas, suas roupas ilustravam um passado glorioso abandonado no tempo. Ao que o mendigo percebeu Assis, sorriu-lhe duma sapiência gigantesca e bradou a fim de sobrepor a engrenagem do coletivo:

- Passarinho que levanta tarde, come fruto verde! - e gargalhou sem o menor esforço, saboreando uma nova fruta.

Assis estalou os olhos e a lembrança da cena o acompanhou durante o passeio todo, perseguindo-o vida afora. O moleque ponderou palavra a palavra do aviso.

O passeio prosseguiu nos conformes: carne seca na casa da irmã da dinda, bingo com direito a badulaques de premiação - o mais bisonho era um relógio de parede que imitava um Rolex de aço e ouro, podado na pulseira. Voltaram de ônibus, pois a mãe não repetiria o bonde na mesma data - nem por promessa.

Dali em diante, o moleque doutrinou-se a preencher as manhãs de ócio com alguma utilidade. Viu nas manhãs coloridos essenciais e sempre que ouvia pássaros, visualizava o mendigo e sua retumbante exclamação vibrava-lhe no âmago.

Adulto, Assis virtuou-se na jardinagem e usou das economias - outrora acadêmicas - para providenciar seu próprio canto. No centro, é claro. Bairro de Fátima, perto de Santa Teresa. Providenciou esposa e casal de filhos. Ali, Assis viveu a tomar seu café, ler o jornal e ouvir música na companhia de seus canários; e dali saía - antes das oito, para tratar de flores ao sol carioca.

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