A Garganta da Serpente
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Bovino

(Conrad Rose)

Quando Jaime chegou à clareira no interior da mata, estremeceu ao se deparar com um esqueleto bovino completo, amontoado na relva. De pronto enterrou o dito, separando dois dos maiores ossos, com os quais confeccionou uma cruz atada a cipó. Acalentou-lhe o espírito com um pai-nosso como a agradecer ao finado, por ser ele fator preponderante na conservação do espaço. Obcecado, Jaime resolveu assumir tal responsabilidade.

Nos dias que se seguiram, trouxe latas perfuradas que viraram luminárias sustentadas por galhos de bracatinga. Também querosene, machado, esteira e manta. Era outono. Panela e chaleira; talheres e mantimentos. E um álbum de retratos, sua única lembrança física dos pais.

Ornava diariamente o sepulcro com as mais belas e diferentes flores dos arredores. Para economizar reza, contornou-o com pedras e ostentou ali a mais querida foto dos ascendentes. Compôs um mausoléu por fim. Ausentou-se numa tarde para providenciar muito mais comida, centenas de velas das mais sortidas cores e tamanhos. Um terço, pão e vinho. Uma imagem de São Sebastião e outra de Nossa Senhora Aparecida. Uma bíblia sagrada.

Jaime perdera os pais num ganancioso embate no garimpo. Porém, aquilo acelerara-lhe a herança aos treze. Pepitas escondidas que o garoto carregou ao sair fugido. Se fosse um pouco mais velho talvez os hormônios atrapalhassem, mas Jaime preencheu-se de responsabilidade de tal maneira, que jamais tornou a trabalhar na vida. Mesquinho, tampouco compartilhou seu coração. E desconhecia sexo.

Até que resolveu se esquivar definitivamente do mundo. Na clareira de seus delírios fincou os pais na sepultura como outrora não pudera. Improvisou um altar com tocos e na mistura água/terra modelou e retocou. Orgulhava-se do zelo. Amava-se-lhe. Um terço por dia. Cultivava e melhorava o local sem parar. Catava mudas e frutos.

Alimentava-se somente como ofício para continuar vivo, vara seca que era e, por saber da dor e da importância da sua verdade, resolveu criar uma própria. Calejou mãos, pés e joelhos. Fez-se apenas de suplício doravante.

Demorou para as velas acabarem, mas chegou o dia...

Jaime procurou novamente um comércio nas cercanias, reabasteceu-se de luz e conheceu Márcia, cujo nome só soubera indiretamente, e quase pôs tudo a perder. Cogitou ter companhia. Viu-se próximo do que mais precisava se distanciar. Este medo comumente manifestava um desejo cruel a todas que - por lapso - sorria descuidado. Estas, normalmente lhe retornavam. O putrefato jovem tinha neste sorriso denso seu único contato com a luxúria; e intimista, ejaculava-se ao recordar.
Márcia presenteou-lhe com um sorriso maroto de dentes ávidos, sardas, imensos olhos azuis, nariz ereto e boca rosa; instigou-o com pequenos e pontiagudos seios semiocultos, cabelos negros ao ombro e maneiras etéreas; bondade e receptividade. Jaime passou-lhe uma lista e absolutamente nada falou, pagou-a e percorreu o corpo da moça com os olhos. Ela desviou-lhes estritamente o necessário, providenciando-se-lhe propostas. Dominado por sua impotência, ele findou a ocasião dando-lhe as costas e gozou pelo caminho. Ela prometeu avançá-lo na próxima, ocasião que jamais acontecera.

Jaime - tomado por melancolia profunda - começou a preparar sua cova. A lembrança da morte dos entes foi-lhe consumindo desorganizadamente. Estabeleceu sua providência ao lado dos pais, prostrando-se numa cama esburacada à Terra, e precavido, guardou sua última pepita abaixo de seu colchão de folha de bananeira. Orou para morrer dormindo e solicitou com fé que Deus o livrasse do infortúnio da morte horrenda - como a antes testemunhada ou a provinda de famigerado animal. E esta - conforme os pedidos - alcançou-o ao relento, ajudada pelo frio, para enfim cicatrizá-lo.

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