Osvaldo caiu certa vez. Assalto à mão armada. Era uma casa de
classe média, onde os cacos de vidro no muro externavam a herança
de algum militar. Nada para fazer fortuna, só zombaria.
A velha andava doente, e somente por isso o neto pousara com ela. A velha dormia
cedo, Osvaldo sabia. Constatara ao ser recebido às seis da matina com
o café posto, desde a primeira vez que fora chamado para cuidar do jardim.
Osvaldo aprendera a arte com o falecido pai e começara bem. Mas veio
a gravidez, desnecessária e problemática, de sua esposa. Osvaldo
então desdobrara-se em múltiplos ofícios a fim de custear
o trato. Restara-lhe apenas o celular pré-pago, para o qual cliente algum
ligava devido ao custo da chamada. As más influências introduziram-no
ao mundo do crime.
O neto chegara cansado da academia. Professor de jiu-jitsu. Acompanhara
a avó na janta, quer dizer, ela na canja e ele na vitamina, repleta de
nutrientes tecnologizados que, estranhamente, é conhecida por um nome
relacionado a milk-shake!? Realmente, o pitbull da vovó
e a própria dormiram cedo.
A velha dormia cedo e era surda, Osvaldo sabia. Já não havia esposa
e a cria não vingara, fato que lhe causara uma imensa cicatriz endodérmica.
A porta abriu facilmente.
A velha não podia, mas abusava, com a dedo de moça, ralada na
canja. Hipertensa e diabética, a velha era a própria contraindicação.
Aquilo a embrulhara e começava a incomodar. A velha tinha dois caminhos
a seguir: a pia, próxima e instantânea; ou, analgésicos,
muitos e lerdos. Os dois e uma fatia da torta de maçã. Só
uma pequena fatia. A velha, incentivada mais pela torta que pelo desconforto,
acendera o abajur.
Osvaldo adentrou caminhando leve, atravessando a casa em direção
ao quarto da septuagenária. A cada passo dado mais ele se distanciava
de seu pai. Esquecera a arte. Osvaldo rabiscava as retinas, implorando o perdão
do pai e cagando para o mundo.
O neto dormia pesado quando a velha gritou. Depois ela tombou. Osvaldo não
sabia se acudia, fugia ou chorava; feito criança de arma na mão.
A velha contorcia-se no assoalho. E o pitbull, solícito, voava
no pescoço do Osvaldo. Pouco depois Osvaldo desacordava; a velha também,
e para sempre.
Quando o socorro chegou, o neto massageava a velha, já bem mais fria
que o habitual. E Osvaldo lá: algemado, detido, fichado, interrogado,
surrado, e tal. Aí o neto chorou, babou e regurgitou os shakes
da vida.
Pior de tudo, para Osvaldo, era a reprovação do pai desencarnado.
Deus não significava nada pois levara sua cria.
Osvaldo fora parar na provisória, dividindo cela com um senhor de cinquenta
e poucos que maldiziam louco e gritava sem parar. Muito prazer foi como começou.
Em seguida, pequenas peças de um quebra-cabeça encaixavam-se,
implorava clemência e jurava inocência. Eternizando sua complexa
e fragmentada história, na provisória denominavam-no insano.
Osvaldo havia absolvido o dito; os dias compridos, simbolizados com riscos na
parede da cela, induziram diálogos. Marcavam semanas então. Amigos
já eram. A companhia fizera bem ao insano. Parara com o quebra-cabeça.
Cadenciava as emoções. Osvaldo agora o respeitava.
O insano encontrava-se ali por acaso; trabalhara durante anos para uma velha
que o bendizia porque apesar de pardo, honesto! - ela costumava grifar. A velha
rogava-o e conduzia-o à prosperidade materializada pelas próprias
septuagenárias mãos, salpicadas de veias emboloradas e sardas
escurecidas.
A maré virou quando o neto começou a roubar. O pardo e honesto,
agora maldito, acusado de roubo. Na apreensão, a polícia facilitara.
O pardo ao encontro da velha, somente o suficiente para um único golpe.
Na fuça. A velha zunira e descera. O insano, pardo e maldito fora algemado,
detido, fichado, interrogado, surrado, e tal. À velha, quatro safenas
e um hematoma. O neto passou a fazer michê, faturou e socializou-se.
Na descrição das mãos Osvaldo relacionara. O neto certificara.
Osvaldo recebia a absolvição do pai. No quebra-cabeça.
Na justificativa.
Naquela noite os dois jogaram palito até tarde; e o insano, pardo, maldito
e inocente deixara toda a provisória dormir, menos Osvaldo.