A Garganta da Serpente
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Epidemias

(Conrad Rose)

Foi na América do Sul - numa república federalista emergente. Nem tanto, ou muito além. Onde através de decretos se remanejava um sem-fim de futuros desprovidos de oportunidade ou atenção.

Ali começava a pipocar uma epidemia: hepatite(!), que se confrontaria com a já existente síndrome da imunodeficiência adquirida. Era providencial vacinar e o parlamento todo sabia disto, exceto Astolpho - com ph, dentre outros inúmeros caprichos.

Ao conhecer o custo da imunização, o representante sofrera um baque, que só fez aumentar quando Astolpho tomou ciência donde seria remanejada a verba: do cinema - arte pela qual era aficcionado, até as últimas consequências.

O deputado não deixou barato. Passou as semanas seguintes conchavando e fofocando. Semeou boatos e relacionou os modos de contágio para embasar sua tese:

- Os enfermos se unificarão. Não haverá catástrofe, mas sim purificação. Os soropositivos se esvairão com a congruência dos males. Economicamente válido. - murmurava o sádico.

Por incrível que possa parecer, o lero colou. O montante de trabalho que deve ser mandado para execução e a velocidade com que escorrem as semanas, não sobrando tempo algum a legislar, foram determinantes para que o lobby vingasse. A vacina ficou para a volta das duradouras férias, bem depois das eleições.



Foi triste como a coisa se propagou. A miséria convalesceu-se e quando a vacina foi decretada, quase um terço da pobreza do país já estava com os dias contados. Menos, mas também um bom tanto das outras classes, bem como o filho bissexual de Astolpho. Uma purificação a mais para este, na sua resumida ótica.

Em quatro, elegeu-se senador - por oito. Há cadeira melhor que esta? Numa tacada, o eleito mama por quase uma década e sai de lá aposentado.

Astolpho trocou de mulher e de partido tantas vezes quanto pôde. Voava sem parar por conta da união, apertando mãos e distribuindo assistencialismo paliativo. Ele aprendera - no universo da política - que era preferível remédio a prevenção; cesta básica a açude; dar a promover. Ações com prazo de validade que deveriam ser intensificadas nas proximidades dos pleitos.

Peculiar que amante só tivera uma, onde: agendava, lambuzava-se e desembolsava uma razoável quantia, a qual seguia direto para o conforto do amancebado à dita. Inegável que a trepada de Preta se tratava de terapia. A chave de pernas dela desvendava o segredo do cofre de Astolpho; e, para este, vez ou outra abria as portas do Éden. E vez ou outra é coisa que acaba durando para sempre. O político não largava o doce, embora o compartilhasse.

Não que Preta desgostasse Astolpho, tinha-lhe até carinho; e somado ao fato da grana do inescrupuloso político, manter-lhe por perto a razão de seus maiores momentos, a resistente mulher eliminava o que podia existir de asco, apesar de seu mantenedor se esmerilhar na sujeira.

Quando Preta cismou de ser atriz, Astolpho bancou o curso; no que ela quis abrir o salão de beleza, idem. Sem qualquer contestação. Nada que pudesse prosperar, uma vez que o amásio bancava o mundo e passava noutras pernas toda e qualquer fortuna disponível. No sufoco, sempre lhe fora mais fácil anunciar a massagem de Preta e esperar; ou evocar o eleito. Este não objetava nada pois o dinheiro nem deveria ser seu mesmo, era apenas lucro líquido de sua pilantragem e servia para possibilitar-lhe a única relação cabível com Preta: sexo - e do melhor.

O cinema andava muito bem. Indicações ao Oscar, prêmios europeus. Cada ano aumentava o número de produções e a qualidade destas.

Os enfermos padeciam nas ruas. Às famílias que atravessaram ao caos incólumes, havia ainda uma epidemia ativa e progressiva, que as faria - cedo ou tarde - provar do veneno.



No final do mandato e farto de política, Astolpho resolveu estreitar-se com sua paixão. Produziu um documentário sobre a devastação que a junção das moléstias causara e transformou assim, seu discurso de gabinete em arte. Na competência super-remunerada de uma equipe de primeiro mundo e com verba pública - por meio de lei de incentivo que ele mesmo criara. Desfrutou da fama e tornou-se um respeitado cinéfilo. Até surgiu-lhe espaço para criticar a arte num expressivo diário impresso.

Com a chegada da velhice, Astolpho gozava da reputação de ilustre incentivador da sétima arte; e para se livrar da solidão, chamou Preta para que lhe compartilhasse residência. A amante trouxe junto o amásio, o que proporcionou a Astolpho empregar todo o montante desviado - pequenas, médias ou gigantes boladas, em vida; e ainda o fez descobrir que enrustira - durante décadas - uma outra forma de tesão.

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