A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Estratégia oriental

(Cármen Rocha)

Naquela noite, as incoerências se multiplicaram. Fomos obrigados a manter contacto com aqueles grupos perigosos e, após aquela reunião supersecreta, quando interesses de altas tendências inescrupulosas estavam em jogo e vidas também, fazíamos malabarismos de inteligência e poder, para nos manter a salvo e conseguir evitar que vidas e vidas fossem ceifadas e que os interesses do país, que cada um ali representava, fossem afetados.

Telefonemas. Olhares. Sinais. Eu sabia de minha força e conhecimento na área internacional. Tinha apelido de Guerreira, entre os nossos. Mas devido às circunstâncias, tivemos que manter as aparências e a serenidade. Muitos sorrisos e mesuras, pois o grupo japonês era majoritário. O tempo passou hermético e tenso.

Ao final das negociações, deveria haver um café. Herr Miller, com uma mesura, beijou-me a mão e logo se retirou. Mrs Taylor se afastou, alegando dor-de-cabeça e pressa. Os grupos foram se dissolvendo. Assim apreensivos, saímos para a rua e o convite inesperado foi feito pelo jovem do consulado do Japão, para almoçarmos em restaurante conhecido do grupo. Mil mesuras.

A coisa foi rápida e sentindo-me surpresa e atraída pelo jovem inteligente e sedutor, baixei a guarda, e vi-me delicadamente sendo levada pelo braço, andando com aquele grupo, por aquelas ruas estranhas do bairro da Liberdade à procura do tal restaurante.

Sentia seu bafo quente em minha nuca. O grupo japonês, em questões de segundos se desfez, e eu, brasileira, restei só. Entramos. Fomos logo convidados para uma sala interna, mais íntima, semifechada. Após as necessárias abluções em panos brancos e quentes, serviram logo saquês deliciosos. Comecei a perceber que havia qualquer perigo no ar, pois as coisas aconteciam sem que meu interessante companheiro abrisse a boca ou fizesse sinais. Era quase como um filme em que tudo se desenrolava, sem interrupção. Imediatamente moderei-me na bebida, aparentemente delicada e inofensiva.

Apalpei meu pequeno colt na bolsa de noite. Pela primeira vez, sentia-me insegura. Portinhas abriam e fechavam silenciosamente, pelas belas nisseis que nos serviam.

Ele falava do Brasil, perguntava-me intimidades e costumes de aproximação. Era alto, o que se estranhava, e esguio. Belo! Sussurrava em meu ouvido palavras doces, e eu sentia-me comover.

Pareceu-me, no entanto, não estar só. Parecia estar acompanhada por inúmeros olhinhos puxados, escondidos atrás das paredes de papel. Sentia dificuldade em me manter alerta. Foi servido um pequeno peixe envolvido em algas, que mal provei, pois meu anfitrião o afastava de meus lábios famintos. Mais saquê ou talvez outra coisa, com leve paladar alterado. Não conseguia distinguir mais. Seus olhos orientais e miúdos sorriam para mim, e ele comia deliciado. Trocavam toda hora suas pequenas vasilhas. E no meio daquele sorriso, aqueles pauzinhos endiabrados se movimentavam entre mais sorrisos. Beijava-me a ponta da orelha discretamente, causando sensações deliciosas. Quis ainda apanhar minha minudière, mas não a alcançava. Com certa delicadeza e decisão ele levava aquele pequeno cálice aos meus lábios, de louça branca pintada em florais de azul cobalto, que estava desbotando, desbotando...

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br