A Garganta da Serpente

Lívia Santana e Conrad Rose

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Semeadura

(Lívia Santana e Conrad Rose)

Pedro, moleque matreiro, retornava da escola a passos preguiçosos pela estrada de chão que dividia propriedades agrícolas de lado a lado, quando se deparou com um ancião de longos pêlos brancos e amarelados na maior parte da cabeça. O velho usava um chapéu de palha imenso, calças largas e uma camisa que há muito pedia trégua - ou ao menos água. Os dentes eram poucos e o pito à boca demonstrava que dali não saía há muito. Não obstante, o sorriso era brando.

O velho Donato mirou o estudante e, sem livrar-se do palheiro, bradou na necessidade da distância:

- Menino!

Pedro estacou, assustado pela intervenção e pela falta de asseio do lavrador.

- Chega um cadinho pruma prosa. - proclamou Donato fazendo um gesto largo na direção do menino.

O moleque hesitou, mas não ousou fugir. O idoso alcançou a cerca limítrofe de sua posse, apresentou-se e indagou:

- Tem nota boa na escola? Obedece sua mãe?

Pedro aquiesceu, duas vezes com um meneio de cabeça.

- Então vou te prestar um favor. Ta vendo aquele animal ali? - apontou Donato prum cavalo castanho pastando a alguns metros.

- Tô. - a primeira palavra do menino.

- Vou encilhar o animal e ocê leva ele procê.

- Mas... - o menino tentou expressar sua confusão.

- Escuta aqui! - interrompeu o velho, encarando o moleque com estranheza, o dedo em riste. - Não se rejeita presente, é falta de educação. - depois adocicou a situação ao restituir a placidez facial, tranquilizando o menino. - Vem cá, vou te mostrar uma coisa... Este cavalo tem um talento.

Donato afastou duas linhas de arame farpado a fim do menino ultrapassar a cerca. Este postou o livro na relva, passou uma e outra perna pelo vão, inclinou o tronco e abaixou a cabeça, evitando assim qualquer enrosco. Foram os dois ao encontro do animal, com o velho falando:

- O que ocê der pra ele comer, ele devolve na semente pra terra. Ocê dá cenoura pra ele, dia seguinte ele semeia. Na merda dele, tudo renasce. - Pedro, interiorano e catequizando, corou com o termo. - Com ele, ocê e os seus nunca hão de passar fome.

Donato mostrou a musculatura, os dentes e a mansidão do cavalo. Em seguida, enumerou suas culturas e alimentou o quadrúpede com alfafa.

- E por que o senhor quer se livrar dele? - quis saber o menino.

- Tô vendendo minhas terras, vou morar com minha filha na cidade. E não quero deixar o cavalo em perigo, por isso escolhi uma criança pra levar o bicho. Nesse caso, ocê foi o primeiro que apareceu e pode chamar isso de sorte. Quantos anos ocê tem?

- Quase onze...

- Certo, um homenzinho... - pausou e endureceu o semblante, fitando o menino com desconfiança. - Vai tratar bem do Trovoada?

- Trovoada? Que nome legal! - fez Pedro admirado, já gostando do presente. - Vou sim, cuidarei dele como se fosse meu.

Donato tocou-lhe o ombro com a destra, inclinando-se um pouco, muito sério:

- Pois agora é seu. Ele só tem ocê, por isso converse com ele pela manhã e nunca descuide dele. Também não conte pra estranhos sobre os dotes do Trovoada. Pode aparecer algum ganancioso e tentar comprar o animal. Não venda ele nunca.

- Pode deixar. - disse Pedro, incrédulo quanto ao dom do equídeo, mas exultante por desobrigar-se da caminhada diária.

Despediu-se do velho Donato e, montado no Trovoada, cavalgou de volta pra casa.

Mãe e pai vieram recebê-los na porteira do modesto sítio conseguido com décadas de mãos calejadas.

- Donde é que ocê tirou esse bicho? - inquiriu o pai.

- Pedro, ocê se meteu em encrenca? - preocupou-se a mãe.

Ele desmontou sorrindo e disse:

- Ganhei do Seu Donato, aquele velho sujo e estranho.

- Lorota! - duvidou o pai com um muxoxo.

- Nada, pai, juro por Deus. Ele tá vendendo as terras dele e não tinha o que fazer com o bicho. Além do mais, o Seu Donato ta caducando, ele me falou que se eu der cenoura pro Trovoada comer, do cocô dele nasce um monte de cenoura. Se der quirera, nasce milho. Pode? - riu o menino.

- Trovoada? - a mãe contemplou o bicho, pensativa.

- É, mãe, é o nome dele.

- Trovoada é nome de mulher. A Trovoada. - objetou o pai.

- De égua, meu bem. - a mãe sorriu.

- Ele é o Trovoada. - disse Pedro acariciando o pescoço do cavalo, já nutrindo evidente carinho pelo animal. A partir dali se tornaria inseparável do manga-larga castanho de crina e rabo pretos, forte embora dócil.

Corridos quase dez anos, Pedro perdeu pai e mãe num surto de febre amarela, o que sentiu muito. Tinham sido anos de fartura, recolhendo da terra os retornos do Trovoada e separando a parte que lhe cabia das hortaliças e verduras salientes como nenhuma nos arredores, feito imposto. Mas não houve apenas flores, muitos e muito estranhos tinham sido os dissabores trazidos pelos anos.

Os amigos comentavam à boca pequena que, apesar de possuir terras tão férteis e ricas, tudo quanto podia sair errado acontecia com Pedro. Recomendaram-lhe que se benzesse contra olho gordo, que só podia ser inveja das bravas o que lhe transtornava a vida daquele modo. O incêndio no galinheiro, o cupim nas paredes da casa de madeira, o acidente na moenda da cilagem em que tinha perdido um dedo - mindinho da mão esquerda. E então a morte dos pais, num só golpe, deixando-o sozinho no mundo. Ou quase sozinho: ainda havia o Trovoada.

A essa altura a rotina de Pedro, que envolvia missa e flerte, foi interrompida pelo noivado, com as convenções de sempre. Casou-se com Hortênsia, moça bonita e delgada, loura como poucas na região. Exibia olhos azuis muito claros e andava pela rua sempre portando sombrinha estampada com flores miúdas, pra proteger sua alvura do sol. Era o encanto de Pedro, que lhe dedicou a vida e quis proporcionar-lhe luxos de rainha.

Por três anos viveram em idílio contínuo e pareceu que a sorte de Pedro finalmente tinha mudado. Além da abundância das terras, encontrara esposa bela e amorosa que lhe daria um filho em breve, conforme anunciou em certa manhã no armazém. Sentia-se feliz como nunca e sequer podia recordar o sofrimento passado.

Passado o devido tempo, correu Pedro a buscar a parteira e a mãe de Hortênsia, estava na hora. Mas o que prometia ser um dia de festa e emoção lhe rendeu outras lágrimas, amargas e sufocantes qual veneno líquido. Nasceu linda menina de cabelos dourados como os da mãe, mas esta se esvaiu em sangue até perecer de todo.

Depois de cumpridas as cerimônias fúnebres e todos os pêsames recebidos como esperado, Pedro dispensou a presença da sogra e exigiu que o deixassem sozinho. Não queria sequer a menina por perto, que a levassem pra a cidade e o esquecessem, precisava purgar aquela dor infinita que o cindia ao meio e lhe tirava as forças até pra dar cabo de si mesmo.

Afastou-se de todos que não o Trovoada, pois era o único que não se importava que ele não mais tomasse banho ou mudasse a roupa. O fumo e a cachaça se tornaram companheiros constantes na busca pelo bálsamo pra ferida incandescente. Em pouco tempo a transformação era assustadora, assim afirmou um dos antigos amigos que se atreveu a ir vê-lo em seu retiro.

Aos seis anos, levaram a menina Isabel, pra que o pai a visse pela primeira vez desde o nascimento e a visão do homem encarquilhado, alquebrado, de pele e dentição escurecida a assustaram, fazendo-a correr aos prantos pro colo da avó. Ele estreitou os olhos embaciados ante a visão da criaturinha loura que lhe lembrava tanto Hortênsia, pensou em chorar, mas não soube mais como.

Aos quinze Isabel deliberou visitá-lo novamente, do que os avós a tentaram dissuadir. Em vão. Moça decidida, pegou a charrete ainda pela manhã e voltou à noitinha, de nariz e olhos vermelhos e inchados pelo choro, mas com a alma esperançosa - Pedro a tinha recebido e conversaram longamente.

Os anos tinham sido sobremaneira amargos e solitários, ele estava cansado de tanta dor e comoveu-se com a visita da filha, que se tornou rotineira. Pedro esperava impaciente pela chegada da menina e aos poucos ia se permitindo maiores expansões de carinho com ela. Vivaz, alegre e carinhosa, conquistou-lhe o coração ressequido e sôfrego de vida, fazendo-o sentir que merecia outra chance.

Naquela tarde, Isabel chegara mais cedo e estava visivelmente emocionada, pois vinha pedir ao pai que se mudasse pra cidade e vivesse junto dela. Ele enterneceu-se com o convite e aceitou-o, sabendo que nada lhe importava mais no mundo que a presença da filha. Começava a sentir-se feliz outra vez.

Deixou-a na varanda por um momento pra usar o mictório e, nem dois minutos depois ouviu gritos de desespero vindos do lado de fora. Acorreu pressuroso e constatou estarrecido que a menina fora acariciar Trovoada junto dum tronco de árvore tombado a poucos metros de distância e, de alguma forma se encontrava coberta de vespas que a ferroavam sem dó.

Acudiu Isabel, procurou amenizar-lhe as feridas e estancar-lhe as lágrimas de dor e susto. E enquanto olhava com um misto de preocupação e carinho o rosto jovem marcado pelas picadas e inchado pelo veneno dos insetos, ocorreu-lhe algo. Durante toda a sua vida, sempre que se sentia mais feliz, algo acontecia, como se ele não tivesse permissão pra isso, como se uma nuvem escura pairasse sobre a sua cabeça desde ... que encontrara o velho Donato.

Dias depois do acidente com Isabel, Pedro estava parado à beira da estrada batida de terra, contemplando o sol que atingia a linha do horizonte e rosava a vastidão, anunciando o crepúsculo. Trazia consigo o Trovoada, que pastava mansamente ali por perto, dócil como sempre fora. Mascava o cigarro de palha no canto da boca enquanto esperava, vigiando a estrada, atento ao menor movimento.

Nisso, veio vindo um menino chutando distraído uma pedrinha no chão. Pedro se adiantou sorrindo:

- Oi, menino! Chega um cadinho pruma prosa...

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