Pedro, moleque matreiro, retornava da escola a passos preguiçosos pela
estrada de chão que dividia propriedades agrícolas de lado a lado,
quando se deparou com um ancião de longos pêlos brancos e amarelados
na maior parte da cabeça. O velho usava um chapéu de palha imenso,
calças largas e uma camisa que há muito pedia trégua -
ou ao menos água. Os dentes eram poucos e o pito à boca demonstrava
que dali não saía há muito. Não obstante, o sorriso
era brando.
O velho Donato mirou o estudante e, sem livrar-se do palheiro, bradou na necessidade
da distância:
- Menino!
Pedro estacou, assustado pela intervenção e pela falta de asseio
do lavrador.
- Chega um cadinho pruma prosa. - proclamou Donato fazendo um gesto largo na
direção do menino.
O moleque hesitou, mas não ousou fugir. O idoso alcançou a cerca
limítrofe de sua posse, apresentou-se e indagou:
- Tem nota boa na escola? Obedece sua mãe?
Pedro aquiesceu, duas vezes com um meneio de cabeça.
- Então vou te prestar um favor. Ta vendo aquele animal ali? - apontou
Donato prum cavalo castanho pastando a alguns metros.
- Tô. - a primeira palavra do menino.
- Vou encilhar o animal e ocê leva ele procê.
- Mas... - o menino tentou expressar sua confusão.
- Escuta aqui! - interrompeu o velho, encarando o moleque com estranheza, o
dedo em riste. - Não se rejeita presente, é falta de educação.
- depois adocicou a situação ao restituir a placidez facial, tranquilizando
o menino. - Vem cá, vou te mostrar uma coisa... Este cavalo tem um talento.
Donato afastou duas linhas de arame farpado a fim do menino ultrapassar a cerca.
Este postou o livro na relva, passou uma e outra perna pelo vão, inclinou
o tronco e abaixou a cabeça, evitando assim qualquer enrosco. Foram os
dois ao encontro do animal, com o velho falando:
- O que ocê der pra ele comer, ele devolve na semente pra terra. Ocê
dá cenoura pra ele, dia seguinte ele semeia. Na merda dele, tudo renasce.
- Pedro, interiorano e catequizando, corou com o termo. - Com ele, ocê
e os seus nunca hão de passar fome.
Donato mostrou a musculatura, os dentes e a mansidão do cavalo. Em seguida,
enumerou suas culturas e alimentou o quadrúpede com alfafa.
- E por que o senhor quer se livrar dele? - quis saber o menino.
- Tô vendendo minhas terras, vou morar com minha filha na cidade. E não
quero deixar o cavalo em perigo, por isso escolhi uma criança pra levar
o bicho. Nesse caso, ocê foi o primeiro que apareceu e pode chamar isso
de sorte. Quantos anos ocê tem?
- Quase onze...
- Certo, um homenzinho... - pausou e endureceu o semblante, fitando o menino
com desconfiança. - Vai tratar bem do Trovoada?
- Trovoada? Que nome legal! - fez Pedro admirado, já gostando do presente.
- Vou sim, cuidarei dele como se fosse meu.
Donato tocou-lhe o ombro com a destra, inclinando-se um pouco, muito sério:
- Pois agora é seu. Ele só tem ocê, por isso converse com
ele pela manhã e nunca descuide dele. Também não conte
pra estranhos sobre os dotes do Trovoada. Pode aparecer algum ganancioso e tentar
comprar o animal. Não venda ele nunca.
- Pode deixar. - disse Pedro, incrédulo quanto ao dom do equídeo,
mas exultante por desobrigar-se da caminhada diária.
Despediu-se do velho Donato e, montado no Trovoada, cavalgou de volta pra casa.
Mãe e pai vieram recebê-los na porteira do modesto sítio
conseguido com décadas de mãos calejadas.
- Donde é que ocê tirou esse bicho? - inquiriu o pai.
- Pedro, ocê se meteu em encrenca? - preocupou-se a mãe.
Ele desmontou sorrindo e disse:
- Ganhei do Seu Donato, aquele velho sujo e estranho.
- Lorota! - duvidou o pai com um muxoxo.
- Nada, pai, juro por Deus. Ele tá vendendo as terras dele e não
tinha o que fazer com o bicho. Além do mais, o Seu Donato ta caducando,
ele me falou que se eu der cenoura pro Trovoada comer, do cocô dele nasce
um monte de cenoura. Se der quirera, nasce milho. Pode? - riu o menino.
- Trovoada? - a mãe contemplou o bicho, pensativa.
- É, mãe, é o nome dele.
- Trovoada é nome de mulher. A Trovoada. - objetou o pai.
- De égua, meu bem. - a mãe sorriu.
- Ele é o Trovoada. - disse Pedro acariciando o pescoço do cavalo,
já nutrindo evidente carinho pelo animal. A partir dali se tornaria inseparável
do manga-larga castanho de crina e rabo pretos, forte embora dócil.
Corridos quase dez anos, Pedro perdeu pai e mãe num surto de febre amarela,
o que sentiu muito. Tinham sido anos de fartura, recolhendo da terra os retornos
do Trovoada e separando a parte que lhe cabia das hortaliças e verduras
salientes como nenhuma nos arredores, feito imposto. Mas não houve apenas
flores, muitos e muito estranhos tinham sido os dissabores trazidos pelos anos.
Os amigos comentavam à boca pequena que, apesar de possuir terras tão
férteis e ricas, tudo quanto podia sair errado acontecia com Pedro. Recomendaram-lhe
que se benzesse contra olho gordo, que só podia ser inveja das bravas
o que lhe transtornava a vida daquele modo. O incêndio no galinheiro,
o cupim nas paredes da casa de madeira, o acidente na moenda da cilagem em que
tinha perdido um dedo - mindinho da mão esquerda. E então a morte
dos pais, num só golpe, deixando-o sozinho no mundo. Ou quase sozinho:
ainda havia o Trovoada.
A essa altura a rotina de Pedro, que envolvia missa e flerte, foi interrompida
pelo noivado, com as convenções de sempre. Casou-se com Hortênsia,
moça bonita e delgada, loura como poucas na região. Exibia olhos
azuis muito claros e andava pela rua sempre portando sombrinha estampada com
flores miúdas, pra proteger sua alvura do sol. Era o encanto de Pedro,
que lhe dedicou a vida e quis proporcionar-lhe luxos de rainha.
Por três anos viveram em idílio contínuo e pareceu que
a sorte de Pedro finalmente tinha mudado. Além da abundância das
terras, encontrara esposa bela e amorosa que lhe daria um filho em breve, conforme
anunciou em certa manhã no armazém. Sentia-se feliz como nunca
e sequer podia recordar o sofrimento passado.
Passado o devido tempo, correu Pedro a buscar a parteira e a mãe de
Hortênsia, estava na hora. Mas o que prometia ser um dia de festa e emoção
lhe rendeu outras lágrimas, amargas e sufocantes qual veneno líquido.
Nasceu linda menina de cabelos dourados como os da mãe, mas esta se esvaiu
em sangue até perecer de todo.
Depois de cumpridas as cerimônias fúnebres e todos os pêsames
recebidos como esperado, Pedro dispensou a presença da sogra e exigiu
que o deixassem sozinho. Não queria sequer a menina por perto, que a
levassem pra a cidade e o esquecessem, precisava purgar aquela dor infinita
que o cindia ao meio e lhe tirava as forças até pra dar cabo de
si mesmo.
Afastou-se de todos que não o Trovoada, pois era o único que
não se importava que ele não mais tomasse banho ou mudasse a roupa.
O fumo e a cachaça se tornaram companheiros constantes na busca pelo
bálsamo pra ferida incandescente. Em pouco tempo a transformação
era assustadora, assim afirmou um dos antigos amigos que se atreveu a ir vê-lo
em seu retiro.
Aos seis anos, levaram a menina Isabel, pra que o pai a visse pela primeira
vez desde o nascimento e a visão do homem encarquilhado, alquebrado,
de pele e dentição escurecida a assustaram, fazendo-a correr aos
prantos pro colo da avó. Ele estreitou os olhos embaciados ante a visão
da criaturinha loura que lhe lembrava tanto Hortênsia, pensou em chorar,
mas não soube mais como.
Aos quinze Isabel deliberou visitá-lo novamente, do que os avós
a tentaram dissuadir. Em vão. Moça decidida, pegou a charrete
ainda pela manhã e voltou à noitinha, de nariz e olhos vermelhos
e inchados pelo choro, mas com a alma esperançosa - Pedro a tinha recebido
e conversaram longamente.
Os anos tinham sido sobremaneira amargos e solitários, ele estava cansado
de tanta dor e comoveu-se com a visita da filha, que se tornou rotineira. Pedro
esperava impaciente pela chegada da menina e aos poucos ia se permitindo maiores
expansões de carinho com ela. Vivaz, alegre e carinhosa, conquistou-lhe
o coração ressequido e sôfrego de vida, fazendo-o sentir
que merecia outra chance.
Naquela tarde, Isabel chegara mais cedo e estava visivelmente emocionada, pois
vinha pedir ao pai que se mudasse pra cidade e vivesse junto dela. Ele enterneceu-se
com o convite e aceitou-o, sabendo que nada lhe importava mais no mundo que
a presença da filha. Começava a sentir-se feliz outra vez.
Deixou-a na varanda por um momento pra usar o mictório e, nem dois minutos
depois ouviu gritos de desespero vindos do lado de fora. Acorreu pressuroso
e constatou estarrecido que a menina fora acariciar Trovoada junto dum tronco
de árvore tombado a poucos metros de distância e, de alguma forma
se encontrava coberta de vespas que a ferroavam sem dó.
Acudiu Isabel, procurou amenizar-lhe as feridas e estancar-lhe as lágrimas
de dor e susto. E enquanto olhava com um misto de preocupação
e carinho o rosto jovem marcado pelas picadas e inchado pelo veneno dos insetos,
ocorreu-lhe algo. Durante toda a sua vida, sempre que se sentia mais feliz,
algo acontecia, como se ele não tivesse permissão pra isso, como
se uma nuvem escura pairasse sobre a sua cabeça desde ... que encontrara
o velho Donato.
Dias depois do acidente com Isabel, Pedro estava parado à beira da estrada
batida de terra, contemplando o sol que atingia a linha do horizonte e rosava
a vastidão, anunciando o crepúsculo. Trazia consigo o Trovoada,
que pastava mansamente ali por perto, dócil como sempre fora. Mascava
o cigarro de palha no canto da boca enquanto esperava, vigiando a estrada, atento
ao menor movimento.
Nisso, veio vindo um menino chutando distraído uma pedrinha no chão.
Pedro se adiantou sorrindo:
- Oi, menino! Chega um cadinho pruma prosa...