A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Um duplo triângulo

(Cármen Rocha)

...tudo era um verdadeiro "complot" ...

É claro que alguma coisa eu percebia. Além de alguns sinais exteriores, uns olhares travessos, um zunzum pela vizinhança. Pela vizinhança, não. Entre o exército de amigas do peito de minha mulher. As meninas se reuniam às 6as-feiras para pequenas fofocas, alguns salgados e por acaso um joguinho de cartas. (O forte mesmo eram as fofocas, eu sabia.) Eu sabia também o porquê.

Quando ela, minha amada esposa, tinha que ir para as suas conferências no Rio, não suspendia as reuniões! É difícil cair a ficha? Alguém pode imaginar por quê minha amada insistia na reunião de jogo? Por que, por quê?

Mas o que adiantava eu jurar fidelidade? Ela não dizia nada, mas suas atitudes... Parecia até que ela se comprazia com a situação. Sempre me vigiando...

Mas pensando bem, chegar a este ponto é de uma burrice ímpar. Como tocar um casamento nessas circunstâncias? Para contemporizar, eu agia tão corretamente que eu próprio me assustava com o meu cavalheirismo e diplomacia nas reuniões. Servia algumas fatias de bolo, ordenava a louça na copa, o gelo... Bem, me desempenhava da melhor forma possível.

Ana, uma de suas amigas confidentes, com uma certa boa vontade maldosa, ia junto a mim dando ordens e pedindo tudo o que podia para que a reunião fosse um sucesso. Seus olhos vigilantes não se descuidavam. Ficava grudada, a ponto de roçar em mim, tal sua vigilância. O tempo passou. Eu gostava, agora, dessas reuniões.

Depois faziam em conjunto o relatório para a amada. Eu bem que percebia. Eu não tinha prazer algum em viver na berlinda, mas o que se pode fazer in extremis, quando a coisa começa a valer a pena? Será que esse boato sublinear tinha fundamento mesmo? Eu me divertia...

Fui tomando gosto e agora, agora era eu quem torcia para que as palestras chamassem a amada para longe.

Minha mulher, para não dar motivo, além da imposição da viagem, esmerava-se para deixar tudo em perfeitas condições. Muito ordeira e caprichosa, deixava tudo comme il faut. A casa ficava impecável. Ela sim, era impecável!

Arrumava a sua frasqueira com antecedência, roupas finas mas práticas, um vestidinho delicioso em seda branca, que marcava seu corpo sinuoso, refrescante, que o calor de Copacabana pedia, e aquela sandália dourada e bolsa, divinas.Mais uns dois conjuntos, blusa e calça, e basta, pois após a conferência, tinha pressa em voltar, parecia.

As coisas andavam assim. Desconfianças e cuidados. E para que tudo ficasse sob controle, do Rio, à noite, lá pelas 10 h, madame ligou para Ana, que era a vizinha mais próxima e perguntou se ela via o carro do marido (eu) em frente à sua calçada. Ana prontamente disse que sim. A minha amada, com um suspiro de alívio, disse-lhe que então só iria ligar para o marido lá pelas oito horas do dia seguinte, e desligou o telefone com um suspiro prazeroso.

Mas maior foi o suspiro da devotada Ana, que piscou para mim.

O tempo passou, as coisas sempre da mesma maneira.

Numa noite movimentada de jogo, uma das meninas disse-lhe rapidamente ao ouvido, que tinha novidades e que logo-logo poderia contar-lhe algo insuspeito, que confirmaria suas (de todas) suspeitas sobre o marido, eu.

Mas não houve jeito. Como que alertado por sexto sentido, eu colei-me a ela e não dei chance para que a denúncia ou sei lá o que, se fizesse.

Nada mesmo pôde ser confirmado, pois a conferência exigia sua presença no outro dia de manhã. Para que pudesse preparar-se para estar no recinto das reuniões a tempo e arrumada, naquele próximo dia encalorado de 39 graus à sombra, partiu em seguida, pelo voo noturno.

Além das expectativas, ela viajou com um certo sorriso encantador, nem um pouco apreensiva, notei. Chegaria lá pelas dez horas da noite. Eu também sorri e voltei para casa.

Viagem curta. Saiu do avião rapidamente, como eu soube, e lá estava Estevão, de braços abertos para ela. E aquele abraço incontido:

- Querida, que saudade!... Que tal um supergelado para refrescar um pouco?

Suspirei.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br