A Garganta da Serpente
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A força dos animais

(Carmem Toledo)

Dias atrás estava conversando com o Roberto, meu namorado super potatoe, um assunto de força, de energia, de vida, de existência, meus assuntos prediletos. É quando ele me pergunta:

- Você conhece o poder dos animais?

- Como? - respondi um tanto confusa - Assim, que nem os índios acreditam?

- É, assim que nem em Fight Club.

- Não me lembro disso em Fight Club...

- É o máximo! Existem dentro de nós forças, poderes animais que se forem mentalizados, especialmente quando estamos tristes e fracos, ou em alguma situação difícil, os animais aparecem e nos ajudam. Os meus poderes são dois: a Fênix e o Gold Lion.

- A Fênix é legal, um ser que renasce das cinzas, mas que diabos é o Gold Lion?

- É um leão dourado (!!!!!) que aparece sempre que me sinto fraco e me convida para dar um passeio montado em suas costas. Depois que cavalgo o leão, me sinto revitalizado.

- E de onde você tirou esses animais, você inventou?

- Sim, eu inventei.

Senti-me imediatamente na obrigação de inventar animais para mim também. O Roberto está sempre inventando e acreditando em coisas desse tipo, que ele tira de livros de meditação, de chacras ou de qualquer outra coisa que não pertença a tal civilização ocidental. Lembro que uma vez ele ganhou um livro de presente de uma tia minha, bastante esotérica, que falava de uma tal de energia violeta incompreensível para mim. Então ele começou a me perguntar o que era exatamente a cor violeta, e todas as cores que ele via, desde rosas a lilases, que se aproximassem do violeta ele me perguntava:

- Baby, isso é violeta?

Eu ria de sua obsessão inocente e lhe dizia se era ou não violeta, e lhe explicava sempre como era a composição do violeta, para que ele pudesse encontrá-la por si próprio. E ele aprendeu o violeta, e meditava sempre violeta, que lhe trazia energia. Chegou até a usar uma pulseira violeta e a pendurar fitinhas de papel crepom violetas pelo quarto, roubadas de uma festa arco-íris de minha amiga Gabriella.

Agora o que lhe dá energia é o poder dos animais. E eu, mesmo que no primeiro momento não o tenha levado a sério, queria também descobrir que animais existiriam dentro de mim. E teria que ser, de qualquer maneira, um animal que voasse e outro que fosse forte, assim como os animais dele. Mas eu só conseguia pensar em animais frágeis, como pássaros e borboletas...

- Então seu poder é um poder que voa - Roberto me disse.

- Sim, claro que tem que voar. As coisas precisam ser leves, livres, precisam voar...

Eu estava indignada porque não tinha nenhum animal forte como o Gold Lion do Roberto. Eu só pensava em voar!!!

- A borboleta tem um poder legal - ele tentou me consolar - Ela transmuta: tem o poder da metamorfose.

- É... ( eu não me consolava) mas ela é frágil, ela morre fácil, ela não é corajosa...seu instinto é fugir dos predadores e não enfrentá-los...

O Roberto tinha dois animais: um que voava, que renascia, que de algum modo se transmutava como a borboleta: a sua Fênix. O outro era forte, corajoso, destemido, o rei da selva, e ainda por cima era feito de ouro!!! Eu não poderia ter dois animais iguais, dois animais frágeis voadores, pássaros e borboletas...Não, eu precisava de um animal forte.

Então ontem a noite eu tive um sonho: sonhei que estava num pasto verde e com poucas árvores, e que caminhava junto de minha irmã em direção a uma dessas poucas árvores do pasto. Deitamos para descansar um pouquinho, e o curioso foi que não nos deitamos como as pessoas se deitam, deitamos como se deitam os animais! Deitamos como um cachorro, um gato, um leão, uma vaca, ou qualquer outro quadrúpede, mas nunca como as pessoas se deitam!!

De repente noto que surge uma cobra ao meu lado - minha primeira reação é sair correndo antes que ela se aproxime mais e me pique, mas nesse momento ouço o sussurrar de minha irmã, quase telepático:

- Não se mexa. Se você se mexer ela irá te atacar.

Permaneço imóvel por algum tempo, sem esboçar a menor reação, tamanho o pavor de ser atacada pela cobra. Deitada, com a cabeça baixa em cima dos braços, começo a olhar ao meu redor: agora não existe apenas uma cobra, mas milhares delas. As cobras multicoloridas fizeram um cerco ao nosso redor. Minha irmã tem uma cara assustada, mas ainda crê que o melhor é permanecer imóvel. Afinal, até agora nossa imobilidade funcionou, as cobras ainda não nos atacaram. Apesar do medo pintado em seu rosto, seus olhos expressam confiança.

Penso por alguns instantes...Se não nos mexermos, as cobras não irão nos atacar. Entretanto permaneceremos aqui, imóveis, deitadas embaixo desta árvore, eternamente descansando sem paz, eternamente aflitas e apreensivas, sempre temendo um bote das cobras.

Não!!! Assim imóvel não é possível viver!! A borboleta que existe em mim, embora frágil e temerosa, sabe que a vida sem movimento não é vida: é antes morte que se pensa viva porque se crê segura, porque não se arrisca. A borboleta está impaciente: por ter vida curta, nenhum segundo pode ser desperdiçado. A borboleta resolve voar:

- Cansei de ficar parada. Vou me levantar.

Minha irmã está perplexa:

- Não, não se levante, as cobras irão te atacar!!

- Você não vê?! As cobras fecharam o cerco, se aproximam cada vez mais. Se não tomarmos uma atitude, elas irão nos atacar mais cedo ou mais tarde.

- Levante-se então e dê dois pisões na cabeça dela.

È quando percebo que ao meu lado já havia uma cobra sorridente, sarcástica, pronta para me atacar. Gelei de medo. Como irei matá-la? Se eu pisar em sua cabeça e não acertar ela irá me matar. Mas preciso tomar alguma atitude - dela depende minha sobrevivência. É levantar ou morrer envenenada.

Momentos eternos de dúvida, de insegurança, de falta de confiança, de apreensão, de angústia e fraqueza.

Levanto. Sou maior do que sou na realidade. Levanto uma perna o mais alto que posso e abaixo com toda a força, para acertar em cheio e de uma só vez a cabeça da cobra.

Qual é a minha surpresa quando olho para meus pés e percebo que não são pés e sim patas!!! Patas lindas e largas, fortes, pêlos brancos de nuvem!!

Dou mais outro pisão na cabeça da cobra. Sim, eu acertei em cheio, eu esmaguei a cabeça da cobra!!!

Todas as outras cobras, dando-se conta de que eu não era mais um mero humano apavorado, começam a fugir desesperadamente. Claro, elas não querem ser esmagadas pelas minhas patas largas, eu não tenho mais medo delas, eu confio nos meus atos.

Olho-me e descubro-me: sou um cavalo. Um cavalo branco, imponente, patas largas, peito forte. Sinto o vento dançar em minha crina. Olho as cobras fugindo, o pasto verde, borboletas voando ironicamente em cima das cobras. Estou sorrindo...Novamente fito minha irmã, dessa vez sem pavor, docemente:
- Levante-se. Mexa-se. Eu esmaguei as cabeças das cobras.

(19 de agosto de 2006)

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