A Garganta da Serpente
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O Conto da Noite Eterna

(Caio Viana)

Naquela noite, como noutra qualquer, sentei-me diante da máquina de datilografia. Naquele instante, iniciei meu escrito sem muitas pretensões. Sendo sincero, desconhecia até o que iria escrever, mas as palavras forma saindo, de forma voraz. O papel tão branco inicialmente era preenchido por letras disformes, que eu não enxergava; e mesmo não enxergando tinha noção do que escrevia, sem saber o que escrevia.

Confuso, eu sei! Mas minha mente também se encontrava assim.

Em pouco tempo, pude sentir uma estranha força que escorria por meus dedos. E da mesma forma que Deus pintou o mundo com seu "perfeito pincel", eu passava as letras ao meu papel pintando meu mais recente mundo. Eu não sei o que ocorria comigo, mas era sensivelmente real. As nuvens iniciais que se formavam no teto do meu aposento, em questões de minutos já me cercavam, e tornaram-se névoas. O chão que eu podia sentir com os dedos dos pés eram manchas instáveis, não-sólidas. Mas eu ainda enxergava a noite pela abertura da janela - e ela, era natural.

Ouço batidas na porta do aposento, leves e suaves, como a maciez de um lenço que é conduzido pelo vento. Não conseguindo controlar minhaas ações, levantei-me e, em passos apressados, atendi a porta. Uma desconhecida e bela mulher esperava-me. Era de uma beleza incomum, e não pude deixar de convida-la a entrar. Seguindo meu pedido, ela deu alguns passos, e estando ao meu lado, deixou que o lençol no qual estava entrevolta caísse, revelando-me o seu corpo por inteiro. Deitamos em minha cama, e ali tive alguns dos melhores e mais intensos momentos de minha vida; mas como a névoa que surgiu em meu quarto, em sua rapidez, ela desapareceu.

No mesmo segundo, as linhas do chão se desenvolveram e se tornaram as linhas de uma estrada desconhecida. A noite continuava, mas naquele asfalto a névoa havia se dissipado. O som e o cheiro do mar eram próximos. Seguindo meus sentidos, passei a caminhar tentando alcançar o oceano, enquanto podia estranhamente ouvir os contínuos sons da máquina. "Estava eu escrevendo minha própria história?", pensei, mas sabia que era impossível; então segui minha jornada fictícia.

Enfim, alcancei as areias da praia, e só possuindo a tênue luz da Lua Crescente, contemplei a beleza negra do oceano, que se estendia através da noite, e ao longe tocava as estrelas. Na distância, como se brilhasse emanando luz de si, avistei uma mulher em vestidos brancos, balançando ao sabor do vento - a mesma mulher que estivera em meu quarto. Sem reação alguma, deixei que se aproximasse. Chegando até mim, ela foi completamente dócil, e pude sentir isso através de suas palavras. À mercê do prelúdio de uma melodia, deixei que os sons fluíssem: - Está noite será eterna - dizia ela. - Seus desejos também serão eternos. - O que devo fazer? - questionei sem hesitação. - Entre nesse barco comigo. - respondeu-me. Voltei-me para o mar com a nítida sensação de não-existência de tal barco, mas, como era de se esperar, lá estava ele. Na proa, presa ao "bico" do barco de tábuas, uma tocha emanava sua luz, resistindo acesa contra a força noturna do vento. Ele era simples, sem riqueza de detalhes, mas ao entrar, pude sentir que flutuava em meio ao nada.

O pequeno barco flutuou com outro peso. Vi que era a mulher que entrara e posicionara-se de pé. Não vendo velas ou remos, questionei: - Como chegaremos ao nosso destino? - as palavras assim fluíam de minha boca, como também as suas respostas. - Os mares, os ventos e os sonhos nos levarão. - e com tais palavras o barco começou a mover-se, adentrando na estranha calmaria daquele oceano. Ainda assim, podia ouvir as batidas da máquina de datilografar produzidas por minhas ágeis mãos.

À medida que o barco avançava, sentia mais e mais a presença do vazio que me cercava. As águas negras, assim como o céu. Contrastando com o negrume, a Lua e a mulher, a tocha e eu. Olhando para fora do barco, para as águas negras, podia contemplar amedrontado as esquisitas formas que passavam sob a superfície, por vezes, por debaixo do nosso transporte. Eram manchas disformes brancas, algumas tendo poucos centímetros. Outras de tão grandes levavam minutos para completar a passagem. Devo admitir que muito assustado fiquei, mas a calmaria das águas que se refletiam na face pálida da mulher, fez-me esquecer as manchas. Num certo instante, virei-me e novamente questionei: - Quem é você? - e levantando o braço até deixa-lo horizontal e esticando o dedo indicador, ela disse: - Olhe! A ilha! - e não sei se aquelas palavras foram para se esquivar de minha pergunta, mas tendo ou não essa intenção, funcionaram.

Ao virar-me, pude ver a formação de terra que se elevava sobre o horizonte, e mesmo na escuridão da noite, pude apreciar completamente sua beleza. Sabia que, de certa forma, estava retornando para casa. Experimentando uma estranha sensação que percorria minha alma, deixei que as lágrimas caíssem ao longo de minha face. O vento bateu forte nesse momento, engolfando minhas falhas palavras: - Estou de volta. Encontrei meu caminho... meu lar. E quando o barco tocou a areia, pulei de imediato para a praia, caindo de joelhos, abraçando terra e lágrimas. - O sonho é real! Estou livre! - gritei abrindo os braços, voltando meu rosto para o céu, ainda de joelhos. No exato momento, uma pesada chuva derramada sobre meu corpo, sobre toda a ilha, preparando-nos para o tão esperado encontro. Depois de tudo, ainda obtive forças para voltar-me para o mar. Assim, notei que o barco e a mulher não mais existiam. Haviam se tornado a névoa que era tragada pelo vento e pela noite.

Os dias se passaram e a chuva continuou, lavando nossas almas. Pude novamente conhecer toda a ilha, e com o passar dos dias, os sons das teclas da máquina foram desaparecendo, e só restávamos eu, a noite, o oceano e a ilha. Os meses foram chegando e num súbito, mas perfeito encontro, obtive a companhia que desejei em meus anos de vida: o amor. E os anos passaram, parecendo séculos, sendo sempre noite, mas tanto a lentidão do tempo como o negrume noturno não me entristeciam, pois eram meus desejos.

Estando na beira da praia, este homem descobriu que todos os longos anos e toda esta noite eterna não passavam de sonhos, mas ali, à margem do mar, permanecendo ainda na ilha, com sua presença ao lado, suas palavras refletiram os verdadeiros sentimentos de suas vidas: - Isto é um sonho! Mas a mim, não cabe decidir nada disso. Prefiro viver todas as vidas do mundo dentro de meus sonhos, cercado pelos meus reais sentimentos, que um segundo ao lado dos homens e do mundo real.

E ele dormiu para sempre, numa noite que nunca teve fim.

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