Toda prova de amor é inusitada. A paixão quando surge e arrebata
trás consigo uma disposição de fazer o inesperado, o raro,
o que ninguém faz, a menos que seja para agradar o objeto de desejo.
Foi o que ocorreu com Dirceu, Laudelino e Quércia. Um triângulo
amoroso sem definição que se tornou um desafio.
Dirceu era viúvo há mais de vinte. Era um senhor alto que só
comia feijão farinha e banana. Não havia quem o fizesse comer
um bife, uma costelinha ou uma sobrecoxa de frango. Vivia de biscates na feira,
além da magra aposentadoria. Chegava sempre às quatro da manhã,
mesmo quando atrasava por algum motivo fútil, fazia de tudo para ver
o sol nascer na feira das Sete Portas. Caminhava malevolente, com muita calma,
ultimamente não tinha mais pressa para nada. Aliás, era dono de
uma certa azáfama só para ver Quércia. Estar ao seu lado
e ser detentor dos beijos quentes da negrinha. Tinha sempre um ditado pronto
para dizer.
-Quem não morreu novo, de velho não escapa...
Laudelino por sua vez, também banguela, era um negro forte, de meia-idade,
mais jovem que Dirceu. Carregava frutas e legumes na feira e da mesma forma
que Dirceu era louco de paixão por Quércia. Contudo Laudelino,
ao contrário de Dirceu, era pedante, afetado. Muitas vezes até
com clientes que faziam compras na feira ele zombava cinicamente. Tão
cínico quanto Antístenes e descrente quanto Zaratrusta. Debochava
e fazia troça de Dirceu na frente de quem quer que fosse, principalmente
quando se recolhiam para comer.
-É vai ele, ó... Um velho desses só come bananinha, procure
comer um mocotó, Velho, para tentar dar conta de dona Quércia...
Laudelino sem dúvida era um camarada mundano, que só acreditava
nos prazeres da carne. Prazeres da carne em todos os sentidos falando. Sua virtude
era fazer pouco caso. Falava daqui e de acolá, desse e daquele. Só
parava e estancava a língua ferina quando em sua frente surgia Quércia.
-Não entendo, sinceramente, não entendo como Quércia dá
trela para um camarada desse... Pobre e preto desavergonhado, não tem
nada e ainda desfaz dos outros...
-Criatura mais sem graça, eu hein? Ele que não se engrace para
o meu lado... Já disse ao Jailton, meu marido, que eu não gosto
dele... O que a Quércia viu nesse homem, pelo amor de Deus?
-E ainda por cima é fouveiro, não tem banho, não tem água
que molhe aquela fouveirice dele, pode gastar toda a água do rio São
Francisco que vai continuar preto e fouveiro...
-Por isso ele vive se cuspindo, o nojento...
Era geralmente esse comentário que se ouvia em toda a feira.
Quércia era uma mulher escura, negra e cabocla. Cozinhava na feira das
Sete Portas. Era magrinha, esguia, parecia um lanceiro africano. Orgulhava-se
dos dentes e deixava encabulados tanto Dirceu quanto Laudelino. Nenhum dos dois
tinham. Dirceu não mastigava nada muito sólido, quando queria
comer cocada, que ele gostava muito, só aí ele colocava a chapa
dentária, e Laudelino poupou somente o dente carniceiro. Como toda mulher,
Quércia envaidecia-se do seu jeito. Vangloriava-se entre as amigas da
feira de ter dois homens aos seus pés e flertava com um e saía
com o outro. Flertava com o outro e saía com o um. Aquela relação
apimentada causou frisson na feira. Todos queriam saber de quem era Quércia
efetivamente.
-Simples, pessoal! Ela é de quem chegar primeiro e agradar a moça.
Tão simples quanto a própria vida era o pensamento e a sabedoria
do gari Venceslau.
Toda a feira criou então um torneio para saber com quem ficaria Quércia
de uma vez por todas. As regras foram escritas sob a observação,
empenho, curiosidade e cobiça dos envolvidos. Dirceu, Laudelino e Quércia.
Tanto Dirceu quanto Laudelino teriam que usar dentadura para a prova. Essa era
a primeira cláusula para agradar aquela que seria o premio. E a segunda
era tão simples quanto a primeira. Somente um pouco estranho e inusitado,
como dissera o narrador no início da história. Quem comesse o
maior número de pimenta seria o vencedor e levaria o amor de Quércia,
note-se que as pimentas teriam que ser mastigadas. Poderiam comer banana, mas
não era permitido beber água enquanto estivesse na disputa. Colheram-se
então pela feira os seguintes tipos: Pimenta-apuã, pimenta-cumarim,
pimenta-da-áfrica, pimenta-da-jamaica, pimenta-de-cheiro, pimenta-de-fruto-ganchoso,
pimenta-de-macaco, pimenta-malagueta, pimenta-negra e por último para
dar um refresco, pimentão verde, vermelho e amarelo.
E começou a peleja. Dirceu com a mão cheia saiu na frente com
trinta e oito pimentas misturadas. Laudelino cauteloso comeu o pimentão
amarelo, segundo ele para sentir primeiro um docinho. Dirceu comeu mais uma
mão cheia de pimenta-negra e pimenta-da-jamaica, davam mais quarenta
e seis pimentas. Laudelino contou oitenta e quatro e mastigou, empatando a contenda.
Como cada pimentão valia meia-pimenta. O pernóstico tinha meia
pimenta de frente. Dirceu contou mais quarenta e mastigou. A plateia
em delírio torcia mais abertamente para Dirceu.
-Vai que é sua, Dirceu!
Laudelino empatou mais uma vez e esperou a reação de Dirceu. Como
não respondia, o negro comeu mais um pimentão, ficando a frente
com mais meia pimenta. Cento e vinte e quatro pimentas tinham sido comidas por
cada um.
-Quero ver na hora de botar isso para fora...
-E se um dos dois tiver hemorróidas?
-Eu ouvi dizer que Dirceu tem umas pregas soltas...
O velho Dirceu não aguentou e sentiu dores de barriga. Desistiu
e foi levado para o Hospital Geral. Laudelino foi homologado como o homem-pimenta
e vencedor do combate. Contudo ao procurarem pelo prêmio, este havia sumido.
Todos conclamavam:
-HOMEM-PIMENTA! HOMEM-PIMENTA! HOMEM-PIMENTA!
O próprio Laudelino fazia coro...
-EU SOU O HOMEM-PIMENTA e dono da mulata mais linda desse país...
De repente...
-Olhem, lá está a Quércia!
Quércia estava sentada no colo do gari Venceslau ao canto do bar, pendurada
nos beiços do lixeiro.
-QUÉRCIA? QUÉRCIA! EU SOU O HOMEM-PIMENTA E NÃO O HOMEM-CHIFRUDO...QUÉRCIA
EU SOU O HOMEM-PIMENTA, QUÉRCIA...
E caiu num choro decepcionado. A plateia ainda extasiada voltou com o
som em estribilho.
-HOMEM-PIMENTA! HOMEM-CHIFRUDO! HOMEM-PIMENTA! HOMEM-CHIFRUDO!