A Garganta da Serpente
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O Augúrio da sorte

(Cloe de Vries)

Ela estava precisando de sorte. Era um tempo em que tudo parecia andar de avesso e a desdita sempre vinha acompanhada de outra má sorte.

Não era acostumada a orações, mas ultimamente sempre que encontrava uma igreja, sentia-se obrigada a entrar e seguir todos os rituais que, suspeitava, poderiam ajudá-la a livrar-se dessa má companhia. E, também, havia as investigações: passou a procurar por santos que não admitissem delongas, intervenções sobrenaturais, enfim qualquer coisa que lhe trouxesse um fio de esperança onde se agarraria durante esse tempo renitente em infortúnios.

O dia amanhecera sem grandes promessas, mas a vontade de que uma promessa surgisse já se fazia inadiável, e, então, com a voz desconsolada, insistia incansável para que suas preces fossem, ao menos, ouvidas.

No balcão de seu apartamento, estava a mulher prostrada, absorvendo nos dedos as mil e uma contas do rosário, quando, de súbito, um pombo pousou a sua frente - não era desses pombos brancos, impolutos, mas de cor estranha, acastanhada. O pombo também não tinha uma aparência bem aprumada, pelo contrário, seus gestos nada eram elegantes e davam a impressão de que seu corpo carecia de equilíbrio - ele era todo desarmônico.

A mulher fitava o pombo assombrada, enquanto este tentava debilmente se equilibrar na minúscula concha de luz do poste - seria este bronco, o sinal de bom augúrio que ela tanto esperava? - a mulher relutava em acreditar - não, isso era apenas um pombo.

A ave, longe dessas profundas indagações, bamboleava enlouquecida e já se depenava toda. A mulher sorriu e admitiu para si mesma que sorrir era quente como uma benção.

A mulher repensava o mistério. E se o sinal de que tanto necessitava, fosse esse? Embora aquele pássaro não fosse capaz de estampar com tanta pompa os estandartes da redenção, nem servir para enriquecer os afrescos de uma capela, ele trazia a singeleza de um palhaço. Ah, como era bom o circo - ela pensou - não havia espaço para tristezas no picadeiro... estavam todos tão ocupados. Quem dizia que o circo era triste, era porque não o entendia. Aquela atmosfera que, embora, pudesse, às vezes, ter ares de melancolia era somente para que os espectadores pudessem se recuperar da alegria imensa, porque o riso dói. E ela sentia na barriga a dor do riso.

Ela, agora, não estava mais sentada no balcão a considerar a vida, mas havia se transportado para o calor do circo, onde contemplava a vida leve e sorria. Era paz o que ela sentia e que tanto havia desejado. O pombo era sua sorte.

Cansado daquela dança de equilíbrios, desceu para terra segura, mas a segurança era somente o seu descuido: o pombo, agora, passeava com suas pernas desconjuntadas no meio da rua. A mulher deixava o circo para padecer no limbo dos aflitos que é o lugar daqueles que sofrem com a expectativa da perda. Não com as mãos, mas com o coração, ela se agarrava à vida do pombo e pedia-lhe que não morresse. O pombo já lhe era estimado demais.

E de repente, foi que o milagre aconteceu. Abrindo suas asas que, num assombro, se tornaram majestosamente poderosas, o pombo alçou um voo magnífico - seus movimentos cadenciados transformavam a cena no apogeu de um espetáculo, onde não se ouve os aplausos, pois o público está por demais hipnotizado para exprimir qualquer gesto - até que se tornou parte do afresco vivo do céu.

Foi assim que a mulher tendo presenciado o milagre e sabido que ele existe, é que passou a viver outros milagres durante sua vida. A vida da mulher foi longa e próspera.

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