(Homenagem à cadela Preta, morta em março de 2005, em Pelotas/RS)
Álvaro estava com pressa, mas não pode deixar de parar, ao perceber,
próximo à esquina de seu escritório, dois rapazes agredindo
um cachorro indefeso. Aproximou-se mais da cena, observando que se tratava de
uma cadela vira-latas. Gritou com os rapazes, mas o frenesi causado pela sede
de sangue, estampado nos olhos bestiais, causava-lhes temporária surdez.
Eram rapazes bem vestidos, carregando pastas de cursinho pré-vestibular.
A cadela gania, tentando fugir, mas estava presa por pequena corda improvisada.
Eram chutes e pauladas e, a cada golpe a cadela parecia desmontar. Álvaro
não gostava muito de animais, mas a cena era por demais hedionda e, quando
percebeu, estava agredindo e sendo agredido pelos rapazes. Um carro de polícia
que, coincidentemente passava para atender uma ocorrência, assustou os
rapazes, que saíram em disparada. Ligeiramente machucado, Álvaro
levou o animal para uma casa veterinária que ficava bem próxima
do local da agressão.
Era tarde, mas Álvaro percebeu que havia movimento dentro da clínica,
com a presença de algumas pessoas, apesar da porta fechada. Sem largar
a cadela, gritou até ser atendido e, com passos largos levou o animal
até a mesa de exames, explicando ao veterinário o que ocorrera.
Deixou seu número de telefone, dizendo que estaria fora, no fim de semana,
mas que, na volta, pagaria todas as despesas. Antes de partir, olhou com mais
atenção para o bichinho, despedindo-se; a cadela olhou docemente
para Álvaro, tentando abanar a cauda em agradecimento.
Em casa, o rapaz não conseguia dormir, pensando na crueldade dos rapazes
e nos ferimentos da cadela. Precisava acordar cedo para a viagem até
cidade próxima. Não podia faltar mais um final de semana, ou não
concluiria o mestrado. Sonolento, pela noite mal dormida, ouviu o despertador
e, em poucos minutos já estava na estrada.
As aulas e os colegas do curso fizeram com que Álvaro esquecesse do ocorrido,
retornando ao lar no dia seguinte. O sol já começava a se por,
ao final daquele sábado, dificultando um pouco a visão do rapaz.
Ligeira derrapada na curva, pequena poça de óleo, e Álvaro
perdia completamente o controle do carro, capotando e caindo para fora da estrada.
Acordou na escuridão da noite, com muita dor no abdômen e ferimento
na perna direita. Sem conseguir andar, saiu do carro rastejando, a procura de
socorro. O silêncio e a escuridão acentuavam as dores no corpo
e sede terrível o maltratava ainda mais.
Com os olhos acostumados à escuridão, vislumbrou pequeno e abandonado
barraco de madeira. Rastejou com sofreguidão, até sentir delicadas
mãos que, pelas costas, lhe seguravam sob as axilas. Uma moça
de pequena estatura e muito magra, aparecera do nada e tentava ajudar. Sem qualquer
palavra, arrastou Álvaro até no pequeno barraco e ficou assim,
calada, sentada ao seu lado, olhando com ternura. Álvaro adormeceu até
que os primeiros raios de sol começaram a iluminar a cabana. A moça
continuava ali, apenas olhando.
Sinto sede. Disse o rapaz, com dificuldade. A moça saiu e em pouco
tempo voltou com um pouco de água fresca, num recipiente improvisado
que mais parecia lixo jogado na beira da estrada. Álvaro bebeu com sofreguidão,
mas o ato de molhar os lábios já lhe trouxe alívio.
... Ajude! Estou ferido. Não posso ficar aqui. Falou para a moça.
Ela acariciou sua testa e esperou mais um pouco, como se estivesse aguardando
por alguém. Olhou docemente para o rapaz e levantou-se, indo em direção
à porta. Álvaro teve a sensação de que já
conhecia aqueles olhos, desejou falar com ela, perguntar seu nome, mas o esforço
fazia piorar a dor. Na porta, a moça lançou um último olhar
para o rapaz e saiu, para nunca mais voltar. Álvaro teve medo de ficar
sozinho, sentia gosto de sangue na boca e não sabia quanto tempo resistiria
naquele estado, mas a lembrança daqueles olhos de ternura traziam a paz
que ele precisava e a certeza de que não estava sozinho.
Antes de perder os sentidos, Álvaro viu um homem entrando no barraco.
Fique calmo, meu filho. Eu sou médico e você vai ficar bem.
Disse o estranho, gentilmente, enquanto examinava o rapaz e ministrava os primeiros
socorros.
No hospital, Álvaro já se sentia melhor, podia falar sem dor;
o médico que o salvara fazia a primeira visita, depois da cirurgia de
emergência que lhe salvara a vida.
Foi a moça que avisou que eu estava na cabana? Perguntou Álvaro,
ao médico.
Não. Não havia nenhuma moça naquele local. Respondeu
o médico, completando: Meu carro teve um pneu furado e tive que parar.
Percebi sinais de derrapagem e, um cachorro, latia sem parar, como se estivesse
me chamando para dentro do mato. Logo, vi seu carro e os sinais de sangue pelo
chão. Encontrei você, mas, infelizmente, teu cachorro sumiu.
Não é possível. Afirmou Álvaro. Havia uma moça
no local, ela me ajudou...
Não. Você estava sozinho no barraco e só havia pegadas
de cachorro pelo chão, impressas com teu sangue. Confirmou o homem.
Álvaro calou-se. De repente tudo fez sentido, só faltava identificar
aquele olhar de ternura e agradecimento, para saber quem era "a moça".
Na semana seguinte, em casa, Álvaro ouviu, sem qualquer surpresa, a mensagem,
na secretaria eletrônica, informando sobre o falecimento da cadela, ocorrido
na noite de sexta-feira. Não sabia se sentia tristeza ou alívio,
mas aquele episódio mudara sua vida e, sua primeira atitude, ao sair
da cama, foi adotar uma cadela vira-latas do Centro de Zoonoses, companheira
que lhe foi fiel por toda vida e, cujos olhos, lembravam uma velha amiga, protagonista
de sua mais incrível experiência, contraste inexplicável
entre a gratidão de um animal e a crueldade dos homens.
(Menção honrosa no 1º Concurso Guemanisse de minicontos e haicais)