Eu tinha uns quatro anos de idade quando encontrei a boneca. Minha bola passou
por cima do muro e foi parar no terreno vazio ao lado. Minha mãe me proibira
de sair do portão, mas eu não queria perder a minha bola, então
desobedeci.
A grama estava alta no terreno ao lado, e havia muito lixo. Comecei a procurar
minha bola e foi então que vi a boneca. Ela tinha olhos redondos e cabelo
castanho cacheado. Era muito bonita, mas estava toda suja. Fiquei pensando em
levá-la para casa, mas daí minha mãe ia saber que eu desobedecera,
então desisti.
No outro dia, voltei com um baldinho de praia cheio d´água, um
pano e uma escova de cabelo. Limpei o rosto da boneca e penteei seus cachos,
daí sentei-me ao seu lado e fiquei conversando com ela. Claro que ela
não me respondeu, afinal, bonecas não falam, mas fiz de conta
que me respondia.
No outro dia choveu muito e não pude ir ao terreno ao lado. Na verdade,
choveu por três dias seguidos, e daí, no quarto dia, como era sexta-feira,
fomos para a praia e voltamos só no domingo à noite. Na segunda,
corri para o terreno ao lado, mas a boneca não estava mais lá.
Eu me sentei no chão e chorei.
Isto aconteceu há nove anos atrás, mas nunca me esqueci da boneca.
Esta semana, pesquisando na internet, encontrei uma foto da minha boneca. Lá
estava ela, olhos redondos e cabelos castanhos cacheados. A foto era de nove
anos atrás. A legenda dizia:
"Você viu esta menina? Ela está desaparecida há uma
semana. Caso saiba seu paradeiro, por favor telefone para..."
Fiquei estarrecido. Minha boneca não era uma boneca! Com dedos trêmulos,
disquei o número que estava na legenda da foto. Talvez as pessoas que
morassem lá ainda fossem as mesmas. Uma voz feminina atendeu, e contei
sobre a boneca. O silêncio do outro lado foi tão longo que pensei
em desligar, mas daí ela me respondeu, e sua voz estava trêmula.
Eu lhe dei meu endereço.
No outro dia, a campainha da porta tocou e ouvi a voz de minha mãe me
chamando. Quando desci, havia dois homens de terno e uma senhora na sala. Sentei-me
com eles e contei tudo o que sabia sobre minha boneca que não era boneca.
Os homens tomaram notas e saíram para ver o terreno ao lado, mas ele
agora não é mais um terreno vazio. Construíram uma casa
muito bonita, e é onde meu amigo Paulinho mora. A mãe de minha
boneca que não era boneca ficou na sala, chorando baixinho, e minha mãe
colocou o braço nos ombros dela. Eu não sabia o que dizer então
não disse nada.
Ontem a mãe da minha boneca que não era boneca veio aqui em casa
e nos contou que pegaram os homens que a jogaram no terreno vazio ao lado. Eles
disseram onde haviam colocado o que sobrara dela, e hoje iam fazer uma cerimônia
para jogar as cinzas na lagoa. Por alguma razão, comecei a chorar. Era
como se eu fosse perder minha boneca outra vez, e então contei à
minha mãe e à mãe dela que eu queria tê-la trazido
para casa, mas fiquei com medo de que minha mãe se zangasse porque eu
não tinha permissão de ir no terreno vazio ao lado. A senhora
ficou muito emocionada e me abraçou.
Hoje a mãe da minha boneca que não era boneca veio aqui outra
vez. Ela me chamou e me entregou uma caixinha bem pequenina de prata muito bonita,
menor que uma caixinha de fósforos, como as caixinhas onde minha mãe
guarda seu remédio para a pressão. Ela me entregou a caixinha
com os olhos cheios de lágrimas.
"Não abra", ela me disse. "Já que você amou
a minha bonequinha, eu trouxe um pouquinho das cinzas para que você saiba
que não perdeu a sua boneca."
Eu não sabia o que dizer. Fiquei ali parado, segurando a caixinha.
"Você foi bondoso com ela. Tenho certeza de que ela estará
cuidando de você, como os anjinhos do céu."
Daí ela foi embora e subi ao meu quarto. Coloquei a caixinha na mesa
do computador e daí peguei um vaso com uma flor de seda que minha mãe
tinha no seu quarto e coloquei ao lado da caixinha. Daí não tinha
mais nada para fazer, então apaguei a luz e fui dormir.
Sonhei que minha boneca que não era boneca veio me visitar. Ela estava
muito bonita, com um vestido cor-de-rosa que ficava flutuando no ar. Ela se
sentou na minha cama e passou a mão no meu rosto, e eu me lembrei de
como havia lavado seu rosto com um pano e a água do baldinho exatamente
daquela maneira. Daí ela me sorriu.
" `brigada..."
E despertei. Agora estou escrevendo tudo isto para não esquecer, porque
a gente sempre se esquece dos sonhos quando acorda de manhã.