Nem vi de onde surgira aquele ônibus. Só sei que uma hora eu estava
dentro do meu carro, e na outra estava olhando a mim mesmo espatifado no asfalto.
"Ah, não! Não me diga que estou morto!"
Pois estava. Gritos, corrida, gente acudindo. Eu queria ficar para ver, mas
alguém estava me puxando pelo braço. Voltei-me, e quase dei um
salto para trás. Quem me puxava era um homem alto, ainda mais alto do
que eu, com cabelos loiros quase brancos caindo nos ombros. Acho que lhe devia
cair pelas costas, mas não pude ver. Não naquele momento, quero
dizer. Mas o que mais me surpreendeu foram seus olhos. Ele tinha enormes olhos
escuros, tão escuros que pareciam não ter fim, em um rosto ainda
mais pálido que o meu, e vestido em roupa de roqueiro sem guitarra.
"Venha comigo."
"Nem que a vaca tussa. Quem é você?"
"Azrael. Venha comigo."
Eu nem me mexi. Voltei-lhe as costas e fiquei observando o pessoal tentando
me colocar numa maca. Quando olhei para o homem outra vez, havia outro com ele.
Todo vestido de preto. Mesmas roupas de roqueiro sem guitarra que o outro. Pelo
menos aquele me sorriu, estendendo o braço.
"Venha conosco, Pedro."
"Não. Nem sei quem são vocês. Esse Azrael aí
tem uma cara de mau de assustar defunto. Bom - acho que sou defunto agora, né.
Pois ele parece o Anjo da Morte!"
O segundo homem riu.
"Arcanjo da Morte."
Só me faltava aquela.
"E não precisa ficar com medo. Ele não é nem mau,
nem bom. Se as pessoas têm medo da morte, isto não quer dizer que
a morte seja ruim. Para muitos, quero dizer. Para quem tem contas a prestar
é outra coisa."
Fiquei pensando rapidinho em tudo o que havia feito na vida. Não me
acalmou em nada.
"Mas esse Arcanjo aí não parece nem um pouquinho bondoso,
meu."
O Arcanjo nem parecia ouvir. Só ficou lá, parado.
"Ele não é nem bom, nem mau. Para dizer a verdade, ele não
tem emoção alguma."
Aquela conversa era surreal. Bom, se eu estava mesmo morto, a ponto de ser
levado pelo tal Arcanjo da Morte, nenhuma conversa ia ser real mesmo. Dei um
sorriso sem querer. O outro homem também sorriu.
"As pessoas têm medo da morte, e geralmente ficam apavoradas quando
Azrael aparece. Você tinha que ver o escândalo que algumas fazem
quando veem que não tem mesmo jeito."
"E não dá pra escolher não morrer?"
"A maioria não tem escolha, não. Chegou a hora delas, pronto.
Fim da linha. Daí elas se dão conta do que está acontecendo,
e é um tal de gritar e espernear... Até as pessoas boas, que viveram
uma vida decente, ficam apavoradas. É o medo do desconhecido."
Daí é que comecei a entender. Olhei para o Arcanjo.
"Ah... vai ver que é por isso que ele não pode ter emoções.
Senão ia ficar com pena delas e ninguém morria."
"Exatamente."
"E depois, o que acontece? Tem gente que acredita que, se a pessoa se
arrepende na última hora, vai direto pro céu. Eu não tive
tempo de nada, cara!"
"Amigo, só arrependimento não muda nada. As pessoas precisam
provar que estão arrependidas, tentar consertar o que fizeram. É
fácil se arrepender de algo, quando você está prestes a
pagar por tudo o que fez. O difícil é viver de acordo com o arrependimento.
Muita gente vive fazendo maldade pensando que, no último minuto, quando
já não há nada mais a perder, pode pedir desculpas e se
safar. Bom - Azrael já levou milhões de gente assim embora."
"Daí vem o Capeta e as pega?"
"Bom - isso eu não sei. Ninguém sabe, por sinal. Tem gente
que acredita que essas pessoas nascem outra vez, para pagar pelo mal. Outras
acham que elas vão queimar no inferno. Mas nenhuma delas pode provar
nada, porque ninguém voltou para contar como é que foi. Depois
que cruzam o túnel, ninguém volta. Bom, tem gente que nasce com
lembranças de vidas passadas, mas não se sabe até que ponto
o seu retorno foi para pagar alguma coisa, ou para ter a tal de segunda chance,
ou se as tais de lembranças não foram plantadas lá, para
que ela faça alguma. Sei lá."
"Olha, eu estudei em colégio religioso. Eles disseram que está
na Bíblia - que o homem morre só uma vez, e daí é
o juízo. Disseram que esse negócio de reencarnação
é besteira."
"Besteira é ficar discutindo coisas que não se pode provar,
e brigar por um monte de teorias. As pessoas se preocupam tanto em defender
suas teorias, que se esquecem das coisas mais importantes da vida. Daí,
quando Azrael vem, elas sabem que não têm provas e ficam apavoradas."
"Mas tem gente que não fica apavorada, não. Já li
um monte de histórias de pessoas que morrem feliz, e outras que morrem
para salvar alguém, ou coisas assim, e nem se preocupam com o que está
acontecendo com elas mesmas."
"É. Tem gente que vê a morte como se fosse mesmo só
uma passagem. E tem outras que não estão nem aí, de repente
dão a vida por alguém, e daí se redimem de qualquer coisa
ruim que tenham feito."
"Tá, chega de me enrolar os miolos. Então, cara de desastre
ou não, esse tal de Azrael aí não é nem bom nem
mau, só é. Mas vou lhe dizer uma coisa - se você não
tivesse aparecido, eu estaria gritando de medo! E diga-me só - você
também é algum Arcanjo? Como você se chama?"
Ele me deu um enorme sorriso.
"Eu me chamo Uriel, Pedro. O Arcanjo de Retribuição."
Fiquei petrificado. Era agora que eu estava perdido mesmo!
"Não se preocupe, amigo. Para você, venho em nome da Compaixão."
Ele passou o braço sobre meus ombros, e foi assim que entrei naquele
longo túnel escuro.
(Escrevi o conto acima baseado em um capítulo de meu novo livro, "O Herói", que aguarda editora para ser publicado. É claro que ele difere do livro em diversos pontos. Espero que gostem da leitura!)