A Garganta da Serpente
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Martinha artilheira

(Domi Chirongo)

"Eu não sei o que é o sucesso, mas sei o que é o fracasso.
Fracasso é tentar agradar a todos
."
Sammy Davis, Jr.

Calcule caro leitor, que ia passar pela Universidade quando deparei com uma senhora aparentando uma juventude desgastada. Estava sentada próximo do portão principal e vezes sem conta balbuciava sozinha. Ela estava num estado que não era habitual a uma mulher desta cidade. Estava num estado que raramente se via outra raça nele.

Entretanto, tempos depois cheguei ao serviço da minha antiga colega. Marta era seu nome, Martinha para os mais próximos. Ela era uma mistura de beleza exterior e atracção fatal interior. Era de uma claridade peculiar e uma pele macia, deslizante como o cabelo comprido que deixava escorrer. Tinha olhos enormes, meio introvertidos e ao mesmo tempo atacantes como de um gato não domesticado. Lembro-me que nos bancos de escola quando se falasse de maravilha feminina era dela que se imaginava.

Chegado ao serviço dela, vindo de longos anos de ausência e saudade, apressei-me a perguntar ao recepcionista:

- É possível falar com a Sra. Marta?
- Sra Marta?
- Sim... - Estava já receioso, se calhar ela agora era doutora.
- Vem por parte de quem?
- Venho duma casa particular. Ela é minha colega desde a infância. - Este tipo pensa que venho submeter um pedido de patrocínio - Pensei de mim para mim.
- Olha, a Marta já não trabalha aquí.
- Onde ela trabalha agora?
- Não sei. Penso que está a tirar curso de curandeira.
- (Risos)
- Então não sabe?
- O quê!
- Marta quando veio trabalhar aquí era de uma família simples, modéstia e humilde. Todavia, com o salário que auferia começou a comprar vestuário caro e da moda. Vezes sem conta aparecia encantadora e atraente mas o Director não dava por ela. O nosso Director é uma pessoa séria, contrariamente a muitos que se envolvem com secretárias. Como dizia, Marta era uma secretária brilhante e ambiciosa. Nós, os trabalhadores, passamos a ter como centro de conversa o vestuário dela. Ela era Linda! E todos nós éramos unánimes em afirmar que o nosso Director era um cego. Apesar de persistir uma certa desconfiança naquele relacionamento de trabalho! É que essa coisa de homens e mulheres tu nunca sabes quando é que se encontram ou se desencontram. Mas o Director e Marta parece-me que era só relacionamento profissional. No entanto, magoada por não conseguir seduzir o Director no intuito de torná-lo cúmplice nas suas ideias de desvio de dinheiro optou por agir sozinha. Exercitou a assinatura do seu chefe até conseguir fazê-la correctamente. Assim, passou a levantar o dinheiro no Banco em nome do Director. Aí vieram as festas, o vestuário encomendado no exterior, as viaturas, os jantares de luxo, entre outras ostentações. O Director boquiaberta não conseguia explicar toda aquela mudança da Secretária. Mas mesmo assim permanecia indiferente, até que num belo dia descobriu um desfalque monetário muito elevado no projecto em que chefiava. Quando tentou se informar encontrou uma assinatura similar a sua e que havia sido usada para levantamento de toda aquela soma monetária. "Não é possível", resmungava o chefe Francisco de um lado para outro. Todavia, aprofundando o problema veio a confissão da Marta. "Tens dois dias para tua defesa. Procure um bom advogado porque eu quero que tudo isto seja resolvido a limpo" - Disse-lhe Francisco já exausto e impaciente. Entretanto, no dia seguinte Marta falou sozinha "Espera pouco, eu vou mostrar para vocês o que é ter advogado imediato". Por conseguinte, apareceu de madrugada ainda escuro com uma senhora gordinha, de capulana, com um enorme cesto. Falou para o quarda que aquela senhora era sua tia que tinha de apanhar machimbombo muito cedo e apenas a acompanhou até ao serviço porque havia algo muito importante que Marta havia esquecido. Mas assim que levasse o que esquecera acompanharia a tia até a paragem. Naquela ingenuidade o guarda deixou-os entrar no prédio. Chegado ao gabinete dela, que era o mesmo ao dos colegas, Marta trancou muito bem a única porta e deixou a senhora gordinha entrar em transe. Esta acabou despindo as capulanas, incendiou as suas raízes e despejou aleatoriamente um pó preto por entre as paredes. Começou a amanhecer mas o transe continuava. As paredes tinham outros espíritos fortes. Marta começou a ouvir o som do elevador a subir e descer. Eram os trabalhadores chegando! Ela ficou aflita, olhava frequentemente o relógio, atrapalhada conseguiu perceber que afinal estava a lidar-se com outros pretos. Sete horas e trinta minutos, os colegas do sector batiam a porta e depois de um tempo ela abriu-a e contou uma desculpa não convincente e partiu a casa juntamente com a curandeira. Os colegas, espantados sentiam o cheiro a queimado que prevalecia na sala, viam algum pó no chão que não se conseguiu varrer a tempo, e documentos desarrumados. Um deles decidiu que não iria trabalhar alí naquele dia, e outros também enveredaram pela mesma iniciativa. Um outro teve a ousadia de telefonar ao Director e explicar o sucedido e a desconfiança do que poderia acontecer. O Director imediatamente compareceu no escritório e decidiu a interdição urgente de Marta no estabelecimento até que se resolvesse a problemática do desfalque. Aspecto impossível de inverter em termos racionais. Desde que ela foi comunicada dessa decisão até hoje nunca mais vimos Martinha. Mas é costume aqui no serviço dizer-se, em tom de brincadeira, que ela foi satisfazer a sua vocação de curandeira. Esta é a história da Martinha artilheira.

Quando o recepcionista me contou essa história sentí umas lágrimas nos olhos. Percebí que aquela mulher sentada ao pé da Universidade afinal era mesmo a Martinha que havia crescido comigo. Era a Martinha artilheira que agora estava desarmada.

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