Angélica. Este era o seu nome. Fora uma homenagem de sua mãe aquela
cantora e apresentadora loirinha, bonitinha e perfeitinha que aparecia na televisão.
Sonhava que sua filha, ao nascer, fosse igual aquela boa moça, como costumava
dizer.
Angélica não teve, ao contrário de sua xará inspiradora,
uma infância dita normal, pode-se assim dizer. Logo após seu nascimento
sua mãe foi abandonada pelo seu pai, mas logo ganhara um padrasto. Seu
nome era Osvaldo. Osvaldo sempre permaneceu indiferente à presença
daquela garotinha de rosto frágil e delicado, que passava as tardes brincando
na areia com suas bonecas, indiferente às atribulações
do dia.
Passavam assim os anos, até que determinado dia, aos oito anos, Angélica
voltava da escola quando foi empurrada por uma de suas colegas em uma brincadeira
hostil, esfolando seu joelho esquerdo e mais acima, logo apareceu um hematoma.
Dolorida e chorosa, foi para casa buscar o conforto de sua mãe, mas esta
estava trabalhando. Chegou em casa e ficou assistindo televisão, esperando
por sua mãe. Neste período Osvaldo acordou e, após ela
lhe relatar o ocorrido, prontificou-se a fazer um curativo em sua perna, enquanto
massageava sua perna dolorida. Com esta desculpa, pode tocá-la como a
muito desejava. Angélica naquele dia nada notara de diferente, mas depois
deste episódio estas cenas tornaram-se uma constante em sua vida. Seu
padrasto passou a tocá-la quase que diariamente. Semanas depois passou
a beijá-la na boca. E por fim, trazia seus amigos para que estes também
a beijassem. Angélica, que, não é preciso dizer, odiava
tudo aquilo, mesmo não compreendendo em sua plenitude a situação.
Mas era intragável aturar o cheiro daqueles cigarros fedorentos que entranhavam
as paredes velhas do quarto. Odiava sentir aquelas mãos ásperas
em seu corpo, odiava o hálito azedo de seus algozes e seus risos sarcásticos.
Odiava sua mãe por presenciar tudo aquilo e não fazer nada. Porque
sua mãe também dava beijinhos em Osvaldo e nos seus amigos. Mamãe
tirava sua blusa para eles. Odiava mais do que tudo na vida aquela situação.
Angélica apenas não sabia que odiava, em sua idade apenas não
compreendia estas coisas, ficando cada vez mais reclusa dentro de si mesma até
que um dia não mais falou.
Alguns anos depois, Osvaldo meteu-se em uma briga de bar e desferiu duas facadas
no peito de uma pessoa que morreu a caminho do hospital. Acabou sendo preso
por isto. Angélica passou a visitá-lo junto de sua mãe
todas as semanas no presídio. Calada e distante, presenciava a revista
efetuada pelos guardas do presídio. Olhava a fila de pessoas para a visita,
sentindo toda a tristeza e melancolia do ambiente. Ao contrário das outras
crianças, que brincavam indiferente a tudo, Angélica mantinha-se
quieta e calada imersa em seus pensamentos. Angélica também era
revistada. Como se fosse um objeto, era revistada, vasculhada, e tocada pelas
mãos ásperas e brutas da segurança do presídio.
Angélica passou a detestar ser tocada. Sentia asco e nojo quando uma
mão repousava em seu corpo. Na escola, Angélica era uma espécie
de fantasminha. Não se relacionava com ninguém, ficava sempre
solitária e calada, distante de tudo. Em uma festa de Natal na escola,
quando estava frente a frente com o bom velhinho e este lhe pediu um beijo,
ela naturalmente deu-lhe um beijo na boca. Inocentemente ria de seu ato, esperando
com este agrado ganhar o seu presente natalino, pois afinal, este era o tipo
de beijo a que estava acostumada. Mas o fato que culminou com sua saída
da escola deu-se quando determinado dia, na fila de sua turma, a professora
chegou e ordenou que tomassem distância. Ao sentir a mão de seu
colega em seu ombro, sentiu novamente aquela sensação de asco.
Mas somou-se a isto um sentimento até então despercebido por ela.
Ódio. Ódio por estar sendo tocada. Automaticamente, Angélica
virou-se e passou a desferir bofetadas no rosto de seu colega, sendo contida
pela professora quando já batia com a cabeça dele no chão.
O fato é que depois que Osvaldo fora preso, os abusos haviam cessado.
Mas o ódio que sentia de tudo era muito grande para ser esquecido e sua
alma ferida não encontrou remédio para esta enfermidade e tal
sentimento já acasalado estava em sua alma que Angélica jamais
voltou a se relacionar com alguém. Não ia mais a escola, ficava
em casa, normalmente em seu quarto, sempre calada. Gostava muito de desenhar
e quando o fazia, era notável sua habilidade para isto. Afora este passatempo,
Angélica isolou-se por completo dentro de si, tentando de alguma forma
não reavivar as tormentas de seu coração.
Passam-se os anos e a vida segue seu incontornável curso e hoje vemos
Angélica deitada em sua cama. O tempo mostra que Angélica cresceu.
Mas ainda mantém os gestos frágeis e conserva o mesmo rosto meigo
de sua infância. Se há alguma diferença física ela
está no seu olhar. Sempre distante, parecendo mirar o vazio. Angélica
está sozinha em casa. Sua mãe foi buscar Osvaldo na prisão,
de onde sairá hoje na condicional. Angélica levanta-se e dirige-se
até a cozinha. Pega um copo de leite e sorve-o até o fim, enquanto
abre a gaveta e puxa a mais afiada faca que está dentro dela. Lembra-se
de Osvaldo. Seu corpo treme só de pensar nele. Vai até o quarto,
coloca a faca embaixo de seu travesseiro e começa a desenhar. Desenha
a paisagem que consegue distinguir da janela de seu quarto. Desenha a grama
bem verde, o céu azul ensolarado com pássaros, onde crianças
brincam na rua arborizada. Apesar de que dificilmente a visão da janela
de seu quarto ofereceria uma cena assim. Mas adorava fantasiar este mundo enquanto
desenhava.
Subitamente, sua atenção volta-se para o barulho na porta. Estão
chegando. Mete a mão embaixo do travesseiro e agarra firmemente a faca.
Ouve a voz de sua mãe chamando-a ouve a voz de Osvaldo. Ódio.
Vagarosamente, dirige-se até a sala. Seus olhos marejados ardem como
fogo, as lágrimas parecem queimá-la por dentro para poder saírem,
mas ela não as deixa cair. Adentra a sala e contempla a figura de Osvaldo.
Péssima aparência, bastante envelhecido. Ódio. Apenas isso.
Rosto de Osvaldo. Ódio. Sua mãe ao seu lado, abraçando-º
Ódio. Osvaldo ri e mostra os dentes. Ódio. Osvaldo falou algo
que não foi distinguido por ela, enquanto atirava-se sobre ele e lhe
empurrava a faca em seu abdômen. Mas falta-lhe jeito e a faca perfura
apenas alguns centímetros acima da barriga. Mas ela ainda aproveita-se
pelo fato de Osvaldo estar surpreso e tenta uma nova investida, novamente frustrada,
apenas raspando de leve em seu rosto. Desarmada por Osvaldo, pos-se a correr
para fora de casa. Osvaldo foi atrás dela, chamando-a de todos os impropérios.
Na saída da porta de casa, Osvaldo tropeça e acaba caindo ao chão.
Angélica prontamente atira-se sobre Osvaldo, desta vez armada com um
portentoso pedaço de madeira, desferindo-o contra o rosto de Osvaldo.
Osvaldo cai inerte ao chão enquanto pedaços de dente e sangue
ejaculam de sua boca. Angélica contempla a sua visão, enquanto
Osvaldo tenta reerguer-se usando as mãos. Grande erro. Angélica
lembra-se. Espere. Faltam as mãos. Levanta o pedaço de madeira
de suas mãos e bate com toda a força que seu corpo possui, esfacelando
as mãos de Osvaldo. Depois, bate de novo. E de novo. E de novo. E mais
uma vez. Para alguns instantes para tomar fôlego e para enxugar os olhos
que não contém mais a infinidade de lágrimas que molham
seu rosto frágil e delicado. Angélica adentra em casa passando
por sua mãe que a observa horrorizada de longe, sem ter coragem de chegar
perto da filha. Vai até o banheiro e lava-se, tentando tirar as manchas
de sangue em seu rosto. Passa demoradamente a escova nos cabelos, dá
um sorriso em frente ao espelho e sai. Não sem antes de pegar sua bolsa
e colocar dentro a faca que tentara enfiar em Osvaldo.
Angélica vai até o Shopping. Ainda há muito ódio
em seu coração e mesmo tendo se vingado de Osvaldo, ainda há
muito para ser feito. É muito pouco para uma vida inteira perdida. Angélica
passeia pelo Shopping. Diverte-se neste mundo artificial. Olha para as pessoas
passeando, comprando, rindo, se divertindo. Difícil entender aquilo.
Não faz parte de seu mundo. Aliás, a partir de agora faz. O mundo
terá de aceitá-la e não ao contrário. Chega de varrer
a sujeira para debaixo do tapete. O mundo só deu-lhe sofrimento e nada
mais justo que retribuir tudo o que a humanidade lhe reservara. E assim pos-se
a passear pelo Shopping alheio aos olhares que recebia das pessoas. Talvez os
olhares devessem-se as manchas de sangue de Osvaldo em suas roupas.
Adentra em uma loja e dirige-se instintivamente para o setor de perfumarias.
Pega algumas amostras, passa sobre a pele. Adora sentir o odor suave daquelas
fragrâncias, parece o cheiro de outro mundo. Começa a percorrer
a loja, cheirando constantemente os braços e mãos perfumadas.
Olha lindas roupas, experimenta-as. Olha-se no espelho. Acha-se - com razão-
linda. Osvaldo começa a ficar para trás, é algo do passado.
Teve o que mereceu. Parece possível recomeçar uma nova vida. Acha
que depois de um tempo, poderá até amar e a falar. Não
percebe, mas está sorrindo.
Seus pensamentos são interrompidos bruscamente quando abre-se com violência
a cortina de seu provador. São duas mulheres. Responsáveis pela
segurança do local. No meio de seus sonhos e devaneios, não percebeu
quando entrou na loja que um grupo de mulheres, um bando de velhacas gordas
infelizes, vestindo-se como múmias, trataram de chamar a segurança
quando viram as manchas de sangue em sua roupa. Angélica nada responde,
pois não consegue falar. A segurança ainda a indaga se ela deseja
comprar algo. Logicamente, ela não possui recursos para comprar nada,
e responde apenas balançando negativamente sua cabisbaixa cabeça.
Angélica então passava a descobrir que este seu mundo maravilhoso
tinha um preço. Se o tivesse, faria parte deste mundo mesmo com o sangue
de terceiros como muitos ali. Caso não tivesse, deveria ser varrida para
debaixo do tapete. Atônita, Angélica sentia dentro de si novamente
uma raiva que começava a queimar-lhe as entranhas. Uma raiva que nascia
no esôfago e terminava nas extremidades de deus dedos. Foi quando a segurança
a puxou pelo braço para retirá-la dali. Foi tocada. E ela odiava
ser tocada. Sentia novamente mãos ásperas agredindo seu corpo,
a mão da segurança em nada se diferenciava da mão leviana
de Osvaldo, da mão complacente de sua mãe, da mão distraída
de seu colega, da mão brutal da segurança do presídio e
da sua mão que tapava seus olhos que se enchiam de lágrimas. Angélica
percebeu que jamais seria como as pessoas daquele lugar. E sentia muito ódio
por isto. Com a garganta embargada de tanto ódio, finalmente depois de
anos conseguiu falar. Não me toquem, foi o que disse. Ou ao menos o que
tentou dizer em seu urro sufocante. A estúpida guarda, que sentia orgulho
em servir e ser mandada, apertou-a com mais força e tentou puxá-la.
Esta manobra acabou rasgando o frágil tecido de seda do vestido que trajava,
deixando à mostra seu intocável seio, que balançava desajeitado
em meio aos puxões que recebia.
Angélica tirou da sua bolsa a faca que havia preparado para Osvaldo
e a enfiou no abdômen da segurança, que caiu ensanguentada
em meios as roupas. Angélica saiu correndo do provador com sua faca em
punho em meio às pessoas que, apavoradas, não sabiam direito o
que acontecia, e tentavam de alguma forma afastar-se daquele bastardo ser. Entrou
em uma livraria e começou a jogar para longe todos os livros da prateleira.
As pessoas da livraria começavam a sair correndo dali, ficando apenas
as pessoas que estavam em uma sessão de autógrafos no fundo da
loja, que ainda não haviam percebido o que estava ocorrendo. O escritor
que autografava quando percebeu o que ocorria começou a gritar de desespero
e a pular por cima das pessoas que gritavam ensandecidas. Angélica a
esta altura já havia colocado fogo em uma pilha de livros, e as chamas
já haviam alcançado o teto. Este feito dificultou o serviço
dos demais seguranças do Shopping, que haviam se dirigido pra lá.
A livraria já estava vazia, o lugar ardia em chamas em boa parte a os
esguichadores de água não davam conta de apagar a chama vermelha
que se alastrava com vigor.
Olhava em volta da livraria em chamas. Observou o rosto da funcionária
modelo do mês. Poderia ela ser uma pessoa modelo? Não, não
poderia. É tarde demais. Angélica era um caso individual específico.
Ela sabe disso. Olhava as chamas devorarem os livros nas estantes. A Felicidade
depende de você, dizia um que queimava. Não, Angélica jamais
seria feliz. É uma doente terminal. E não é possível
curá-la com um abraço se um abraço que a deixou assim.
Não se pode amá-la se do amor ela fugiu a vida inteira. Enquanto
divagava sobre isto ia instintivamente em direção ao fogo. Adentrando
naquela fogueira, Angélica livrava-se de todo o sofrimento que trazia
na carne. E, se a carne fora a causa do seu sofrimento, da carne agora ela se
livrava, bem como o mundo que a odiou e que agora assistia em silêncio
sua despedida.