A Garganta da Serpente
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Angélica

(Diego de Castro Capitão)

Angélica. Este era o seu nome. Fora uma homenagem de sua mãe aquela cantora e apresentadora loirinha, bonitinha e perfeitinha que aparecia na televisão. Sonhava que sua filha, ao nascer, fosse igual aquela boa moça, como costumava dizer.

Angélica não teve, ao contrário de sua xará inspiradora, uma infância dita normal, pode-se assim dizer. Logo após seu nascimento sua mãe foi abandonada pelo seu pai, mas logo ganhara um padrasto. Seu nome era Osvaldo. Osvaldo sempre permaneceu indiferente à presença daquela garotinha de rosto frágil e delicado, que passava as tardes brincando na areia com suas bonecas, indiferente às atribulações do dia.

Passavam assim os anos, até que determinado dia, aos oito anos, Angélica voltava da escola quando foi empurrada por uma de suas colegas em uma brincadeira hostil, esfolando seu joelho esquerdo e mais acima, logo apareceu um hematoma. Dolorida e chorosa, foi para casa buscar o conforto de sua mãe, mas esta estava trabalhando. Chegou em casa e ficou assistindo televisão, esperando por sua mãe. Neste período Osvaldo acordou e, após ela lhe relatar o ocorrido, prontificou-se a fazer um curativo em sua perna, enquanto massageava sua perna dolorida. Com esta desculpa, pode tocá-la como a muito desejava. Angélica naquele dia nada notara de diferente, mas depois deste episódio estas cenas tornaram-se uma constante em sua vida. Seu padrasto passou a tocá-la quase que diariamente. Semanas depois passou a beijá-la na boca. E por fim, trazia seus amigos para que estes também a beijassem. Angélica, que, não é preciso dizer, odiava tudo aquilo, mesmo não compreendendo em sua plenitude a situação. Mas era intragável aturar o cheiro daqueles cigarros fedorentos que entranhavam as paredes velhas do quarto. Odiava sentir aquelas mãos ásperas em seu corpo, odiava o hálito azedo de seus algozes e seus risos sarcásticos. Odiava sua mãe por presenciar tudo aquilo e não fazer nada. Porque sua mãe também dava beijinhos em Osvaldo e nos seus amigos. Mamãe tirava sua blusa para eles. Odiava mais do que tudo na vida aquela situação. Angélica apenas não sabia que odiava, em sua idade apenas não compreendia estas coisas, ficando cada vez mais reclusa dentro de si mesma até que um dia não mais falou.

Alguns anos depois, Osvaldo meteu-se em uma briga de bar e desferiu duas facadas no peito de uma pessoa que morreu a caminho do hospital. Acabou sendo preso por isto. Angélica passou a visitá-lo junto de sua mãe todas as semanas no presídio. Calada e distante, presenciava a revista efetuada pelos guardas do presídio. Olhava a fila de pessoas para a visita, sentindo toda a tristeza e melancolia do ambiente. Ao contrário das outras crianças, que brincavam indiferente a tudo, Angélica mantinha-se quieta e calada imersa em seus pensamentos. Angélica também era revistada. Como se fosse um objeto, era revistada, vasculhada, e tocada pelas mãos ásperas e brutas da segurança do presídio. Angélica passou a detestar ser tocada. Sentia asco e nojo quando uma mão repousava em seu corpo. Na escola, Angélica era uma espécie de fantasminha. Não se relacionava com ninguém, ficava sempre solitária e calada, distante de tudo. Em uma festa de Natal na escola, quando estava frente a frente com o bom velhinho e este lhe pediu um beijo, ela naturalmente deu-lhe um beijo na boca. Inocentemente ria de seu ato, esperando com este agrado ganhar o seu presente natalino, pois afinal, este era o tipo de beijo a que estava acostumada. Mas o fato que culminou com sua saída da escola deu-se quando determinado dia, na fila de sua turma, a professora chegou e ordenou que tomassem distância. Ao sentir a mão de seu colega em seu ombro, sentiu novamente aquela sensação de asco. Mas somou-se a isto um sentimento até então despercebido por ela. Ódio. Ódio por estar sendo tocada. Automaticamente, Angélica virou-se e passou a desferir bofetadas no rosto de seu colega, sendo contida pela professora quando já batia com a cabeça dele no chão.

O fato é que depois que Osvaldo fora preso, os abusos haviam cessado. Mas o ódio que sentia de tudo era muito grande para ser esquecido e sua alma ferida não encontrou remédio para esta enfermidade e tal sentimento já acasalado estava em sua alma que Angélica jamais voltou a se relacionar com alguém. Não ia mais a escola, ficava em casa, normalmente em seu quarto, sempre calada. Gostava muito de desenhar e quando o fazia, era notável sua habilidade para isto. Afora este passatempo, Angélica isolou-se por completo dentro de si, tentando de alguma forma não reavivar as tormentas de seu coração.

Passam-se os anos e a vida segue seu incontornável curso e hoje vemos Angélica deitada em sua cama. O tempo mostra que Angélica cresceu. Mas ainda mantém os gestos frágeis e conserva o mesmo rosto meigo de sua infância. Se há alguma diferença física ela está no seu olhar. Sempre distante, parecendo mirar o vazio. Angélica está sozinha em casa. Sua mãe foi buscar Osvaldo na prisão, de onde sairá hoje na condicional. Angélica levanta-se e dirige-se até a cozinha. Pega um copo de leite e sorve-o até o fim, enquanto abre a gaveta e puxa a mais afiada faca que está dentro dela. Lembra-se de Osvaldo. Seu corpo treme só de pensar nele. Vai até o quarto, coloca a faca embaixo de seu travesseiro e começa a desenhar. Desenha a paisagem que consegue distinguir da janela de seu quarto. Desenha a grama bem verde, o céu azul ensolarado com pássaros, onde crianças brincam na rua arborizada. Apesar de que dificilmente a visão da janela de seu quarto ofereceria uma cena assim. Mas adorava fantasiar este mundo enquanto desenhava.

Subitamente, sua atenção volta-se para o barulho na porta. Estão chegando. Mete a mão embaixo do travesseiro e agarra firmemente a faca. Ouve a voz de sua mãe chamando-a ouve a voz de Osvaldo. Ódio. Vagarosamente, dirige-se até a sala. Seus olhos marejados ardem como fogo, as lágrimas parecem queimá-la por dentro para poder saírem, mas ela não as deixa cair. Adentra a sala e contempla a figura de Osvaldo. Péssima aparência, bastante envelhecido. Ódio. Apenas isso. Rosto de Osvaldo. Ódio. Sua mãe ao seu lado, abraçando-º Ódio. Osvaldo ri e mostra os dentes. Ódio. Osvaldo falou algo que não foi distinguido por ela, enquanto atirava-se sobre ele e lhe empurrava a faca em seu abdômen. Mas falta-lhe jeito e a faca perfura apenas alguns centímetros acima da barriga. Mas ela ainda aproveita-se pelo fato de Osvaldo estar surpreso e tenta uma nova investida, novamente frustrada, apenas raspando de leve em seu rosto. Desarmada por Osvaldo, pos-se a correr para fora de casa. Osvaldo foi atrás dela, chamando-a de todos os impropérios. Na saída da porta de casa, Osvaldo tropeça e acaba caindo ao chão. Angélica prontamente atira-se sobre Osvaldo, desta vez armada com um portentoso pedaço de madeira, desferindo-o contra o rosto de Osvaldo. Osvaldo cai inerte ao chão enquanto pedaços de dente e sangue ejaculam de sua boca. Angélica contempla a sua visão, enquanto Osvaldo tenta reerguer-se usando as mãos. Grande erro. Angélica lembra-se. Espere. Faltam as mãos. Levanta o pedaço de madeira de suas mãos e bate com toda a força que seu corpo possui, esfacelando as mãos de Osvaldo. Depois, bate de novo. E de novo. E de novo. E mais uma vez. Para alguns instantes para tomar fôlego e para enxugar os olhos que não contém mais a infinidade de lágrimas que molham seu rosto frágil e delicado. Angélica adentra em casa passando por sua mãe que a observa horrorizada de longe, sem ter coragem de chegar perto da filha. Vai até o banheiro e lava-se, tentando tirar as manchas de sangue em seu rosto. Passa demoradamente a escova nos cabelos, dá um sorriso em frente ao espelho e sai. Não sem antes de pegar sua bolsa e colocar dentro a faca que tentara enfiar em Osvaldo.

Angélica vai até o Shopping. Ainda há muito ódio em seu coração e mesmo tendo se vingado de Osvaldo, ainda há muito para ser feito. É muito pouco para uma vida inteira perdida. Angélica passeia pelo Shopping. Diverte-se neste mundo artificial. Olha para as pessoas passeando, comprando, rindo, se divertindo. Difícil entender aquilo. Não faz parte de seu mundo. Aliás, a partir de agora faz. O mundo terá de aceitá-la e não ao contrário. Chega de varrer a sujeira para debaixo do tapete. O mundo só deu-lhe sofrimento e nada mais justo que retribuir tudo o que a humanidade lhe reservara. E assim pos-se a passear pelo Shopping alheio aos olhares que recebia das pessoas. Talvez os olhares devessem-se as manchas de sangue de Osvaldo em suas roupas.

Adentra em uma loja e dirige-se instintivamente para o setor de perfumarias. Pega algumas amostras, passa sobre a pele. Adora sentir o odor suave daquelas fragrâncias, parece o cheiro de outro mundo. Começa a percorrer a loja, cheirando constantemente os braços e mãos perfumadas. Olha lindas roupas, experimenta-as. Olha-se no espelho. Acha-se - com razão- linda. Osvaldo começa a ficar para trás, é algo do passado. Teve o que mereceu. Parece possível recomeçar uma nova vida. Acha que depois de um tempo, poderá até amar e a falar. Não percebe, mas está sorrindo.

Seus pensamentos são interrompidos bruscamente quando abre-se com violência a cortina de seu provador. São duas mulheres. Responsáveis pela segurança do local. No meio de seus sonhos e devaneios, não percebeu quando entrou na loja que um grupo de mulheres, um bando de velhacas gordas infelizes, vestindo-se como múmias, trataram de chamar a segurança quando viram as manchas de sangue em sua roupa. Angélica nada responde, pois não consegue falar. A segurança ainda a indaga se ela deseja comprar algo. Logicamente, ela não possui recursos para comprar nada, e responde apenas balançando negativamente sua cabisbaixa cabeça. Angélica então passava a descobrir que este seu mundo maravilhoso tinha um preço. Se o tivesse, faria parte deste mundo mesmo com o sangue de terceiros como muitos ali. Caso não tivesse, deveria ser varrida para debaixo do tapete. Atônita, Angélica sentia dentro de si novamente uma raiva que começava a queimar-lhe as entranhas. Uma raiva que nascia no esôfago e terminava nas extremidades de deus dedos. Foi quando a segurança a puxou pelo braço para retirá-la dali. Foi tocada. E ela odiava ser tocada. Sentia novamente mãos ásperas agredindo seu corpo, a mão da segurança em nada se diferenciava da mão leviana de Osvaldo, da mão complacente de sua mãe, da mão distraída de seu colega, da mão brutal da segurança do presídio e da sua mão que tapava seus olhos que se enchiam de lágrimas. Angélica percebeu que jamais seria como as pessoas daquele lugar. E sentia muito ódio por isto. Com a garganta embargada de tanto ódio, finalmente depois de anos conseguiu falar. Não me toquem, foi o que disse. Ou ao menos o que tentou dizer em seu urro sufocante. A estúpida guarda, que sentia orgulho em servir e ser mandada, apertou-a com mais força e tentou puxá-la. Esta manobra acabou rasgando o frágil tecido de seda do vestido que trajava, deixando à mostra seu intocável seio, que balançava desajeitado em meio aos puxões que recebia.

Angélica tirou da sua bolsa a faca que havia preparado para Osvaldo e a enfiou no abdômen da segurança, que caiu ensanguentada em meios as roupas. Angélica saiu correndo do provador com sua faca em punho em meio às pessoas que, apavoradas, não sabiam direito o que acontecia, e tentavam de alguma forma afastar-se daquele bastardo ser. Entrou em uma livraria e começou a jogar para longe todos os livros da prateleira. As pessoas da livraria começavam a sair correndo dali, ficando apenas as pessoas que estavam em uma sessão de autógrafos no fundo da loja, que ainda não haviam percebido o que estava ocorrendo. O escritor que autografava quando percebeu o que ocorria começou a gritar de desespero e a pular por cima das pessoas que gritavam ensandecidas. Angélica a esta altura já havia colocado fogo em uma pilha de livros, e as chamas já haviam alcançado o teto. Este feito dificultou o serviço dos demais seguranças do Shopping, que haviam se dirigido pra lá. A livraria já estava vazia, o lugar ardia em chamas em boa parte a os esguichadores de água não davam conta de apagar a chama vermelha que se alastrava com vigor.

Olhava em volta da livraria em chamas. Observou o rosto da funcionária modelo do mês. Poderia ela ser uma pessoa modelo? Não, não poderia. É tarde demais. Angélica era um caso individual específico. Ela sabe disso. Olhava as chamas devorarem os livros nas estantes. A Felicidade depende de você, dizia um que queimava. Não, Angélica jamais seria feliz. É uma doente terminal. E não é possível curá-la com um abraço se um abraço que a deixou assim. Não se pode amá-la se do amor ela fugiu a vida inteira. Enquanto divagava sobre isto ia instintivamente em direção ao fogo. Adentrando naquela fogueira, Angélica livrava-se de todo o sofrimento que trazia na carne. E, se a carne fora a causa do seu sofrimento, da carne agora ela se livrava, bem como o mundo que a odiou e que agora assistia em silêncio sua despedida.

  • Publicado em: 27/07/2005
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