Fecha o livro de astronomia. Desliga o computador do escritório. Amarra
os sapatos, tira o paletó da cadeira e o veste. É noite. Hora
de ir pra casa. Dá tchau pra secretária, pro ascensorista digital
solitário, e, enfim, pro porteiro da garagem da empresa. Dirige até
o sinaleiro.
Trânsito inesperado.
Enquanto as luzes do sinaleiro dançam, olha pra cima. Aquele céu
marrom... Que inveja das noites na fazenda! Enquanto as luzes de freio e dos
faróis dançam, erradamente ele vê a Lua no canto do pára-brisa.
Tá cheia, a danada. Um casal se beija perto da placa de Permitido Estacionar,
sob toda aquela luz azulada, refletida do Sol, rebatendo na Terra. Tá
frio, 16 graus no termômetro do lado direito da avenida. Nada se meche:
trânsito letárgicomorosolentorastejantelesmento.
Dá pisca pra direta. Espera uns carros passarem. Enfim, estaciona. Vai
esperar o trânsito melhorar. Desculpa pra si mesmo: quer apreciar o borrão
errante no céu. Ela meio que se confunde na poluição visual
de néons e placas brilhosas, mas se destaca no cobertor estelar. Passa
um avião. Não mais ao charme da pueril bruxinha passando com a
vassourinha na frente da Lua grande, então ao avião pisca-pisca.
O Sr. Contempla. Sem reclamar.
Frio. Esforça-se pra esquentar as mãos. Pega a carteira pra conferir
a foto de sua esposa. Deve tá preparando o jantar, essa hora. O apartamento
frio, na selva de cimento. Ainda assim pode ser chamado de lar: qualquer barraco
é lar se tem uma pitada de amor e de poesia. A filha dormindo pra acordar
cedo pra ir pra escola. O filhão falando com a namorada pela net, tentando
esquecer a escola. Lar, doce
rotina.
"Engraçado, na praia dá pra ver o coelhinho na Lua. Aqui
na cidade parece mais uma bola branca, uma mancha na escuridão celeste."
Por um momento, distrai-se com a não-visão do infinito. O que
deve ter lá, depois do CO2 e da fuligem, depois das nuvens, e do ozônio;
lá, bem lá? Que tem? Sortudo o Gagarin, muito sortudo. Toda aquela
vastidão, aquela consciência de sermos pequenos. Deve ter voltado
um pouco menos confiante, depois que viu como juntos formávamos um azul.
Por que a Gaia é tanta água... Nosso corpo é tão
menos aquático que deve dar uma impotência perante aquela vastidão
oceânica. Sortudo, muito.
Subitamente, começa a sentir o frio aumentando. Mas distrai-se divagando
pra fora da fumaça vomitada pelos carros que passam a sua frente. Lá,
bem lá. Tudo é grande, e Relativo, e Incerto, e Improvável.
Tal qual Einstein, Heisenberg e o matemático famoso talvez fossem humanos
demais para prever. Talvez seja a grande pedra que o Criador não consiga
levantar.
Esfria mais. Muito mais. Estranho... Como pode esfriar tanto em apenas alguns
minutos?
Termômetro: 16 graus.
Ele abaixa a cabeça e não vê mais a carteira em suas mãos.
Olha para trás, e vê quatro moleques correndo, tentando ultrapassar
a velocidade que a vergonha leva para se projetar em suas faces. Ou, talvez,
para mentirem pra si próprios que conseguiram enganar mais um trouxa,
como manda o jeitinho brasileiro.
Mas isto não explicou o frio, até olhar pra sua camisa Armani
enrubescida tal qual nem um vinho poderia enrubescer. No chão, um pequeno
canivete errante.
O cidadão cai. De costas.
O casal que se beijava não mais está ali. Os carros continuam,
não mais o estão vendo, talvez ignorando-o. Sabe lá Deus.
Resiste fechar os olhos, pois ela ainda está lá, alta porque
brilha. E se tudo vale a pena se a alma não é pequena, ele há
de admirar aquele brilho - tal qual uma luz no fim do túnel - enquanto
seu sangue é entornado por suas veias, esquentando suavemente a calçada
fria, da cidade fria.
Vermelho, oh! mundo de sangue azul.