A viagem fora longa, mas valera a pena. Era impressionante a imagem da pequena
cidade soterrada, coberta por pedras e lava. Uma poeira escura pairava no ar ainda aquecido, trágica memória de uma erupção recente. Sobressaindo altivo e resistindo miraculosamente às intempéries, restava, solene, o campanário da igreja.
Aproximaram-se das ruínas e, deixando o carro protegido, subiram a montanha,
lentamente, gravando na retina a imagem da destruição. Estavam
em um país estranho, cujo idioma não dominavam, e o povo, em sua maioria, não
entendia seu inglês arranhado. Mas não se preocupavam com isso.
Tinham conseguido seu objetivo, e agora, extasiados, observavam o vulcão, aparentemente adormecido.
Sentaram-se alguns níveis abaixo, sobre a manta que Marcos teve o cuidado
de levar. O sol, inclemente, refulgia nos cabelos castanhos de Dhalia, criando
inúmeros reflexos dourados. Deram-se as mãos. Deixaram-se ficar
por alguns momentos, com os pensamentos perdidos, os olhares voltados para o
cimo da montanha.
Viviam juntos havia algum tempo e mantinham uma relação fora
dos padrões usuais. Embora se amassem em demasia, seu relacionamento
era totalmente platônico, sem nenhuma conotação sexual. Dhalia aceitara,
a princípio, essa imposição de Marcos, julgando que fosse
mais uma forma de apimentar o relacionamento. Afinal, ele sempre fora bom nisso. Logo que o conhecera sentira-se irresistivelmente atraída por seu charme incrível. Rendera-se,
de imediato, não se fazendo de difícil. Foram para a cama logo no
primeiro encontro. Marcos sabia como enlouquecer uma mulher. Era perito em uma
série de pequeninos jogos sexuais, sutis, que estimulavam suas fantasias e faziam-na
ficar, por horas, ligada, desejando revê-lo. Era um grande amante.
Dhalia não entendeu a mudança de comportamento quando passaram
a viver juntos. Por vezes, ele a levava ao orgasmo do jeito que ela gostava,
através do sexo oral. Entretanto, ficava nítida a sensação de que
faltava alguma coisa. Era um prazer que a humilhava, visto ele não aceitar
a reciprocidade.
Além do mais, ela queria o amante por inteiro. Com o passar do tempo
foi escasseando. Talvez fosse este o objetivo desejado.
Nunca, desde que passaram a ter uma vida em comum, ele permitiu que ela o tocasse
da cintura para baixo. Tinham quartos e banheiros separados. Não havia a menor intimidade entre eles. Era como se fossem irmãos.
Aos quarenta anos, Dhalia era uma mulher bonita, de corpo trabalhado por infindáveis
horas de ginástica e dotada de grande sensualidade. Tivera outros amantes antes de Marcos, era experiente, e sabia como agradar a um homem.
Por isso mesmo, não conseguia compreender o comportamento do companheiro. Perguntava-se a si mesma como uma pessoa pôde mudar de forma
tão repentina. Chegou até a pensar que ele estivesse seriamente
doente, quem sabe contaminado pela AIDS. Sofreu em silêncio, pois Marcos, apesar de
carinhoso, se mantinha distante em relação a este problema. Não
percebia ou fingia não notar a aflição da amante. Houve um momento
em que a situação insuportável os forçou a uma conversa
definitiva. Dhalia assim o exigiu.
- Marcos, o que é o amor para você?
- Carinho, afeto, respeito.
- E sexo?
- Sexo envolve uma relação de poder, de dominação.
Não é amor.
- Mas, no início... balbuciou, ela, aturdida.
- Não nos amávamos como agora. Estávamos só nos
experimentando.
Ante o olhar espantado da mulher, completou:
- Agora é definitivo, pelo menos para mim. Jamais te deixarei. E não
preciso do sexo para provar que te amo. Ao contrário, creio firmemente
que ele deterioraria nosso amor.
Dhalia, a custo, foi obrigada a reconhecer que ele estava sendo sincero.
Dali para frente, não tocaram mais no assunto.
Ela não seria capaz de precisar quando aquela ideia lhe brotou
na mente. Talvez o desespero que a envolvia, pressionando dolorosamente como um nó
em sua cabeça. O fato é que resolveu conhecer um vulcão
vivo. Marcos, que não lhe negava nada, concordou imediatamente com a ideia e começaram a tecer planos para a viagem. Como ambos tivessem férias acumuladas,
foi fácil ajeitar as coisas. Assim, dentro de pouco tempo, partiram para a grande aventura.
Resolveram ir a um local pouco conhecido, na Ásia, onde eram frequentes vulcões em atividade.
E agora estavam ali, frente a frente com a fera adormecida, como que a operar
lauta digestão.
- Quero ir até o cume, disse Dhalia.
Marcos franziu as sobrancelhas e advertiu:
- Querida, pode ser perigoso.
- Se você tem medo, eu vou sozinha, desafiou resoluta.
Com um suspiro, ele cedeu. Escalaram a montanha íngreme, se apoiando
cuidadosamente nas rochas, algumas escorregadias, com vestígio de salitre.
Marcos ia à frente, cavalheirescamente parando e ajudando a companheira.
Por fim, chegaram lá. Dhalia, tomada pela curiosidade quis ver mais de
perto.
- Não, amor. É muito quente.
- Que nada. Olha só que beleza! Vem, insistia ela, sorridente. Parecia
até feliz.
Ele se acercou aos poucos. Olhava-a sério:
- Dhalia. Sei o que você está pensando.
- Sabe nada. Ela ria, satisfeita.
Nunca lhe pareceu tão bela. Aproximou-se com o lenço no nariz
pois as narinas reagiam incomodadas com o forte cheiro de enxofre.
- Vamos embora, a gente conversa lá embaixo.
- Mas não há nada pra ser conversado, não é mesmo?
Os olhos dela estavam marejados de lágrimas. Ele a abraçou, comovido.
- Sabe, Dhalia, não faço por mal.
Parou um pouco, como que engasgado. Viu-a se desembaraçar de seus braços.
Era difícil para ele explicar. Quando conseguiu falar, o fez quase gritando,
torcendo as mãos involuntariamente:
- É que eu simplesmente não consigo! Não posso, te amando
tanto, macular este sentimento fazendo sexo contigo. Entende, pelo amor de Deus!
Estava quase chorando. Reconhecia o sofrimento imposto à mulher, mas
ele, também, sofria muito. A seu ver, a pureza do amor que nutria por
Dhalia transcendia a qualquer relação carnal. Como fazê-la aceitar
isso?
Ela voltou a se aproximar e, olhando-o com extrema doçura, lhe envolveu
o pescoço com os braços bronzeados. Fitaram-se por um longo momento.
Beijaram-se. Foi um beijo profundo, apaixonado. Ela o olhou mais uma vez fixamente,
dentro dos olhos, como se quisesse penetrá-los:
- Marcos, presta atenção. Falava calma e pausadamente. Sou como
este vulcão. Ardente e impetuosa, precisando dar vazão à essa lava que me queima
e transborda. Poderia ter-te traído, se o quisesse, não faltaram oportunidades.
Ele assentiu, balançando a cabeça.
- Mas não. Quis ser fiel a ti, acima de tudo. Teu amor não é
maior que o meu!
Marcos compreendeu. Viu-a, por fim, em paz. Pressentia o que ia acontecer mas
não queria, por nada neste mundo, se desvencilhar da sua amada. Sentiu-a empurrando-o lentamente e, se bem que estivesse de costas, sabia que caminhavam em direção à borda fumegante. Estava como que hipnotizado.
Dhalia se mantinha abraçada a ele. Ofereceu-lhe os lábios. Beijaram-se
apaixonadamente, mais uma vez.
- Te amo, coração adorado! Murmurou ela.
- Te adoro, vida minha!
O carro alugado foi resgatado pelo pessoal da agência após muitos
dias de procura. Abandonado, permanecia próximo à cidade calcinada.
Quanto a seus passageiros, nada se soube a respeito. Se abandonaram o veículo, deixaram
para trás, também, os seus pertences e documentos. Não
voltaram para reclamá-los.
Para os amigos do casal, seu desaparecimento foi uma grande surpresa e tornou-se
motivo de conversas intermináveis para as quais não haviam respostas.
(Escrito em 29/06/02)