A Garganta da Serpente
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Empate

(David Duarte)

Entrada lateral oposta, pelas arquibancadas. Teria que dar a volta em quase todo o estádio para chegar ao portão correspondente. Pagar três vezes mais, cair na mão de cambista para andar que nem um louco, e, o que é pior, perder os dois primeiros gols, fulminantes. Não tinha jeito. Não há replay, quem viu, viu. Quem não viu...

Tarde esbaforida, Vasco, dois a zero. Em menos de dez minutos! Fogos. O "baixinho" em campo. Bola rasteira, sem chance para o goleiro. Scolari, serpenteando, pra lá e pra cá, dentro do pequeno retângulo pontilhado, como uma fera naquela jaula de grades imaginárias, oprimido, nariz retorcido, bufando sob os bigodes, a calva vermelha, quase enfartando... A torcida chiava, terrível, provocando em coro, no grave das populares: "Felipão, boiola! Tu veio aqui só pra ver gol do Viola..."

Aderbal é um homem de opinião, embora pacato, com seu típico semblante de esperar ônibus, absorto, porém resignado. É um mestre nas conjecturas de botequim, cheio de uma sabedoria que só se vê da Tijuca pra lá. Ao sair de casa, já em cima da hora, tinha certeza de que aquele domingo não passaria de mais um, cheio de fortes emoções, com muita gritaria, sustos, lamentos e, quem sabe, até algumas lágrimas, que futebol é o único motivo pelo qual homem chora. Tudo certo. Cruz de Malta no peito, boné de "É Campeão", comprado na Feira de Acari, pilhas novas no radinho Am-Fm, e uns trocos para o "cai-duro".

A Avenida Américo de Moura fica intransitável em dias de jogo. Bem perto dali, num hotelzinho meia estrela, uma mulher fuma um cigarro de filtro amarelo, debruçando o decote espanhol sobre o parapeito de uma das janelas. Observa com muita atenção cada um que passa com pressa, dirigindo-se ao coliseu de São Cristóvão. É Dodora, diminutivo de Theodora, nome do qual, aliás, o marido nunca quis abrir mão. Ele nunca usara o apelido. Sentia um orgulho, enchia a boca: "The-o-do-ra!". Talvez, intuitivamente, tenha mesmo se casado com ela por causa da imponderável sensação de fidelidade que inflexão do nome imprimia. Entretanto, e por força de um cruel antagonismo, o que ninguém - e principalmente seu marido - sabia, era o quanto, por detrás daquela pele bem alva, Dodora escondia a alma de uma mulher tremendamente dissimulada, compilando virtuosamente, dentro da mesma mente distorcida, princípios e prevaricações. Tinha mãos de rainha, e sua exuberância frontal poupava-lhe palavras, tempo e dinheiro. A aliança, esta ela não tirava nunca, sentia-se nua, costumava sempre dizer em tom de autêntica austeridade. Aos poucos foi descobrindo que o que mais gostava em seu marido era aquela fervorosa paixão por futebol, sentimento cultivado com uma métrica religiosa. Dodora nunca foi hipócrita: uma daquelas pessoas que fala pouco, que é para ter que mentir o menos possível.

Quarenta e quatro do primeiro tempo. O chão estremece na hospedaria. Goooooool! Mais um do Vasco. O três a zero antes do intervalo já esboçava uma vitória antológica, histórica. Mais fogos. O céu estala. Euforia em uníssono, tomando conta do ar quase rarefeito do final de semana praticamente irreal... Não sem demonstrar certo incômodo, Dodora sente um frêmito quando Marciano aproxima-se por trás, deslizando as mãos grandes pelo acetinado da combinação bordô, ao mesmo tempo em que dali se ouve a rouquidão aguda, quase frenética do apito do árbitro, encerrando a primeira etapa da partida. Fanfarra, cornetas... Aplausos... Com desdém, a mulher livra-se dos tentáculos do seu parceiro e interpela um jovem que passa lá embaixo, na calçada: "Ô moleque, de quem foi esse último gol aí?" "Juninho Pernambucano, tia! Bola parada. Um golaço, na gaveta. Vascoooo!", gritou o rapaz, precipitando-se na algazarra que tomava as ruas adjacentes.

Ela catapulta o filtro do cigarro como se soltasse um rojão.

Ergueu-se, respirando fundo entre os dentes separados, que exibiram um sorriso tão inconveniente quanto malicioso. Vira-se, num rompante de lascívia e deboche, agarra Marciano, encaixando o mulato entre as coxas. Este, por sua vez, vai logo tratando de envergá-la contra a cômoda vazia. O único laço que unia aqueles dois era o fato de mutuamente saberem muito pouco a respeito um do outro. De repente Dodora grasnou, extremamente irônica: "Botafogo... Ainda se fosse tricolor! Ô meu neguinho, tinha outro time pra torcer, não? Vem cá, vem, meu sofredor!" E o homem disparou, boçal e sarcástico, transfigurado num semblante que mais parecia uma caricatura do Baptistão: "Melhor ser Botafoguense sofredor, do que vascaíno corno...". Caíram numa gargalhada sinistra que se misturou ao rangido da velha cama de molas do hotel Lusitânia.

O sol da tarde despencou, quando uma brisa trouxe a noite definitiva que acendeu os refletores de São Januário.

O segundo tempo começou a esboçar um drama épico. Aderbal, tomado de angústia, sentia o peito dormente e ao mesmo tempo sufocado, como se pressentisse que algo de tenebroso estivesse acontecendo. A cabeça começava a doer. Os times se movimentavam como um cardume, e a bola incandescente, protagonizando o intrigante espetáculo, teimava em não querer deixar a grande área do Vasco. Os zagueiros se digladiando em pontapés, voadoras, cotoveladas e xingamentos inúteis. Treze minutos. Oseias livra-se de Rincon, invade pela direita e o inefável acontece: Goooooool... Mais um do Cruzeiro. Três a dois. Mandinga! Romário, impotente, esquecido na intermediária do time adversário, balança a cabeça negativamente, com ares de extrema reprovação. Um ruge-ruge emergiu do silêncio funesto. Aderbal não tinha mais reservas para acreditar no inacreditável. Certo ar de violência doméstica tomou conta de todo o inconsciente coletivo, enquanto a eternidade dos noventa minutos insistia. Moedas começaram a chover no gramado. Cheios de razão, os mais exaltados esbugalhavam os olhos, exibindo notas de Real, enquanto o grito de guerra afrontava, intercalado com os tambores treme-terra: "Bacalhau... Vendido... Bacalhau... Vendido... Vendido!".

A esta altura, os urros de Dodora estremeciam as paredes do quarto. Aderbal chorou, quando, numa espécie de golpe de misericórdia, o time visitante fez o seu ultimo e fatídico gol. São Januário inteiro sentiu sua dor... Sem contar que, um pouco antes, o Vasco da Gama ainda acertara duas bolas na trave. E o juiz decreta, num incisivo trinado em semibreve: típico empate com amargo sabor de derrota. Sinal da cruz.

Marciano já havia partido, quando Theodora, iluminada pelo néon desbotado do hotel, já enfeitava novamente a janela, na rapina de mais um torcedor: "Agora tem que ser vascaíno". Vestiu-se numa peça íntima bordada com o escudo do Clube de Regatas Flamengo, acendeu mais um cigarro e abriu a porta com cara de santa.

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