Entrada lateral oposta, pelas arquibancadas. Teria que dar a volta em quase
todo o estádio para chegar ao portão correspondente. Pagar três
vezes mais, cair na mão de cambista para andar que nem um louco, e, o
que é pior, perder os dois primeiros gols, fulminantes. Não tinha
jeito. Não há replay, quem viu, viu. Quem não viu...
Tarde esbaforida, Vasco, dois a zero. Em menos de dez minutos! Fogos. O "baixinho"
em campo. Bola rasteira, sem chance para o goleiro. Scolari, serpenteando, pra
lá e pra cá, dentro do pequeno retângulo pontilhado, como
uma fera naquela jaula de grades imaginárias, oprimido, nariz retorcido,
bufando sob os bigodes, a calva vermelha, quase enfartando... A torcida chiava,
terrível, provocando em coro, no grave das populares: "Felipão,
boiola! Tu veio aqui só pra ver gol do Viola..."
Aderbal é um homem de opinião, embora pacato, com seu típico
semblante de esperar ônibus, absorto, porém resignado. É
um mestre nas conjecturas de botequim, cheio de uma sabedoria que só
se vê da Tijuca pra lá. Ao sair de casa, já em cima da hora,
tinha certeza de que aquele domingo não passaria de mais um, cheio de
fortes emoções, com muita gritaria, sustos, lamentos e, quem sabe,
até algumas lágrimas, que futebol é o único motivo
pelo qual homem chora. Tudo certo. Cruz de Malta no peito, boné de "É
Campeão", comprado na Feira de Acari, pilhas novas no radinho Am-Fm,
e uns trocos para o "cai-duro".
A Avenida Américo de Moura fica intransitável em dias de jogo.
Bem perto dali, num hotelzinho meia estrela, uma mulher fuma um cigarro de filtro
amarelo, debruçando o decote espanhol sobre o parapeito de uma das janelas.
Observa com muita atenção cada um que passa com pressa, dirigindo-se
ao coliseu de São Cristóvão. É Dodora, diminutivo
de Theodora, nome do qual, aliás, o marido nunca quis abrir mão.
Ele nunca usara o apelido. Sentia um orgulho, enchia a boca: "The-o-do-ra!".
Talvez, intuitivamente, tenha mesmo se casado com ela por causa da imponderável
sensação de fidelidade que inflexão do nome imprimia. Entretanto,
e por força de um cruel antagonismo, o que ninguém - e principalmente
seu marido - sabia, era o quanto, por detrás daquela pele bem alva, Dodora
escondia a alma de uma mulher tremendamente dissimulada, compilando virtuosamente,
dentro da mesma mente distorcida, princípios e prevaricações.
Tinha mãos de rainha, e sua exuberância frontal poupava-lhe palavras,
tempo e dinheiro. A aliança, esta ela não tirava nunca, sentia-se
nua, costumava sempre dizer em tom de autêntica austeridade. Aos poucos
foi descobrindo que o que mais gostava em seu marido era aquela fervorosa paixão
por futebol, sentimento cultivado com uma métrica religiosa. Dodora nunca
foi hipócrita: uma daquelas pessoas que fala pouco, que é para
ter que mentir o menos possível.
Quarenta e quatro do primeiro tempo. O chão estremece na hospedaria.
Goooooool! Mais um do Vasco. O três a zero antes do intervalo já
esboçava uma vitória antológica, histórica. Mais
fogos. O céu estala. Euforia em uníssono, tomando conta do ar
quase rarefeito do final de semana praticamente irreal... Não sem demonstrar
certo incômodo, Dodora sente um frêmito quando Marciano aproxima-se
por trás, deslizando as mãos grandes pelo acetinado da combinação
bordô, ao mesmo tempo em que dali se ouve a rouquidão aguda, quase
frenética do apito do árbitro, encerrando a primeira etapa da
partida. Fanfarra, cornetas... Aplausos... Com desdém, a mulher livra-se
dos tentáculos do seu parceiro e interpela um jovem que passa lá
embaixo, na calçada: "Ô moleque, de quem foi esse último
gol aí?" "Juninho Pernambucano, tia! Bola parada. Um golaço,
na gaveta. Vascoooo!", gritou o rapaz, precipitando-se na algazarra que
tomava as ruas adjacentes.
Ela catapulta o filtro do cigarro como se soltasse um rojão.
Ergueu-se, respirando fundo entre os dentes separados, que exibiram um sorriso
tão inconveniente quanto malicioso. Vira-se, num rompante de lascívia
e deboche, agarra Marciano, encaixando o mulato entre as coxas. Este, por sua
vez, vai logo tratando de envergá-la contra a cômoda vazia. O único
laço que unia aqueles dois era o fato de mutuamente saberem muito pouco
a respeito um do outro. De repente Dodora grasnou, extremamente irônica:
"Botafogo... Ainda se fosse tricolor! Ô meu neguinho, tinha outro
time pra torcer, não? Vem cá, vem, meu sofredor!" E o homem
disparou, boçal e sarcástico, transfigurado num semblante que
mais parecia uma caricatura do Baptistão: "Melhor ser Botafoguense
sofredor, do que vascaíno corno...". Caíram numa gargalhada
sinistra que se misturou ao rangido da velha cama de molas do hotel Lusitânia.
O sol da tarde despencou, quando uma brisa trouxe a noite definitiva que acendeu
os refletores de São Januário.
O segundo tempo começou a esboçar um drama épico. Aderbal,
tomado de angústia, sentia o peito dormente e ao mesmo tempo sufocado,
como se pressentisse que algo de tenebroso estivesse acontecendo. A cabeça
começava a doer. Os times se movimentavam como um cardume, e a bola incandescente,
protagonizando o intrigante espetáculo, teimava em não querer
deixar a grande área do Vasco. Os zagueiros se digladiando em pontapés,
voadoras, cotoveladas e xingamentos inúteis. Treze minutos. Oseias
livra-se de Rincon, invade pela direita e o inefável acontece: Goooooool...
Mais um do Cruzeiro. Três a dois. Mandinga! Romário, impotente,
esquecido na intermediária do time adversário, balança
a cabeça negativamente, com ares de extrema reprovação.
Um ruge-ruge emergiu do silêncio funesto. Aderbal não tinha mais
reservas para acreditar no inacreditável. Certo ar de violência
doméstica tomou conta de todo o inconsciente coletivo, enquanto a eternidade
dos noventa minutos insistia. Moedas começaram a chover no gramado. Cheios
de razão, os mais exaltados esbugalhavam os olhos, exibindo notas de
Real, enquanto o grito de guerra afrontava, intercalado com os tambores treme-terra:
"Bacalhau... Vendido... Bacalhau... Vendido... Vendido!".
A esta altura, os urros de Dodora estremeciam as paredes do quarto. Aderbal
chorou, quando, numa espécie de golpe de misericórdia, o time
visitante fez o seu ultimo e fatídico gol. São Januário
inteiro sentiu sua dor... Sem contar que, um pouco antes, o Vasco da Gama ainda
acertara duas bolas na trave. E o juiz decreta, num incisivo trinado em semibreve:
típico empate com amargo sabor de derrota. Sinal da cruz.
Marciano já havia partido, quando Theodora, iluminada pelo néon
desbotado do hotel, já enfeitava novamente a janela, na rapina de mais
um torcedor: "Agora tem que ser vascaíno". Vestiu-se numa peça
íntima bordada com o escudo do Clube de Regatas Flamengo, acendeu mais
um cigarro e abriu a porta com cara de santa.