Hoje meu pai veio me visitar. Já viu né, a velha história
de sempre: comer bem, dormir cedo, fisioterapia etc. Um saco.
- Ronaldo, isto que você está fazendo não é viver,
é morrer.
- Anjo, demônio, santo, mártir, inválido, deficiente...
é tudo a mesma merda pai...
- É, com você não adianta falar.
- ...
Papai é chegado a um dramazinho, meio mexicano, meio paraguaio muambeiro.
Baixinho, robusto, troncudo, atende pelo nome de Sérgio Gomes. Sempre
pronto a ajudar, a servir, produtos originais. Desde o trágico acontecimento
que acidentalmente criou este meu lado, que já devia estar inerte em
algum lugar de meu id ou ego, sei lá, a faculdade de psicologia também
não costumava frequentar, que não suporto mais essa sua disposição
de soldado do exército de salvação. Vai ver por isso que
Mamãe o chifrou com o síndico e com toda a "fúria
alvinegra" - botafoguense doente que era, só para afrontar Papai,
mengooo! O bar era meu lugar predileto, aulas assassinadas enquanto cheques
eram assinados, mais um chopinho? Claro. Batatinhas mil, sacanagem ao vivo e
em conserva, salsichas petit e Roberto Carlos no jukebox, patrocínio
Sr. Gomes. Mamãe não, interessante como mulher, como pessoa: nula.
Passava suas manhãs a chifrar e a fazer as unhas. Advogada que nunca
advogou, indignava-se com a pouca vergonha vicejante no país, enquanto
assistia ao noticiário de meio-dia num quarto de motel ao lado de seu
amante do momento, Rubinho.
Lembro-me de ter sido apresentado a ele, o amigo, das aulas de cerâmica
ou porcelana, da Tia Augusta. De cara o que me chamou atenção
naquele rapaz, como Mamãe dizia, foi seu enorme nariz, que despontava
do centro de seu rosto assim como o mastro principal de uma antiga nau. "Que
puta narigão!" Foi a única coisa que pude dizer quando consultado
por Mamãe, isso sem mencionar, os risinhos e momentos de constrangimentos
evidentes. Isso tudo foi antes. Dela pra cá tanto já aconteceu,
que fica difícil identificar o momento exato da ruína de meu caráter.
Na real, mau caratismo é hereditário, no já citado exemplo
de conduta exemplar, batizado de D. Carla, vulgo Mamãe, ou carlismo -
o movimento. As carlistas, ou os carlistas, como em meu caso, vêm ao mundo
a passeio, não se importando muito com quantos mortos e feridos são
deixados para trás no caminho entre Madureira e Barra de São João,
sem ar condicionado, claro, que é pra poupar combustível, em pleno
horário de verão. Suor e mosquitos povoam minhas lembranças
de infância. Ah, bolinhos de chuva também.
Nos tempos idos de outrora, pegava o trem até a Central, para de lá
tentar chegar à praia. Como era bom andar na praia da Urca. Que gente
diferente crescia ali. O Pão de açúcar, ainda era de açúcar,
antes de toda violência e favelização do Rio, que o tornou
o pão que o Diabo amassou e papa para sociólogo. O que acontece
é que toda esta questão de deficiente útil é besteira.
Eu quero é mamar nas tetas do governo e dedicar-me ao que sempre fiz
melhor... falar mal de todo o mundo e não fazer porra nenhuma. Tem gente
demais fazendo demais. Agora virou moda ter ong's. Madames criam ong´s
para aliviar o peso na consciência que não conseguiram perder nos
spas de milhares de dólares. Eu quero que as ong's se fodam! Eu estou
fodido...
Costão do Pão de açúcar, que beleza, fumando um
baseadinho eu e Betinho da Pereira, puta visual, sentia como se fosse intocável,
sensação parecida com a do segundo em que se é atropelado
- por um caminhão de lixo, quem diria - sem ter o direito de saber que
ficará aleijado: "liga não filhão, isso passa".
Ali, de pé, na pedra filosofal, cartão postal do carioca cabeça
oca, olhando o mar, imaginando que peixes por ali estariam passando, e as pedras
tão lindas, maciças, que traziam uma também maciça
sensação de inutilidade premonitória. Betinho de costas,
para mim, um convite a exercer uma gama de sentimentos reprimidos e latentes,
para que lá eu tente me jogar, jogá-lo? Máquina fotográfica
em mãos, o último fininho rolando e eu pensando que se eu o empurra-se,
seu corpo rolando, e no que há de belo em tingir aquelas virgens pedras
com o sangue de um virgem. Ritualístico seria, acho, achava. Quem sabe
era uma tendência suicida minha mesmo, de repente, fruto dos adultérios
de Mamãe, Freud explica, deve. Vai ver é a tal da sensibilidade,
doença que assola a humanidade disfarçada de viadagem - nos dias
de hoje o tal do metrossexual. Eu achava o Betinho da Pereira lindo. Mas algo
me dizia que ele seria ainda mais belo enquanto dormisse, não havia dormido
com ele ainda; tinha uma beleza mortal, não, não, uma beleza mórbida
mesmo. Naquele dia fiquei tentado a beijá-lo ou a matá-lo, adolescentes
que éramos. Beijá-lo em um sentido pueril, quase sem maldade,
no máximo uma meinha, ou troca-troca em São Paulo. Matá-lo
no sentido literal, romântico, de imortalizá-lo, deixá-lo
sem vida, a pintar as pedras habitadas por gaivotas e siris e mariscos e tudo
o mais. Na volta para casa, algo havia mudado. Nem comi o x-tudo do Paulinho
de tão confuso que estava. Pensei no narigão do Rubinho, quanto
de pó será que ele aguentava consumir, essas coisas. Uma
vez, Betinho e eu rachamos cinco gramas, que um fulano irmão da empregada
dele, arrumou no morro da Babilônia em Copacabana, porque nós éramos
playboys de subúrbio, em pior situação que o Aldir Blanc,
que se lamenta por ser tijucano. Eu morei em Madureira minha vida inteira, até
o maldito acidente e o incidente divórcio de Mamãe x Papai ou
Mengão x Fogão. Fomos morar no Méier, bem na época
do vestibular, e quando o pai do Betinho foi transferido para Manaus... meu
mundo caiu.
Um pedaço de mim se partiu, da mesma maneira que um parente distante
se vai, ou seja, sem a menor percepção do resto da parentada.
Marcou muito aquele dia, pois descobri minha vocação para "psicopata-teen",
tanto que até hoje tenho momentos, como por exemplo, quando vejo a novelinha
Sandy e Júnior. Rubinho aparecia às vezes, sem avisar, e Mamãe
não estava, é lógico, e esse era nosso momento mágico,
pois podia observar aquele narigão sentado no nosso sofá dois
lugares, com uma paciência e curiosidade científicas, e até
dar-me o luxo de, quem sabe, servir um chazinho. Ele achava-se artista e dizia-se
escultor. Em uma dessas visitas inesperadas, em que acabava tendo por esperar
Carlinha - assim ele a chamava - trouxe um álbum com seus trabalhos.
Nada que prestasse, e desde esse tempo, meu senso estético na falta de
algo melhor para fazer, apurou-se, e pensando em Rubens agora, basicamente o
que ele fazia era merda.
Hoje, da janela, vejo a Dias da Cruz e trânsito caótico e nada
disso me afeta. Hoje, não me formei, não me casei nem amei, masturbo-me
com filmes gays escatológicos e coisinhas afins. Betinho nunca mais vi,
Mamãe mora no Peru, louca até os ossos. Hoje, sou mais feliz...
acho.