- O que está fazendo aí nesse sol com tal barriga, guria? - era
Marilu, que Glória não via desde que tinha saído da pensão
do Rogério.
Mas Glória não respondeu. Esta era apenas uma pergunta de abertura,
e sabia que não faria diferença na vida da antiga companheira
de quarto aonde seus pés a levariam dali a pouco.
O silêncio não foi indigesto. Ao contrário.
Retomou o diálogo:
- Estou vendendo pão, integral. Antes vendia na rua, mas agora trabalho
por encomenda. Faço fornadas para duas padarias, diariamente.
- Largou da vida para vender pão, sua maluca?
- Se descontarmos os gastos com drogas e remédios tenho o mesmo lucro
de antes, Marilu.
E Glória olha avoada para a sinaleira que esverdeava pela segunda vez:
- Estou feliz.
- Moras aonde?
- Numa pensão da Demétrio, no centro. É quase só
guria, como antes, só que são mais sossegadas do que a gente era.
- Que tu era, Glória, pois eu continuo gostando da ferveção!
Se desgostou com alguém por lá?
- Não. Era mesmo uma vida muito boa. - e depois de meio minuto - além
do quê, a Cidade Baixa fica a um pulo da pensão.
Um joão-de-barro começou cantoria no poste de luz a direita. Glória
olhou naquela direção e ficou pensando: como é esquisito
reviver um pedaço seu sem o sê-lo mais. Não enxergava o
passarinho, apenas sua casa.
Carros novamente começaram uma procissão de aço e petróleo.
De uns tempos para cá Glória começara a notar uma grande
quantidade de pássaros urbanos. E também frutinhas de calçada,
oh, as garças do córrego Ipiranga! Entrou a divagar sobre a brancura
das garças em meio a toda aquela poluição de esgoto a céu
aberto...
- Pô, Glória, tu nunca vai botar os pés no chão,
hein?
- É apenas essa toda questão da poluição. Tem me
obcecado.
- Cuidado, pode fazer mal ao seu filho.
- Ele já nasceu. Estou indo fazer a revisão da semana. Se a gente
não estivesse na rua eu te mostrava os pontos.
- Foi cesárea, então? E com quem ele está, afinal?
- Com uma das gurias da pensão. Ela me ajuda a sovar o pão e lhe
dou uma graninha em troca. É melhor que deixar aquela cabecinha de vento
aos caprichos do namorado.
- E ainda por cima cheia das moral, tu tá mudada... programa nunca mais,
huahuahuahua... - Marilu falou dando umas cotoveladas cúmplices, enquanto
seu corpo se curvava numa risada franca.
- Ainda tenho dois clientes. São os mais pacíficos, e higiênicos.
Gostam de conversar, e não são dados a perversões.
- Claro, tem que ter uns confirmados. - Marilu olha para Glória de cabeça
baixa. Sempre gostou de sacanagem.
- Foi normal.
- Continuar dando por dinheiro?
- Não, o parto.
- Ah.
E como a conversa engatava gorda, sentaram-se num bar de esquina para um café
pingado.