Oito da noite. Nada. ... E Romário que não chega! Quase uma hora
e um quarto de atraso. Aos sábados - imaginei - ele não se atrasaria
nem a pau, nem mesmo que um rinoceronte voasse. Engano. Logo num sábado!...
Daqui a pouco - e esse "a pouco" de Almerinda é logo - nossos
meninos voltarão do parque imaginando ver a porta do nosso quarto fechada.
Que pensarão nossos filhos? No mínimo, que não é
sábado; no máximo, que nós deixamos o dever de casa por
fazer. Não, não precisarão atravessar o corredor do apartamento
falando bem baixinho - quase aos cochichos -, não precisarão usar
as sandálias de dedos mais macias - daquelas que quase calam o chão
do piso -, se esquecerão de tomar o tão caprichado banho de sábado
- aquele que limpa em regra todas as dobras das orelhas - e não terão
assim nem tanta vontade de se vestirem com as roupas mais novas - ainda com
cheiro de etiqueta -. Se a porta do quarto está escancarada mesmo, para
quê tamanha frescura? Os meninos são muito mais espertos do que
os adultos pensam. Quando o Romário chegar - mesmo fora de tempo - eles
entenderão que o churrasco de sábado, para mim, não é
assim tão importante, e que se a porta do quarto passar a noite fechada,
é em função da função. Inquestionáveis
filhos belos! Mesmo com aquelas carinhas de quarta-feira-de-cinzas, certamente
nos aguardarão - pacientíssimos - com as suas bundinhas fofas
afundadas no sofá. Sim, esperarão!
- Imoral. Imoralíssimo! - num zás-trás, Romário
desconcordava comigo.
Contra Romário não há argumentos.
- Para filhos, pais são amigos que dormem juntos!
Absurda educação conservadora!
Por essas e outras - e outras tantas - vezes, tentei voltar ao ponto em questão.
Mas o zás-trás de Romário, invariavelmente, me corta a
língua.
- Imoral. Imoralíssimo! Pais: são e não são!
Jamais tocamos nossas mãos por sobre - nem sob - a mesa, jamais nos beijamos
- nem sutilmente - na frente deles, jamais deitei no colo do Romário
- à vontade - enquanto eles não embarcassem pro terceiro sono.
Mal sabe Romário que eles sabem de tudo a nosso respeito, tudinho mesmo!
Às terças, o cinema; às quartas, o mercado; às quintas,
sabatina; às sextas, contas a fechar; aos sábados - sempre aos
sábados -, cama e churrasco. Eles acham - que Romário não
me leia - que as portas fechadas, uma vez só por semana, não manterá
duradoura uma relação a dois. As peladas, bem que poderiam ficar
pra depois.
Culpada, culpada e culpada! Acostumei-me com Romário só aos sábados!
Nada fiz para remar contra. Seis e meia da tarde - finda sua pelada - me excito
ao ver o Romário coberto de lama ou poeira dos pés à cabeça.
Pouco mais de treze anos de casada no costado, chovesse ou fizesse sol, aos
sábados, ele me exigia nua - inteiramente nua - quando voltasse do futebol.
Era, então, obrigada a ouvir o barulho da água do chuveiro caindo,
o seu cantarolar desafinado, o roçar do sabonete nos contornos do seu
corpo só visto no escuro. Um belo dia, tentando quebrar o protocolo -
o Romarinho ainda mamava - quis invadir seu banheiro enquanto a lama ou a poeira
ia ralo abaixo. Tragédia: porta trancada!
- Privacidade é privacidade! - mais um zás-trás. Outro
desconcordar.
Mentiria se dissesse ao Romário - tomara que continue sem me ler - que
em um minuto sequer de nossas vidas cheguei com ele a concordar.
Nove da noite. Nada. ... E Romário que não chega! Duas horas e
um quarto de atraso. Falhou, e falhou feio pela primeira vez em pouco mais de
treze anos de alianças, de panelas de pressão, de travesseiros
separados. Certamente não mais virá. Mas, bem cá entre
nós - justiça lhe seja feita - um sábado à sós
com Romário compensa sua falta durante a semana inteira.
Roubo trocados da compoteira para o táxi e para o cachorro-quente. Eles
que lanchem numa esquina bem distante! Irei ao Hospital Geral, às delegacias,
ao Instituto Médico Legal, e até ao campinho onde Romário
sonha ser, nos sábados, um craque. Inocentes, até certo ponto,
os meninos vão para a rua contentíssimos. Estavam - e nem sabia
- fartos do churrasco nosso de cada sábado.
Cansada, depois de dar mil voltas e meia pela cidade inteira, eis Carlito: companheiro
de Romário desde a adolescência. Um homem bonito, jamais o tinha
reparado tão bonito! Contei-lhe apenas meio ato do drama: "Romário
e eu nunca tomamos um banho juntos. Nunca o vi nu embaixo de um chuveiro!".
Agora, pouco importa, que seja o Romário ou um outro qualquer.
Os meninos tardarão a voltar para casa; tomara que Romário não
retorne. Choveu muito no fim da tarde. Carlito! Coberto de lama dos pés
à cabeça está ali. Será cabível querer saber
para onde foi meu marido? Não falo. Calo. Como é belo o corpo
de um homem totalmente enlameado! Ah, Carlito!...
(18 de novembro/2006)