A Garganta da Serpente
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Tira-gosto a passarinho

(Djalma Filho)

Comi um canário-da-terra - vivinho da silva - durante o jantar. E, enquanto em digestão, gorjeei-o até sem querer. Arroto sublime! Nem frito e nem cozido: um arroto natural. Mas, um arroto com ares de culpa. Estranho, estranhíssimo! Aquele canário-da-terra fora comprado há pouco - hoje de manhãzinha - na Feira de Água de Meninos. Agora sim, posso cantar! Anastácia, sequer imagina, terá que me tolerar com um cantar de canário - pelo menos - até o fim dos meus ou dos seus dias. Quem suportará dormir ao lado de um homem que engoliu um canário vivo, e da terra - ainda por cima?
- Cinquenta reais num canário?!...Dinheiro gasto à-toa! - alfineteia, de voz inchada, Anastácia. Ao ver-me em meio às verduras e em carinhos com Agnaldo, imaginei - e nem precisaria imaginar - ter despertado nela a sua primeira vontade de crime: envenenou os jilós e os agriões. Estúpida, criminosa! Já me afeiçoara ao Agnaldo tanto e tanto, apesar do pouco tempo. Pensei logo trocá-lo - de bate-pronto - por um curió qualquer ou um sabiá-coleira.

O canto do canário-da-terra tomou-me tanto de encantamento, assim como à casa inteira. Nem se, por acaso, se Chachá dos Passarinhos, o feirante que me vendeu o canário - bem lá na intimidade -, soubesse que Agnaldo era assim tão bom de bico, e, de troco, me oferecesse um viveiro inteiro de pássaros silvestres, jamais destrocaria Agnaldo, o meu canário-da-terra.

- Desperdício, desperdício e desperdício! Cinquenta reais num canário?! - Bate forte, Anastácia, a porta da dispensa, comparando desmedidamente o meu Aguinaldo-canário com uns vinte quilos e alguns quebrados de arroz.

Salvo por enquanto, Agnaldo.

Pobre canário-da-terra, mal mal-vindo e já rejeitado. Pior que filho enjeitado. Bendita natureza que, além dos canários-da-terra, nos deu - com sobra - tantos e tantos curiós e sabiás-coleira. Entendo-te, Anastácia! Batizei-o de Agnaldo, sim: ato falho! Sequer passou pela minha cabeça vê-lo com as perninhas estiradas gaiola afora, vestido de nada, num caixãozinho branco - alvíssimo - e pequeno - minúsculo -, bem menor que um ataúde de anão. A meningite é o gavião! Carcará metido a besta, antropófago, a comer os espíritos dos pássaros. Há uma diferença quase imperceptível entre a meningite, o gavião e a Anastácia.

- Desperdício, desperdício e desperdício! Cinquenta reais num canário?! - Bate forte, Anastácia, a porta da dispensa, comparando desmedidamente o meu Aguinaldo-canário com uns vinte quilos e alguns quebrados de arroz.

- Cinquenta reais num canário?! Desperdício, desperdício e desperdício!

Enquanto resmunga, Anastácia exercita sua mente tardiamente criminosa: afrouxa os pregos que sustentam a gaiola seminova e convoca toda a população de gatos para lincharem o tal canário. Insensível, insensível e insensível! Sequer se apercebeu que dei o nome de Agnaldo ao nosso canário-da-terra pelo encanto que seu canto fez tomar a mim e a casa inteira. Impossível prever que Anastácia detestasse - até - o gorjeio dos canários. Agnaldo, nosso filho - ido - se foi sem sequer saber chorar direito. Não deu nem tempo de batizá-lo! Culpa do gavião ou da meningite? O gavião é a meningite!

- Cinquenta reais num canário. Vinte e três velas de sete dias!

Mesmo com o terço nas mãos, na hora do ângelus, seu olhar reto não roga piedade nem para o santo do altar. Ardila - sei - qual o jeito mais fácil para acabar de vez com o Agnaldo.

- Desperdício, desperdício e desperdício! - repete, mesmo entre preces.

Agnaldo, meu filho, vem cá para o dedo do papai. Sem medo! Nenhum mal - aparente - lhe farei.

- Devolve-o, já e já, amanhã ao Chachá! - ultima e blasfema.

De um jeito ou de outro, Anastácia aprenderá a gostar mais dos canários.

Propositalmente, fiz absoluta questão de jantar bem em sua frente, com o Agnaldo empoleirado no meu dedo indicador. Gorda! Nojenta! Anastácia se farta a lamber - ponta a ponta, um a um dos dedos - a galinha ao molho pardo desde o almoço requentada. Gorda e nojenta! Agnaldo, meu filho, seus dias estão mais que contados. Vou comê-lo, agora e aqui, vivo - vivinho da silva - bem em frente à Anastácia.

Dito e feito. E, enquanto ela despejava a galinha gordurosa boca afora, eu arrotava o gorjeio sublime do meu canário Agnaldo.

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