Toda noite, assim que sua mãe lhe ajeitava as cobertas, dava-lhe um
beijo na testa e saía devagarinho do quarto, deixando atrás de
si a porta semiaberta, Raquel virava-se de lado, fechava os olhos e, não
demorava muito, começava a ouvir ao longe aquela canção.
Não conseguia distinguir as palavras, apenas a melodia soava cristalina
em seus ouvidos, como cântico de anjos ecoando pela abóbada dos
templos.
Raquel ficava quieta, ouvindo, até adormecer. Várias vezes contou
para a mãe que ouvia essa canção. No entanto, a mãe,
realista que era, achava que fosse fantasia de criança. Moravam em uma
chácara e o vizinho mais próximo ficava a uns dez quilômetros
dali. Como a filha poderia ouvir alguma música daquela distância?
Seu pai trabalhava em uma fábrica em outra cidade e só vinha para
casa nos fins de semana. "Seu" Lupércio era um bom homem, mas
chegava cansado e só queria uma comidinha caseira feita por D. Eunice,
dar uma olhada nos animais e na horta e descansar na rede da velha varanda,
ouvindo suas músicas sertanejas. Não tinha o hábito de
brincar com os filhos, ainda que os amasse muito.
Raquel tentou uma vez contar-lhe sobre a misteriosa música, mas ele não
levou a conversa muito adiante, dizendo que devia ser o barulho do vento batendo
de encontro às árvores. A menina lembrou-se de que os bambuzais
emitiam uma espécie de assobio ao serem tocados pelo vento. Entretanto,
não era esse barulho que ela ouvia. Era mesmo uma canção.
Nem os irmãos davam importância a esse fato que a menina insistia
em contar. Só pensavam nas suas molecagens e viviam aprontando reinações
para assustá-la. Luís, Carlinhos e Mário eram garotos cheios
de vida, peraltas e, quando chegavam da escola, almoçavam e passavam
a tarde a correr pelos campos, subindo em árvores, atazanando os sapos
na beira do rio e nadando como peixes. Carlinhos tinha até um sapo de
estimação chamado Cascudo.
Com o passar do tempo, Raquel deixou de comentar sobre a canção
que ouvia, mas ansiava pela hora de ir para a cama só para ouvir aquele
som melodioso. A canção lhe dava uma sensação de
segurança e ela dormia feliz, sem medo de nada.
...
Estava aquele burburinho na casa de Raquel. D. Eunice e "Seu" Lupércio
vieram da chácara para ajudá-la nos preparativos para a apresentação
de Ângelus ao templo. Primeiro filho de Raquel, o bebê era um lindo
menino de três meses de idade e todos se encantavam com ele.
Os três irmãos de Raquel ainda não haviam chegado. Iam encontrar-se
com ela na igreja. Carlinhos e Mário eram casados, moravam na Capital
e trabalhavam em grandes empresas. Só Luís permanecia solteiro.
Formara-se Engenheiro Agrônomo e, entre outras responsabilidades que assumira,
propusera-se a aumentar a chácara, que hoje já se tornara um belo
sítio sob seus cuidados. Luís continuava morando com os pais e
era o irmão preferido de Raquel.
Otávio, marido de Raquel, de início não concordara com
o nome que ela escolhera para o filho. Mas como haviam combinado que ele escolheria
nomes para as meninas e ela, para os meninos, teve de se conformar. Perguntava-se:
"Por que não Ângelo? De onde Raquel tirara esse Ângelus?"
O fato é que nem ela sabia. Assim que o menino nascera, ao tomá-lo
nos braços, foi como se uma voz interior lhe dissesse: "Ângelus
é o nome dele!" E Raquel seguiu essa voz.
Quando entrou na igreja, Raquel sentiu uma onda de paz invadir-lhe a alma, como
aquela que sentia nos tempos de criança. Fazia uma clara manhã
de sol e seus raios atravessavam os vitrais do templo, formando largos fachos
de luz. O teto da igreja era arredondado e pombas brancas voavam de pilastra
em pilastra, fazendo barulho com o bater de asas. Era uma visão divina.
No exato momento em que o ministro da cerimônia começou a abençoar
Ângelus, Raquel ouviu aquela canção que a acompanhara durante
toda a infância e que emudecera assim que ela atingira a adolescência.
Apurou os ouvidos para saber de onde vinha a melodia, mas seus acordes ecoavam
igualmente por toda a igreja. Esperou terminar a bênção
do filho e pediu licença para falar com o pastor em particular.
- De onde está vindo essa canção? perguntou Raquel, mal
conseguindo segurar a ansiedade. Intrigado, Pastor Jorge respondeu:
- Canção? Não estou ouvindo, Raquel. Inclusive, nosso grupo
de louvor está cobrindo um casamento na sede e ficamos sem ninguém
para cantar na apresentação de Ângelus. Se você tivesse
me avisado com antecedência...
- Não é isso, pastor. É que ouvi uma melodia durante a
cerimônia. O senhor não ouviu?
- Não, Raquel, confesso que nada ouvi. Só se veio de outro lugar.
Daqui da igreja, não foi.
Raquel se afastou frustrada. Ela tinha certeza de que ouvira a mesma canção
que embalara as noites da sua infância! "O que seria isso, meu Deus?",
perguntava-se, temendo que fosse um sinal divino que ela não estivesse
conseguindo interpretar.
Voltou para onde estavam os outros. Não comentou nada com ninguém
da sua família, nem com o marido, nem com o irmão Luís.
Era um segredo que ficaria com ela para sempre. Talvez Ângelus viesse
a ouvir um dia essa canção e lhe contasse. Quem sabe?
Saiu da igreja com o filho no colo e nem percebeu que Ângelus, olhando
para a porta da igreja, abanava a mãozinha para três lindos anjos
que o observavam ternamente, enquanto entoavam um cântico tão melodioso
que fez o menino adormecer nos braços da mãe...