Procissão de sexta-feira santa era sempre muito esperada. Marcava o fim
da quaresma, sábado de aleluia chegando, meninada preparando malhação
do Judas, risos e cantos vibrando no ar.
Para Isolda, aquele era um ano especial, pois iria vestir-se de anjo na procissão.
Passava horas olhando a túnica branca, quase pronta, estendida sobre
a mesa do quarto de costura. O algodão pregado nas bordas das mangas
dava um toque celestial à vestimenta. Só faltavam as asas de anjo,
que ainda não haviam chegado da cidade. Ela mal conseguia esperar.
"Os anjos são tão bonitos!", pensava Isolda, observando
imagens e pinturas na igreja. Queria ficar parecida com eles na procissão.
Mas, em sua ingenuidade, perguntava o porquê de todos os anjos serem loiros.
Afagando sua vasta cabeleira negra pensava, preocupada, se Deus iria gostar
dela. Porém, logo esquecia essas perguntas, voltando a pensar na procissão.
A menina andava inquieta, ansiosa e tinha sonhos agitados durante a noite. Sonhava
que havia virado anjo, que flutuava sobre a cidade, salpicando de estrelas os
telhados de todas as casas. De repente, era como se pesasse uma tonelada, começando
a cair vertiginosamente. Acordava assustada, correndo para o quarto da mãe,
onde poderia sonhar protegida, sem medo de cair do céu.
Enfim, chegara o grande dia. Aquela sexta-feira santa parecia diferente de todas
as outras. Isolda sentia isso. Volta e meia, entrava no quarto e ficava olhando,
embevecida, para aquelas asas tão branquinhas, ali, esperando por ela.
Ao entardecer, já estava a postos para o banho, olhinhos brilhando de
felicidade. Nem mesmo reclamou quando a mãe começou a desembaraçar-lhe
os longos cabelos negros. Tudo o que mais queria era ser um anjo. Anjo moreno,
é verdade, mas Deus nem notaria esse detalhe, pensou, fazendo um muxoxo
de autoconsolo.
Quando Isolda entrou na sacristia, segurando bem firme na mão de sua
mãe, parecia mesmo um anjo. Padre Mariano, surpreendido pela entrada
súbita da menina, até deixou cair no chão a indumentária
eclesiástica que estava prestes a vestir. À sua frente, estava
um anjo moreno, cabelos cacheados, um quê de paz e tristeza revelando-se
no rosto meigo e infantil. O pároco tomou-lhe a mão, levou-a para
perto do altar e deu-lhe uma vela branca envolta em papel crepom. Já
enfileirados, os outros anjos, meninos de um lado, meninas de outro, esperavam
irrequietos. Alguns deles, rostinhos travessos, deixavam dúvidas sobre
seus dons angelicais.
A procissão saía da igreja e descia pela rua principal. Mal tinham
caminhado uns duzentos metros e os anjos já começavam a agitar-se.
Sussurravam entre si, cúmplices, e o desafio estava lançado. Cada
pingo de vela que caía no dedo, era como se uma obra de arte estivesse
sendo esculpida. Ao final da procissão, disputavam a escolha do dedo
de vela mais perfeito, sem rachaduras, nem saliências. Sequer sentiam
a quentura dos pingos de cera na pele, tal a emoção da brincadeira.
Muitos dos meninos passavam para a fila das meninas para assustá-las,
respingando-as com vela quente, arrancando-lhes gritinhos abafados. As beatas
lançavam-lhes olhares reprovadores. Padre Mariano fazia-lhes sinal para
que se aquietassem, esboçando um meio-sorriso condescendente. A procissão
seguia.
Isolda estava distante, pensativa. Sentia-se diferente naquele ano. Talvez fosse
a roupa de anjo com a qual ela tanto sonhara, conjeturou. Não sabia dizer.
Apenas sentia-se estranha. Absorta, ia deixando a vela pingar devagarinho, cada
pingo como se fossem lágrimas quentes, caídas do céu. Olhava
para as outras crianças, que pareciam alegres, como sempre, com seus
dedos de vela quase prontos, exibindo-os como troféus. Olhava tudo meio
alheia, como se não fizesse mais parte daquelas reinações.
Terminada a procissão, os fiéis entraram na igreja. O dedo de
Isolda estava coberto por uma camada leve de parafina, quase transparente, como
se fosse partir-se em pedaços ao primeiro toque. Um choro copioso, inexplicável,
dominou-a durante toda a cerimônia.
Sem se dar conta, Isolda chorava por si mesma, pela infância que se fora,
aprisionada em um dedo de vela.
(3º lugar do Concurso de Contos "Ação Comunitária do Brasil" - São Paulo, 1992)