A Garganta da Serpente
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As violetas azuis

(Dorcila Garcia)

No beiral da janela, o vaso jazia como um adorno de loja de presentes. Era um vaso cor de pérola que, dentro de si, abrigava violetas azuis. Eu cuidava dele com todo zelo, tirando-lhe as folhas velhas que podiam extrair-lhe a força, regando-o com água morna, por debaixo das folhas, que não podiam ser molhadas para não apodrecerem.

Essa violeta tinha uma história. Eu a havia recolhido dentre as plantas que estavam jogadas no chão de uma feira livre. A pobre planta estava meio murcha, não fora vendida e, para o comerciante, não tinha mais serventia. Passei por ela, olhei-a de relance e segui em frente. Mas senti como se a planta estivesse me pedindo para voltar e salvá-la. Olhei para trás e lá estava ela, imóvel, com as folhas viradas na minha direção. Num impulso, fui até lá e peguei-a com todo cuidado. Levei-a para casa como se carregasse no colo uma criancinha enferma.

Peguei minha caixinha de guardados e, com uma flanela, comecei a limpar folha por folha. Por baixo de toda aquela terra foram surgindo lindas folhas verdes-escuras, que pareciam veludo. Preparei, com terra própria, um vaso adequado para deixá-la em recuperação e a depositei na janela do meu quarto, que tinha um imenso vitral por onde se infiltrava a luz solar.

Todo dia, eu pulava bem cedo da cama, abria a vidraça, abria a veneziana e olhava o pé de violeta, para observar se ele estava melhor, se estava se recuperando e, parecendo meio sem siso, conversava com a planta por longo tempo. Às vezes, uma folha ou outra se mexia. Provavelmente, era o vento. Mas eu preferia acreditar que era a violeta me respondendo.

E a planta ia ficando cada vez mais forte, com a folhagem mais profusa. Até que um dia notou-se o primeiro botão surgindo. Tão pequenino ainda e já se podia perceber que vinha com toda força e vigor, só esperando o momento certo de desabrochar.

Um belo dia, cheguei em casa e vi que, no lugar daquele botão, havia uma esplendorosa violeta. Parecia uma obra de arte. Era de um azul índigo, celestial, que extasiava. Foi uma felicidade! Dia após dia, mais botões foram se abrindo. Em pouco tempo, aquele vaso de violetas não só enfeitava a minha janela, como também era a mais viva prova do toque das Mãos de Deus em todas as maravilhas do mundo.

Pensando na trajetória da minha violeta, é quase impossível não compará-la com os relacionamentos humanos. Quando estamos machucados, estremecidos, podemos deixá-los fenecer, ou então, ser grandiosos o bastante para tentar salvá-los. Temos a escolha de nos importarmos ou não com uma amizade ou um amor já agonizantes pelo desinteresse, pela indiferença, pela falta de afeto. Se passarmos a cultivá-los, a regá-los com carinho, a tratá-los com dedicação, a entabularmos conversa, haverá grande chance de a ferida cicatrizar-se. No entanto, para isso, é preciso que a "violeta" que existe dentro de cada pessoa também queira sobreviver. Somente dessa forma, sentimentos tão preciosos como a amizade e o amor poderão voltar a florescer tão belos quanto as violetas azuis.

Cada amizade cultivada é um ato de amor.

Cada amor resgatado, um ato de fé.

(17/10/2003)

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