Maruah era dono das recordações mais belas e também mais
importantes da história da pauliceia, um senhor de aproximadamente
seus sessenta anos, nascido no fim da década de quarenta ainda no antigo
Hospital do Isolamento, atualmente conhecido por Emílio Ribas. Alguns
fatos históricos ainda lhes são reminiscentes, um dos poucos paulistas
fundadores das vísceras desta cidade, Maruah crescera numa São
Paulo que carregava em suas veias grandes traços da esquecida São
Paulo de Piratininga; filho de família tradicional, seus antepassados
aportaram no Brasil ainda nos tempos da Terra de Santa Cruz, trazidos pelas
caravelas de Padre Manoel da Paiva em 1554, onde na ocasião acompanharam
a primeira missa em solo paulistano; deste dia ainda guarda consigo a velha
bandeira da ordem de cristo doada a sua família pelo próprio cura
Manoel da Paiva.
Seu nome de traçar mouro é devido à invasão dos
visigodos em 409 na Península Ibérica; desde tenra idade Maruah
da Maia, ouvia atentamente as historias de seus avós acerca da fundação
de sua adorada São Paulo, recorda-se que seu avô António
da Maya contava-lhe cheio de orgulho que no dia 03 de Fevereiro de 1903 juntamente
com o intendente Gomes Cardim, que mais tarde seria o fundador do Cemitério
do Araçá; apresentaram a Câmara Municipal o projeto para
a construção do que viria a ser o mais belo Teatro Municipal da
Cidade. Nesta oportunidade seu avô pode acompanhar de perto as orientações
do principal arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo que somente em 26
de Junho veio dar início as fundações do prédio.
Talvez António da Maya tenha curtido em Maruah este extremo amor que
carrega por sua cidade, hoje aos sessenta anos ele observa uma São Paulo
degradada, totalmente modificada, com alguns poucos traços que lhes resistiram
o tempo. Recorda ainda que sua avó dona Mariah da Maya adorava tomar
a canoa no Rio Tamanduateí em plena rua Ladeira Porto Geral, onde infelizmente
encontramos a tão conturbada rua Vinte e Cinco de Março. Seu pai
Antônio da Maia Neto ao ouvir as reminiscências de sua mãe,
dizia ser a mais linda paisagem que pode presenciar em sua infância, dizia
ainda não resistir à tamanha beleza e mesmo com as insistentes
ralhadas de sua mãe, atirava-se ao rio e nele permanecia horas e horas,
'gual aos cardumes de peixes que os circundavam. Neste mesmo local dizia seu
velho avô que seu tetravô havia sido picado por uma cobra d'água
e se não fosse as mãos prestativas do guerreiro Caiuby, irmão
do cacique Tibiriçá, não teria resistido. Maruah sentia
um forte aperto no peito sempre que revia o amado córrego contaminado,
pois conhecera os rios já em fase depreciada; vez ou outra quando pega
seu automóvel para ir visitar suas tias no bairro do Tatuapé,
seus olhos se enchem de emoção ao encontrá-los totalmente
abandonados; ao rememorar seu velho avô a descrever a beleza do velho
Anhembi (pois fora assim durante muito tempo que seu avô se referia) seu
rosto se refazia em luzes de sorriso e no mesmo instante o odor do rio se cambiava
na brisa mais suave de todas as suas lembranças, nem mesmo os ruídos
ensurdecedores dos helicópteros acima da Marginal, eram capazes de desfazer
a emoção. Quando criança Maruah caminhava com o pai sob
a orla do Rio Anhembi que apesar de já poluído, mantinha a bela
feição de manancial; recorda-se que mesmo na década de
60 era possível encontrar peixes em alguns pontos do Anhembi e no fundo
ele curtia grandes esperanças em ver um dia seu rio recuperado. Morador
da antiga Rua Detrás da Boa Morte, atual Tabatinguera, seus tataravós
receberam o terreno ainda nos tempos do Brazil com "Z", onde durante
muito tempo sofreram as cheias do Tamanduateí até sua retificação;
motivo tal que levaram seus avós a se desfazerem da antiga morada, passaram
então a residir à Rua da Misericórdia, antiga rua de Santo
António atual rua Direita, onde mais tarde nasceria o principal escritório
do maior empresário de todos os tempos Francesco Matarazzo, com suas
Indústrias Reunidas, situada no número 11 desta mesma rua. Maruah
recorda-se de uma manhã em que jogava peteca com os outros meninos próximos
a Praça Patriarca, quando de repente chegou o senhor Francesco em um
de seus carros luxuosos, todos os garotos ao mesmo tempo ficaram perplexos os
automóveis eram tão raros quanto à presença da ilustre
figura, ao descer seu Francesco nos chamou acenando com as mãos, perguntou-nos
se gostávamos de goma e com uma voz doce pediu a ele que as distribuísse;
o velho Matarazzo transpirava pureza através dos olhos o que chamava
muito a atenção do garoto Maruah.
Já nos fins da década de 60, com a edição do Ato
Constitucional Nº5, Maruah vira-se surpreendido com os conflitos dos estudantes
e a cavalaria, quase que constantes na Praça da Sé, muitos de
seus amigos desapareceram e Parte da memória da Piratininga que sua família
ajudou a fundar, foi desaparecendo. Maruah traz na lembrança um dos momentos
do Caso Herzog, onde ele e mais de oito mil pessoas se aglomeraram nas ruas
próximas a Catedral da Sé, a fim de acompanharem o culto ecumênico
presidido pelo então Cardeal D. Evaristos Arns em memória de Herzog.
Nesta ocasião ele parecia ter visto todo o regimento militar do DOI-CODI
paulista de prontidão, em busca de alguma confusão, tempos que
sua Pauliceia era ainda mais gris que os atuais monóxidos de carbono
existentes em suas paisagens. Mas foi ali perto no Vale do Anhangabaú
que ele e mais de 1,5 milhões de pessoas podem desaguar seu grito de
indignação em favor das Diretas Já e podem acompanhar o
nascimento de algo que ele diz aproximar-se a verdadeira Democracia. No auge
de seu sexagenário, Maruah, um apaixonado pelas antigas terras jesuítas,
traz em seu coração a esperança de ver nesta grande metrópole
que ajudara a criar, o fim da miséria e o ressurgimento das águas
que outrora fora a alegria e fascinação de sua meninice.
Maruah traz no peito a Insígnia de sua Bandeira "Non ducor duco"
que se tornou, de pronto, caríssima não só ao coração
de sua própria família, mas também a todos os paulistanos,
que como ele carrega no peito a seiva desta flor reluzente que é a cidade
de São Paulo.
(3 de agosto de 2008, 19h)