Tâmara se devolve, apressada, para casa. Tarda, mas chega. Sabia que
Munhoz voltaria descansado do trabalho. Complô surdo, tão surdo
quanto o golpe de mil novecentos e sessenta e quatro. Combinara, na calada,
com um colega do marido - também bancário - um extra por fora
só para que ele fechasse seu caixa findo o expediente. Uma mão
lava a outra. Munhoz nasceu crendo que passaria no concurso do Banco do Brasil
e que seria funcionário de carreira: um caixa, um reles caixa!... Mas
isso é assunto pra outra história.
Tâmara queria mesmo era sentir seu maridinho descansado, sem estresse,
relaxado, para que pudesse aproveitá-lo da cabeça da noite ao
pé da madrugada. Ah, se ela fosse Presidenta da República! Baixaria
um decreto-lei para que todos os homens que funcionassem satisfatoriamente e
regularmente tivessem, no dia seguinte, um feriado de ponto facultativo. Como
seriam bem mais produtivos!... Mas isso é assunto pra outra história.
Na banheira, lotada de pétalas de rosa, Tâmara desafina a cantar:
"E tu me ensinaste que sou maravilhosa!" Chocolate para amaciar a
pele, sândalo para entranhar cheiros, e Lídia, a mãos de
fada. Uma craque! Ela, como ninguém, sabe tirar pêlos sem deixar
dor, oleia sem besuntar: um afagar perigoso. Ainda bem que Munhoz é duplamente
carinhoso!
- Virilha também?
- Tudo. Tudo mesmo!
E, revela à Lídia com uma cumplicidade de irmã de leite:
"Pela primeira vez, Munhoz me verá como nasci". Sabe, e reconhece,
que anda há muito se repetindo com aquele suflê de camarão
manjado, com a camisola de cetim vermelha, sem nada por baixo e com o mesmo
bolerão: o "Tu me acostumbraste". Por mais que a Lídia
tenha o apelido de mãos de fada, ela lhe arranca um grito mudo em virtude
do último pêlo extraído.
Uma carne magra - com arroz de forno e batatas -, um roupão surrado sem
calcinhas de grife por baixo; até treinou um vocalise para desafinar
menos quando fosse cantar para Munhoz: "Sutil, chegaste a mim como uma
tentação"
Certamente, Munhoz esqueceria dos docs, dos juros de mora, das gravatas apertadas,
das bolsas de valores, da meta a ser batida, da promoção engavetada,
do capital de giro; e quando abrisse aquele roupão e enfronhasse seu
rosto no seu corpo, se surpreenderia tanto que nem perguntaria pelos filhos:
todos na casa dos avós.
- Por que não me ensinaste como se vive sem ti?
Fim do vocalise. E jura, por todos os santos protetores das relações
mais calientes - descruzando dedos e pernas - que nunca mais colocaria aquele
bolero para tocar, pelo menos nos instantes de mais inteira intimidade.
A carne magra - com arroz de forno e batatas - o fez lembrar que é um
bancário apenas: um caixa, um reles caixa! Aquele roupão bem surrado,
quase sem cor, no corpo de Tâmara, o fez esquecer das contas com os salões
de beleza que ela lhe impõe. Surpresa: "Tâmara está
um bebê. Incrível!"
A paixão é mediata, o amor, tântrico. Envolvem-se. Há
neles algo mais que amor e paixão: cumplicidade! Um jogo lúdico
quase interminável.
Mas, como em todo caso de amor, sempre há de acontecer um empata-beijo,
um Teodoro Madureira: o vizinho do apartamento ao lado. O moralista de quatro
costados, escandalizado com os ruídos de ternura provocados por Tâmara
e Munhoz, num ato de censura prévia, põe para tocar numa altura
absurda o "Tu me acostumbraste", para que seu filho de berço
não escute os ruídos imorais que os casais fazem - geralmente
- quando compõem sinfonias
Ao escutar, mais uma vez o bolero, Munhoz ameaça uma grave:
- Esse bolerão?! De novo, não!
Munhoz, sem mais idade para prometer à Tâmara que será um
funcionário de carreira exemplar, conformado em ser um caixa - um reles
caixa - ao vê-la tão remoçada, sente três desejos
urgentes: o de concluir seu curso universitário interrompido pela metade,
o de matar o compositor daquele bolerão, e o de pedir - de joelhos -
para que Tâmara dance com ele de rosto colado, assim como quando se conheceram.
E um quarto, meio camuflado: "Bendita Lídia mãos-de-fada!".
Será que uma virilha depilada faz milagres?
- E tu me acontumbraste...