- Mulher, só Irene. Outras jamais!
Do lado oposto do sofá, Canário pensa com uma convicção
de quatro. Dois mais dois, em qualquer primária tabuada, quatro sempre
foi. Exceto em "Como dois e dois", uma musiqueta medíocre desse
tal Caetano, que quase fez um plágio da Chiquita Bacana - faltou uma
nota para tal - sacolejantemente interpretada e defendida pela Emilinha.
- Mulher, só Irene. Outras jamais!
Do lado oposto do sofá, Irene, sem mais a credulidade das Amélias,
atenta. Desde que o mundo é mundo - queiram ou não queiram - todas
mulheres têm que se assemelhem às Amélias, se não
por convicção, por acomodação. Sabia - mas fingia
não saber - que Canário sempre fora um grandessíssimo mulherengo.
E, a cada passeio com ele, torcia seu próprio pescoço a cada dobrar
de esquina, para não assistir o passar de mais uma bunda bonita acompanhada,
sem disfarce, pelo olhar do Canário, seu marido. Grandessíssimo
sem-vergonha! Penso que os locutores de rádio, quase todos, o são.
Entre namoro, casamento e noivado, trinta anos e alguns quebrados foram gastos
com muita lengalenga e papo doce: "- Mulher, só tu, minha Irene!".
Quanta mentira em cima de mentira! Responde a Canário em pensamento.
Mesmo assim, ainda lhe dá uma credulidade ao arrependimento. Mas nada
- nada mesmo - a fará se enganar novamente. Canário, sabe, está
preste a se aposentar da Rádio.
Seus tempos da PRA-4 - Radio Sociedade da Bahia - enfim finda. Sem dúvida,
uma bela história: segundo cantor da orquestra, ator de radionovelas
e o locutor das edições extraordinárias. Não havia
curso para dicção na época, mas aprendeu a falar se vendo
no espelho e cuidando da garganta com gargarejos de água e sal. Que voz
bonita tinha o desgraçado! E, assim, formou-se malandro por excelência
e sedutor de ocasião.
- Mulher, só Irene. Outras jamais!
Compensa Canário. Ele, mais que ninguém, sabe que há quase
trinta anos e quebrados Irene não ri. Seu riso não se fechou nem
sua alegria faliu. Ela ainda consegue ouvir muito a PRA-4. Disfarça os
lábios sem mostrar os belos dentes, pinta a boca de batom, senta-se numa
cadeira com recosto com a pomposidade de quem vai a um balé ou a uma
ópera. Mesmo escondendo o sorriso, é feliz só em ouvir
a voz do marido via radio. E se esquece - momentaneamente - das marcas de batom
no colarinho da camisa a cada volta dele para casa, se esquece - até
- dos papeluchos trazidos pelos seus bolsos com incontáveis números
de telefones. É evidente que a discrição nunca fora seu
ponto forte: um adúltero, um safado, um canalha, um amante sem igual.
Grandessíssimo sem-vergonha, meu Canário!
Tão sem-vergonha que, do outro lado do sofá, me fala quase em
pedido de perdão por toda a vida tida errada, e - ainda - com um jeito
de arrependido!
- Tarde demais!
A televisão está alta. Melhor as novelas que programas de radio.
Não estou
disposta a escutar os "meas culpas" do Canário. Enrouqueceu!
E, mesmo rouco, do lado oposto ao meu sofá, não vou lhe dar o
direito de falar alto mal do Caetano nem bem da Emilinha. Eu sempre fui Marlene
de carteirinha. Chega e chaga!
- Chiquita Bacana, lá da Martinica, se veste com uma casca de banana
nanica.
Canário solfeja a marchinha da Emilinha.
- Tarde demais!
Pela primeira vez, em trinta anos e quebrados, Irene passa a mostrar seus belos
dentes. Queiram ou não queiram, é este o instante das Amélias
deixarem de serem Amélias.
- Mulher, Irene, só tu!
Verbaliza pela primeira vez, assusta-se pela primeira vez. Logo agora, perto
de se aposentar, quando poderia recompensá-la por tanto desprezo. A grana
que ganhara como o segundo cantor da orquestra, como ator de radionovelas, como
o locutor das edições extraordinárias daria, com certeza
absoluta, para a lua-de-mel que jamais tiveram: Mar Del Plata, Buenos Aires,
Punta Del Este!
- Tarde demais! Tarde demais!
Irene preparará já já o peixe por ele cuidadosamente comprado
e escolhido. A faca afiada, as escamas, o sangue frio, a televisão falando
alto, a voz ouvida do rádio, as guelras de fora, a aposentadoria integral
para a viúva bem-vinda.
- Mulher, Irene, só tu. Outras jamais!
Infelizes dos casais que se conhecem mudos por mais de trinta anos e uns quebrados.
Todos os casais que se leem por pensamentos vivem em e no inferno.
Janta pronta: peixe à escabeche na travessa, uma caixa de fósforos
numa das mãos e um litro de querosene na outra. Irene banha Canário
e acende um só palito: marido flambado! Irene ri, e escancara - finalmente
- o piano de dentes, sem bemóis, há muito escondido.
Desgovernada e apressada, entre o sarcástico e o cômico, vai até
o armário do quarto e abre uma carteira de cigarros. Amarelado pelo tempo,
sai um cigarro a pedir sua boca com urgência. E o acende no fogo que queima
Canário.
- Agora, Canário, fumarei adoidada!
Irene tenta apagar o marido a baforadas. E ri desbragadamente.