A Garganta da Serpente
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O Trieiro

(Daniel Oliveira)

Descalço ele ia andando. Em seu caminho, um trieiro curto, cacos: de vidros, de sonhos, de pesadelos não terminados. Ir adiante sempre. Este seu lema, este seu estratagema. A quem reportar-se? A quem? Ninguém de seu que lhe confiasse os sonhos. Ninguém no chão de minúsculo ser para lhe ser companhia em hora tão sem graça. Dizer o quê, então, sabendo que ouvido algum escutaria suas queixas petrificadas? Como sair do trieiro, se fora dele facilmente se perderia, tonto e domável? Pudesse ao menos voar, sair dali voando, até o cume dos montes de onde se via a beleza do mundo... Delírio isto. Delírio de sua cuca que ardia sob o escaldante sol. Aliás, o sol era a sua companhia bem presente. O sol e seu brilho que machuca. Mas, incrivelmente, ele, o homem que seguia pelo trieiro, não sentia dor alguma senão a dor do espírito. Sim, doía-lhe o espírito. Doía-lhe também outras partes do corpo. Ao caminhar, miragens de um poço imenso de água fria lhe aparecia ao longe. Mergulhar para aliviar a dor no espírito... Isso. Também beber uma água agradável, enterrar-se na areia de temperatura amena. Isso. Também outras coisas mais, que só o momento suscitaria. Indispensável um instante de reflexão acerca do passado. Retroagir a uns passos vacilantes antes dados. Quem sabe um renascer no meio do caminho. Quem sabe uma resolução... Daí que o pobre homem imaginava que tudo era muito difícil, que tudo sobremaneira era inelutável. Viver sem alvo certo, sem rumo certeiro. Dizer e não sentir algo além tonturas, assumir a dor de ter que respirar um ar atmosférico tão ilógico. Sim, cavar até achar o sentido de ser e não poder, de continuar mesmo extasiado, mesmo um pouco doentio. Sensação estranha a que o pobre homem sentia. Sensação de esperança. Ideia serena de que além do mormaço do cerrado em chamas existe um paraíso, uma bela e farta mesa preparada para ele (e os outros...). Dizia a si mesmo que se chegasse até esse lugar certamente voltaria para contar aos seus. Ruim por demais pensar só em si mesmo. Egocentrismo exacerbado. Mas, será que acreditariam em suas palavras, seu delírio já comprometido pela loucura? Talvez, que sabe. Quem sabe ao menos uma vez na vida ser reconhecido como o anunciante da nova vida, do novo tempo. Então precisava seguir andando. Seguir sempre, sem pestanejar. Jamais pensar em voltar, porque o trieiro só leva, não traz nunca. Nunca mesmo. Quem o diga as formigas alvissareiras, o boi bandido que foge. O trieiro tem as suas vertigens, o seu cheiro de leite, de capim molhado. Labirinto que sempre se encontra nalguma encruzilhada, onde os sonhos se encontram, cheios de esperança. Aquele homem que, chamado Inocêncio, caminhava já um tanto tonto, àquela altura, tinha correndo em suas veias, daí saindo pelos seus poros dilatados, a informação de que era essencial parar um pouco, sentar, deitar um pouco, e, depois, seguir novamente, sempre avante, sempre querendo, sempre dizendo para si mesmo frases bonitas de fortes desejos de quem quer muito alcançar o pé do arco-íris, onde, dizem, está um baú cheinho de ouro, e muitos sonhos...

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