A Garganta da Serpente
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Papajorge

(Daniel Ricardo Barbosa)

Vá fundo Papajorge, como chamam seus grandes, verdadeiros e eternos amigos. Vai fundo que a noite promete. Por que tanta demora no banho? Pensa que as mulheres esperarão por você durante toda a madrugada? Lave rapidamente o corpo que Deus lhe deu e os aparelhos moldaram, e só se demore nas axilas e na genitália. Afinal, ninguém repara numa ducha sem capricho.

Todas ficam fascinadas com o seu ombro e peito largos, o bíceps e as costelas bem delineadas, além do seu cabelo escovinha sem nenhum fio solto. Nem é preciso falar na grande ferramenta do amor, seu incansável e avantajado pênis. Sem ele, Papajorge perderia toda a razão de ser.

Lembrava-se com orgulho da admiração nos olhares das muitas mulheres que teve nos braços. Ao verem Papajorge nu ou mesmo antes, ainda nos bares e boates, seu corpo vestido em camisas e calças justas de marca, algumas chegavam a suspirar.

Na verdade Papajorge se lembrava delas, mas não tanto. Foram muitas! Ninguém seria cruel a ponto de exigir uma memória tão extensa. Ah, e quem se importa? Papajorge só se importaria com detalhes e nomes se estivesse interessado em compromisso, e jamais cogitava esta hipótese.

"Namoro, noivado e casamento são para os fracos", pensava, enquanto experimentava outra combinação de roupa.

Esta era uma hora fundamental. Papajorge observava os outros homens, jovens talvez até mais bonitos, muitas vezes com ideias e assuntos mais originais e inteligentes que os dele. De que adiantava tudo isso, se não tinham uma boa assinatura nas etiquetas do vestuário? Ele via seus amigos rindo na cara destes indivíduos, as mulheres dando os maiores "foras" neles.

Inteligência, originalidade e até beleza não valiam tanto quanto algumas dezenas de notas gastas em um shopping de primeira. Mesmo seus músculos de nada adiantariam, e no fim das contas, anos de academia mereciam um belo guarda roupa. Papajorge não era rico, mas a aposentadoria de sua mãe, que sempre cedeu às suas vontades, talvez por ser filho único, mantinha a casa e ainda complementava o seu salário de agente de turismo. Ele era cheio de necessidades e nada fazia com que as negligenciasse. Papajorge sabia ser convincente.

Que atraso! O espelho é bom, mas não exagere! É certo ficar estufando o peito e conferindo cada mínimo detalhe, mas qualquer peça que escolhesse lhe cairia bem. Papajorge gastava a maior parte de seu dinheiro com pano, e tanto fazia optar por uma ou outra combinação: tudo tinha um bom nome e estava na moda. Ande depressa!

"Tá bonito", disse à própria imagem no espelho, e depois saiu, os cabelos ainda molhados ao vento.

No caminho até o Pub onde pretendia ir naquela noite, os passos ligeiros e silenciosos como os de uma gazela, Papajorge observava as pessoas caminhando com seus grupos. Sábado era assim: tinha que aturar todo tipo de gente! Com as suas risadas ridículas, a maioria não tinha dinheiro nem para um suco e andava a toa pelas ruas. Flertavam uns com os outros, fazendo seus joguinhos de conquista cafonas e baratos.

Alguns iam ao cinema ou a outro programa que não custasse tanto, e quase sempre voltavam sozinhos. No máximo trocavam alguns beijos, os dentes cheios de obturação negra, mal cuidados por qualquer dentista recém formado da saúde pública. Suas roupas de promoções copiadas das novelas, as bijuterias. Havia certos sujeitos que usavam botas, chapéus e grandes fivelas. Faziam o estilo country. Passavam o tempo falando de mulheres, apesar de nunca terem conhecido uma, ou então sobre marcas de cerveja.

Papajorge detestava álcool e qualquer outra coisa relacionada à alteração da consciência. Era da geração saúde e se orgulhava disto. Chegou a usar asteróides, mas não mais.

Papajorge costumava cruzar com outros tipos, mas todos muito repugnantes e simplórios para serem citados. E quanto às mulheres? Acostumado a só se interessar pelas que andavam de carro, limpinhas, ele sequer olhava para as outras. Certa vez chegou a gostar de uma mais pobre, mas não valeu a pena. De repente se viu comprando numa liquidação, frequentando boates que cheiravam a lavanda e almíscar. Logo começaram a falar em casamento, vieram as pressões e aquele velho papinho sobre a virgindade.

Que ideia! Virgindade é algo que se acaba em trinta segundos, com palavras escolhidas a dedo e carícias nos lugares certos. Depois que teve o que queria, Papajorge percebeu rapidamente que estava caindo numa armadilha e deu o fora. Seria um desperdício: um mestre do amor, se amarrar a qualquer uma? Definitivamente não, principalmente a uma mulher sem dinheiro que lhe tirasse as roupas macias.

"Mulher deste tipo só é bom por uma noite e num momento de desespero", costumava dizer aos conhecidos. Como Papajorge nunca estava desesperado, muito pelo contrário, não tinha necessidade delas.

Chegou no Pub e imediatamente identificou um grupo de amigos e amigas. Estavam sentados numa mesa a poucos metros do cover, que tocava uma música quente em que se ouvia sobretudo a percussão, formada por alguns atabaques, surdos e pandeiros. Um homem com um microfone, seguido por outro com uma câmera, vieram em sua direção. Logo Papajorge os reconheceu: trabalhavam para um programa televisivo sobre a nata da sociedade.

Não era a primeira vez que ele era entrevistado para a TV, aliás, até conhecia o repórter, que adorava as suas respostas sem evasivas. Tratava-se do apresentador preferido da sociedade, fazia coluna social sem constranger a elite. Poucos acompanhavam os programas, eles diziam respeito a poucos, mas nem por isso saíam do ar.

"Como vai, Papajorge? A noite promete, não é verdade?", começou o jornalista.

"Com certeza. Tem muita gente boa por aí, a galera tá animada...", respondeu à redundante e repetida pergunta.

Várias vezes Papajorge se perguntou que tipo de pergunta era aquela, "a noite promete?". O que ela significava? Quem não sabia que todos iam à boate por três motivos básicos: uns para encher a cara de álcool e drogas, outros para mostrarem o "look", e a maioria para transar, "pegar" alguma pessoa? Às vezes as causas andavam juntas, mas não para Papajorge, que no entanto e portanto, não conseguia descobrir a promessa da noite de que tanto falavam. Será que havia novidades para alguém?

De qualquer forma, ele não pretendia perder tempo na tentativa de chegar a qualquer tipo de compreensão. O bom dos programas da TV era aparecer neles ou acompanhá-los para se distrair. Ninguém espera que eles façam algum sentido. Além disto, os comerciais sempre interessaram mais a Papajorge, que adorava ver as novas tendências e os recentes lançamentos.

"Muito obrigado Papajorge! Curta a noite que ela promete!", concluiu o apresentador, repetindo a fórmula.

Depois da entrevista, Papajorge foi se sentar com os amigos. Ter sido filmado foi de grande ajuda. Vários olhares femininos o acompanhavam agora, enquanto pedia um suco ao garçom e dizia uma piada qualquer. Na verdade ele achava estas confraternizações chatas e desnecessárias. Tinha que parecer amistoso e simpático, mas no dia seguinte nunca se lembrava dos assuntos que conversara ou das gracinhas que dissera. Serviam somente como pretexto para permanecer sentado a flertar.

Neste dia Papajorge se sentia impaciente, aquele lugar não estava agradando. Talvez fosse o calor, a música alta, a fumaça que pairava no ar ou a sua vizinha da direita, que a toda hora fungava tentando recuperar a cocaína que lhe escorria pelo nariz. Talvez até tudo junto, deixando Papajorge deprimido, perturbando a sua mente a ponto de ele não conseguir se concentrar em seus objetivos.

"Vou ao banheiro", avisou, mas ninguém ouviu.

Ele se levantou e só então entenderam o que quis dizer. No caminho, por pouco não deu de frente com um garçom e não sujou a sua roupa com as bebidas que ele carregava. "Um estúpido", pensou. No banheiro ficou um bom tempo se olhando no espelho, checando o visual. Gostava de fazer isto, sentia segurança e tranquilidade.

"Eu sou contra estas campanhas de desarmamento"

"Esta é boa", pensou Papajorge, ao ouvir o que conversavam dois homens que acabaram de entrar no toalete. Imagine: abordar temas do tipo naquele lugar! Era um absurdo!

"Deviam ficar em casa", disse a si mesmo, enquanto voltava à mesa.

Então Papajorge decidiu atacar de uma vez por todas, ir logo embora com alguma garota, transar e dormir em seguida. Morena, loira, ruiva... o cardápio estava bem variado... japonesa, hum... nunca pegara uma.

Será verdade que a vagina das orientais é ao contrário? Que ideia besta de se ter! Desde que seja vagina, tenha clitóris e esteja excitada, possua um rosto que não nos faça arrepender, uma boca quente e que mexa bem o quadril, é o que basta. Obviamente deveria também ter um carro, já que ele mesmo não tinha e sequer sabia dirigir, aquelas marchas todas, tantas placas e sinais.

A desculpa perfeita: "Vim com um amigo porque não tinha a intenção de sair com ninguém". Ela sempre colava e dava um charme especial, mas às vezes era preciso apelar. Quando se tratava de alguma conhecida, antes dizer que o carro estava na oficina do que arriscar outra mentira.

Loira, definitivamente seria uma loira. Algumas vezes o cheiro das loiras incomodava Papajorge, mas hoje ele tava afim de uma. Duas mesas à frente havia uma que não desviava os olhos, mas as suas orelhas eram grandes demais. À esquerda desta uma outra era interessante, porém, a toda hora dizia coisas no ouvido de uma amiga.

Não convinha sair com uma pessoa que vivia fazendo confidências. Além do mais, podia ser um tiro no escuro: talvez ela fosse lésbica. Até que seria razoável se Papajorge pudesse participar. Vários amigos seus tiveram encontros assim e saíram bem satisfeitos, mas hoje ele não estava com a mínima disposição.

Melhor investir em outro rumo, se concentrar à sua direita, cinco mesas adiante, onde se sentara uma loirinha pra lá de delicada, lábios grossos num batom rosa. Ela dera uns dez sorrisos bem maliciosos para Papajorge. Era a hora de retribuí-los.

Logo ele se aproximou, trocou algumas palavras e o seu nariz foi aspirar o perfume que exalava do pescoço dela. Saíram. Mulher apressada! Nem quis esperar chegar no motel, suas mãos atrevidas. Melhor assim, voltaria mais cedo para casa. Saciado.

Pegou o telefone da moça. Sara, Alessandra, Mara? Que importava o nome? Não pensava em ligar realmente! Sábado que vem será outra, ruiva, quem sabe? Vá fundo Papajorge, aproveite a vida que Deus lhe deu!

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