O quarto estava mais claro do que o restante da casa. Quando abri a porta fui
obrigado a cerrar os olhos. Fui até a janela por onde atravessava o brilho
das luzes da rua e fechei as cortinas. Apaguei os abajures que esquecera acessos.
Como o planejado, já despido, soltei o peso do corpo sobre o colchão.
Comecei a pensar em tudo o que ela me disse, sobre não estar cem por
cento convencida do que somos nós. No mínimo foi uma conversa
estranha. Suelem, minha noiva, ficou o tempo todo perguntando o porquê
de estarmos ali. Logo que tocou no assunto, por nos encontrarmos num motel,
respondi algo que ela não aceitou muito bem.
"Estou falando da gente como espécie. "Tá" entendendo?
Qual é a verdadeira razão de ser da humanidade?"
Fiquei sem saber o que falar. Convenhamos: perder o meu tempo com coisas que
só deveriam interessar aos filósofos e escritores ou a qualquer
outro tipo de maluco, em pleno sábado? Realmente não era a minha
intenção. Não seria um "passatempo" a que me
dedicasse em nenhum momento, quanto mais no meu dia de folga.
"Eu quem vou saber?", respondi.
Depois tentei mudar de assunto, mas a Suelem estava disposta a continuar. Chegou
a fazer algumas ironias, dizendo que ultimamente não conseguia ver sentido
nem em se fazer amor, trabalhar e tudo o mais.
"Você quer ir a algum médico?", sugeri, pensando em um
neurologista que diagnosticasse prontamente uma depressão e receitasse
alguma droga eficaz.
De qualquer maneira, Suelem rejeitou a ideia com convicção.
Disse que não estava doente, apenas não entendia por que esta
vida não fora uma escolha sua. Ela fora "traçada" antes
de seu nascimento, talvez até mesmo antes do nascimento de seus pais.
"Mas não foi você quem decidiu ser enfermeira? Sua mãe
até brigou contigo, não se lembra?"
"Eu sei, mas estou falando em geral, sob todos os aspectos. Já que
você citou, a enfermagem serve como exemplo. Eu tinha outras opções,
mas daria no mesmo. Mudariam os cenários, sabe? O princípio, o
meio e a forma de interagir seriam os mesmos."
Não podia acreditar no que estava acontecendo! A semana inteira dando
o maior duro no trabalho a fim de ter uns trocados para gastar no sábado,
e agora todo aquele doce. O pior é que eu não sabia o que fazer
para sair daquela situação. Como criar "um clima" em
meio a tantas perguntas?
"Esquece isto", tentei desconversar.
Depois expliquei à Suelem o que todo mundo sabe. Se a gente fica "marcando
bobeira", a vida passa sem que tenhamos tirado nenhum proveito. No fim
acabamos nos esquecendo do presente a troco de besteiras.
"Aposto que daqui a pouco você nem se lembrará dessas "coisas"
que algum imbecil pôs na sua cabeça", concluí, tentando
parecer o mais impessoal e calmo possível. Quis diminuir o tamanho do
prejuízo e recuperar o tempo perdido.
"Não foi um "imbecil" que colocou na minha cabeça.
Foi o livro de um recepcionista que trabalha comigo no hospital. Sempre que
possível almoçamos juntos no refeitório. Mais ou menos
uma semana atrás, eu lhe disse que estava muito cansada. Fazer tudo igual,
todos os dias, sentindo que verdadeiramente não chego a lugar nenhum,
estava me deixando tensa. Não imaginei que ele também se sentia
assim, menos ainda que fosse se abrir comigo e até me emprestar algo
que escrevera sobre o assunto."
Nesta hora o ciúmes não me deixou prestar a atenção
no que a Suelem falava. Comecei a imaginar um recepcionista qualquer com a mão
na cintura da minha noiva. Fiquei furioso e só consegui ouvir algumas
frases sobre o que o "lixo" do livro abordava. Como nada do que a
Suelem dizia indicava algo além de uma amizade, com o tempo fui ficando
tranquilo e pude acompanhar a conclusão de seu raciocínio.
"Meu amigo disse que algumas pessoas leram o seu livro, mas ninguém
se interessou em investir na obra. É engraçado! Depois de ler
esta "droga", nada será como antes. É como se estivesse
dormindo e agora não mais. Pena que tudo o que enxergo hoje em dia me
faça sentir tamanha tristeza."
Depois disso a Suelem completou dizendo que não era possível conversar
este tipo de assunto comigo. Deu a velha desculpa da dor de cabeça e
pediu para irmos embora. Neste momento fiquei nervoso de verdade, mas tenho
uma mania: detesto perder. Sei que se demonstrasse insatisfação,
poderíamos brigar e talvez eu perdesse a noiva.
Preferi ficar quieto: era só uma fase pela qual ela estava passando.
Logo teria a minha velha e boa Suelem de volta. Além disso, naquela mesma
noite colocaria em prática uma pequena vingança. Deixei a minha
noiva em casa. Durante o percurso, pensar no que faria logo mais me ajudou a
controlar a raiva. Fiquei em silêncio.
Já deitado, no escuro, tateei a superfície do criado mudo e apanhei
o controle remoto. Liguei a TV e o Dvd. Como o planejado rodei o filme, com
certeza mais quente do que a minha noite de sábado. Já na primeira
cena apareceram duas loiras um pouco bronzeadas "se acabando" num
beijo cheio de malícia.
Praticar uma masturbação básica é sempre a melhor
vingança. Tudo não passa da minha imaginação. A
Suelem nem ao menos desconfiaria das imagens que se formam na minha cabeça.
E hoje bem que ela tava ganhando o que merecia, com aquelas perguntas todas.