A Garganta da Serpente
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A noiva e o palhaço

(Diego Trapa)

Era tarde da noite e, de tão deserta, eu ouvia o ecoar dos meus passos no fim da rua. No chão, ainda molhado pela chuva, o brilho da luz fosca ressaltava a contradição que em mim surgia: mãos esperançosas a remexer o nada no bolso de meu paletó, os tostões deixados alhures como migalhas dadas aos pombos. Nada me restava a não ser um cigarro. Apenas um cigarro para acompanhar o retumbar de pensamentos sórdidos em minha mente. Reis que correm nus por um campo feito de ouro onde espadas brotam das copas... Eu estava perdido e, em vão, caminhei assim, sonoramente pensativo, por um longo tempo.

Larguei-me então sobre o meio-fio da calçada para esquecer. Do outro lado da rua, vi que uma mulher vestida de noiva, sentada à espera, chorava compulsivamente.

Se naquela noite eu não tivesse perdido tudo, tendo em mãos uma sequência com rei de ouros como carta alta, talvez eu visse naquela triste noiva uma foliã retornando bêbada de um baile de carnaval. Quem sabe? Mesmo não sendo época de carnaval, se eu estivesse feliz ela estaria sim vindo de um baile. Ou talvez eu a quisesse como noiva de festa junina, não importa. O fato é que, quando estou bem, suponho a felicidade dos outros. Essa é a minha forma de egoísmo. E não precisa me dizer, caro leitor, eu sei, não há crueldade maior do que a daqueles que curam a dor dos outros fechando os próprios olhos.

Mas eu estava triste. E toda aquela tristeza me permitia afirmar, com a irretocável segurança que costumo dispor, que as lágrimas daquela noiva eram de dor. Quem haveria de negar? Quaisquer olhos enxergariam uma dor atraente, uma dor genuína, sincera, bonita. Acrescente a isso o som de seu choro que reverberava de maneira a ser possível ouvi-la atrás de mim, sussurrando auguras torturantes, desmanchando a menina que até então dormia abraçada ao seu gato de estimação.

Levantei-me em sua direção movido pelo sentimento de solidariedade que floresce justamente naqueles que nada têm a oferecer. Quase despercebido, sentei-me ao seu lado e ali permaneci sem dizer uma palavra sequer. Ficamos assim parados, lado a lado, dominados pelo silêncio que gela os pés da alma e inevitavelmente espera, espera, espera...

Espera algo que sugere a esperança na suave brisa que, entre os galhos das árvores, revela dois grandes olhos de coruja. Ou quem sabe apenas aguarde o vento que sopra, disseca e seca as lágrimas dos que se calam. Suposições, para não dizer que o silêncio espera o tufão que nasce do encontro de olhares descuidados.

Rompendo a silente espera, um jornal velho, solto pelo chão, passou carregado pelo vento. Ao mesmo tempo a luz do poste falhou, piscou por alguns instantes e deu início às primeiras gotas de chuva. Foi quando me levantei, olhei para os lados e retornei para o outro lado da rua.

À beira da calçada, através da chuva, a noiva mantinha-se imersa em sua atmosfera nostálgica, enquanto eu, prestes a sucumbir em uma implosão existencial, fui desaparecendo aos poucos. Senti como se eu fosse uma personagem de um conto literário qualquer, fruto da imaginação de uma mente inconformada e subversiva, que no entanto começava a ter consciência de sua realidade. Não é fácil, nobre leitor, eu posso lhe afirmar. Antes é preferível ser um móvel velho esquecido no fundo de um calabouço, a ser um títere nas mãos de uma pessoa angustiada e egoísta.

Diante daquela revelação quase mística, me senti impelido a libertar a pobre noiva de seus sofrimentos. Ela precisava saber a verdade. Afinal, não seria ela uma personagem criada para suportar os sofrimentos de alguém que não sabe chorar por conta própria?

Pela terceira vez naquele capítulo de minha vida, levantei-me para atravessar a rua. Dessa vez vi que a noiva parara de chorar. Ela virou seu rosto em minha direção e, com seu delicado olhar borrado pela maquiagem, esperou por mim.

Naquele momento veio-me à cabeça o som das cinco cartas batendo na mesa, o cheiro dos charutos, o silencio inicial e, em seguida, os gritos de euforia. Quem suportaria tamanha sensibilidade num momento desses?

Olhei então para meu punho e notei que agora eu usava luvas. Como se não bastasse, grandes sapatos vermelhos em meus pés dificultavam meu equilíbrio. Levei minhas mãos à cabeça e me deparei com um chapéu que não me lembrava ser meu. Saiba, estimado leitor, que para não lhe furtar a verdade, supero a vergonha daquele momento, quando lhe digo que em meu rosto teve vez um triste nariz de palhaço.

Respirei fundo ao confirmar minha natureza irreal, e caminhei em direção àquela pobre moça. No entanto, após dar meus primeiros passos, caí morto no chão.

Graças a mim, ou talvez àquele que fala através de mim, a noiva, dominada por uma alegria incontida, pôde então sorrir novamente.

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