A Garganta da Serpente
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A Profundeza do Lago

(Everson Antunes)

O arrependimento não me toca! O velho chavão estava certo: "O que está feito, está feito e não há como mudar".

Fiz coisas erradas como todo mundo; e fiz coisas boas também. Mas, às vezes, você faz algo com a melhor das intenções e ela se transforma em algo nefasto; da mesma forma, às vezes, se faz uma atrocidade que por fim acaba dando início a algo grandioso. Então porque se questionar sobre o que faz, se é certo ou errado.

Apenas faça! A ação é que conta! O tempo se encarregará de julgá-las.

Eu fundei esta cidade. E se cada pessoa que mora aqui; que vive nesses prédios, trabalha nas empresas, bebe nos bares, soubesse o crime que cometi para que elas pudessem viver, trabalhar e beber aqui, que diriam? Sentiriam remorso? Temor? Me condenariam ou me aplaudiriam? Se eu não o tivesse cometido, com certeza muitas dessas pessoas estariam vivendo em favelas de grandes cidades. Se os moradores de grandes cidades como São Paulo, parassem pra pensar pelo menos uma vez sobre quantos índios foram assassinados para fundar essas cidades; e quantos colonos se mataram entre si por causa daquelas terras diriam apenas: "Oh, que terrível" e continuariam seus cotidianos.

Acres e acres de terras, florestas, campos e até um lago, dominados por uma única pessoa que vivia isolada numa mansão semiabandonada. Uma rodovia estava sendo construída, levaria pessoas pra lá, aquelas terras esquecidas valeriam muito. Somente eu tinha essa informação, não podia perder essa oportunidade. Eu mataria por aquilo. Quando a vi... o que dizer... a mais bela criatura que eu já vira. Já disse que não sinto remorso, mas lembrar daquele rosto é a única coisa que me angústia.

Uma das mais terríveis faculdades que movem o ser humano é a perversidade. Cometer o mal apenas pelo prazer do mal. E a atrocidade que cometi contra aquela graciosidade é algo que carrego comigo, mas já disse, não me arrependo. Daquele crime surgiu as fundações desta cidade
que nasceu aonde antes era aquele casarão.

Hoje sou um velho. Um velho rico que passa as noites bebendo whisky e divagando sobre o que poderia ter acontecido se eu não tivesse cometido aquela barbaridade. Apago as luzes e projeto mentalmente a imagem daquele rosto nas sombras. Não conseguiria esquecê-la mesmo querendo,
seu rosto ficou gravado na minha retina. É tarde. Não há mais nada a fazer. O copo se esvaziou e minha noite também. Minha mulher há muito já dormiu no leito e é a minha vez. Vou seguindo pela escuridão semicerrada do corredor, sempre acompanhado pelo rosto dela delineando nas sombras. A parca claridade que entra pelas cortinas me permite trocar de roupa sem precisar acender a luz. Me deito. Minha mulher ao meu lado nada diz. Eu também não. Comecei a ouvir um som de gotejar lento, como uma torneira mal fechada; e o som vinha logo ao meu lado da cama.

- Laura? Está acordada? - disse isso e acendi a luz, mas não gritei. Vi o corpo de minha mulher com a cabeça separada e não gritei. Também não chorei afinal não a amava; ela casou comigo por interesse. Apenas fiquei chocado. Ora, foi um crime cometido em meu próprio quarto e poderia ter sido comigo. Mas quem poderia...

- Eu!

A imagem! A imagem dela projetada na sombra. Ela me respondeu e agora vem em minha direção.

Ela era ela. O cabelo estava desgrenhado e bem mais comprido, as unhas também estavam compridas e o vestido... o mesmo de vinte anos... não... de trinta anos atrás. Mas agora estava rasgado, corroído, úmido, os fiapos mal cobriam os seios roliços. E ela caminhava na minha direção como uma nuvem movimentada pelo vento e pensei: "Estou enlouquecendo".

- Você se recorda de mim? - sim, eu a matei e atirei seu corpo amarrado a uma pedra no lago - Recorda? - tornei minhas suas terras, demoli sua casa e comecei uma cidade, e enriqueci com isso - Veja minhas mãos enrugadas pela água, as unhas amarelas e compridas. Do meu cabelo você se lembra? - sim, sim - Olhe para ele, úmido, emaranhado, fosco... você se lembra de como ele era?!

Corri para o telefone, mas ela era rápida e silenciosa como uma gata e arrancou o aparelho de minhas mãos e inutilizou-o. Ela me fitou com seus olhos azuis-esverdeados margeando pelo vermelho do sangue injetado nas órbitas. E seu olhar era de acusação. Não! Era de repreensão.

Ao mesmo tempo em que senti atração pela sua beleza, senti também vergonha pelo seu teor e então virei meu olhar e dei de cara com a visão do corpo mutilado da minha mulher.

- Isto não pode estar acontecendo! - murmurei - Isto não pode estar acontecendo! - berrei e me refugiei na cama - Eu a matei, você não tinha pulso, não respirava, estava morta! E mesmo que estivesse viva... então... deveria ter se afogado no lago. Estou perdendo a razão! O que está feito está feito! Minha consciência não pode me trair agora. Eu não me arrependo ouviu, não me arrependo!

- Não se preocupe. - disse ela com uma calma arrepiante - Você não me matou, porque eu já estava morta muito antes da primeira geração da sua família. Quando você me acertou eu fiquei somente desacordada. Você não ouviu pulso ou respiração ou qualquer outro traço de vida porque eu não tenho. Eu sou uma desmorta, uma vampira. Vivia sozinha naquela casa há tempos e agora há casas, prédios e outras construções em seu lugar. O que você fez com meu refúgio?

Calei-me confuso. Já não sabia distinguir a realidade. Ela parecia uma visão do modo como a fraca luz atravessa seu corpo pálido, no entanto seu toque era palpável e fazia a pele de meu rosto congelar enquanto o sangue fervia nas veias.

- Eu a demoli! Tomei suas terras para mim e as vendi e criei essa cidade.

- E os meus pertences? Livros, discos, quadros, móveis...

- Foram abandonados ou enterrados, ou serviram de lenha.

- Sua preocupação com a cultura me comove. - ela disse com uma ironia amarga fazendo de sua voz um instrumento de tortura para a minha sanidade - Naqueles livros havia respostas para as perguntas que seus filósofos e teólogos insistem em dar respostas com um sentido sem saberem que não há sentido nas verdadeiras respostas. Os quadros retratavam paisagens há muito tempo devastadas que ninguém mais vai apreciar e os discos continham os únicos registros de músicas das mais belas e ninguém mais vai ouvir.

- Ohh, medesculpeporfavor... - as palavras começaram a ser deflagradas pela minha boca como se eu rezasse um terço.

- Quantos anos foram? Lá embaixo, na profundeza do lago eu não podia ver o sol, não podia contar o tempo... foram vinte?

- Trinta!

- Trinta anos. Amarrada a uma pedra, flutuando a alguns metros do fundo lamacento, meu cabelo se emaranhando nas algas, servia de abrigo para os caranguejos. Os peixes insistiam em morder as pontas de meus dedos e os bicos de meus seios. Se você tivesse amarrado minhas mãos eu não poderia espantá-los e não sobraria muito de mim hoje.

- ...Por favor eu não sabia... medesculpe...

- A corda com que você me amarrou àquela pedra era muito boa, levou trinta anos para apodrecer por completo e eu ficar livre. Sabe como é dolorido ter que expulsar toda a água dos pulmões para dar lugar de novo ao ar. Fiquei engasgada com um dos meus próprios brônquios, você pode imaginar?

Arrependimento! Finalmente senti seu gosto ácido na minha boca. Era muito fácil dizer "nunca se arrependa" mas na realidade não é você que escolhe o arrependimento. É o arrependimento que escolhe você.

- Por favor, me perdoe! Não houve uma noite em que eu não pensasse em você. Minha mente projetara seu rosto em tudo o que tivesse um fundo negro. Eu fingia não ter remorso e fingia para mim mesmo, agora sei.

De repente, os traços de seu rosto começaram a ficar mais leves, aquela expressão de repreensão sumiu e deu lugar a uma mais serena. Então, ela ergueu lentamente os braços em minha direção, como uma mãe que abre os braços para acolher um filho arrependido. E eu a abracei, aliviado, e rocei meu rosto nos seus seios e suas mãos passaram no meu rosto e no meu pescoço:

- Também não houve nenhum momento, enquanto eu estava na profundeza do lago, em que eu não pensasse em você. - Ela murmurou no meu ouvido e então sua unha penetrou na pele do meu pescoço e eu comecei a gritar:

- AAAAAHHHHHH!!!!

E sua unha rasgou o meu pescoço arrancando a minha traqueia e meu grito se transformou num gargarejo de sangue saindo diretamente do orifício em meu pescoço. E ela se debruçou e começou a sugar o sangue que jorrava dali.

Eu me arrependi, e daí? Isso não me salvou e não salvará minha alma se houver uma pra ser salva. Não são nossos pensamentos ou palavras que nos condenam ou salvam, são nossos atos. E o que está feito... está feito.

Mas ela não me deixou morrer ali. Ela tinha planos. Ela me levou até a beira do lago, acorrentou cada um dos meus membros a uma pedra e então compreendi.

Eu não iria morrer. Ela sugou meu sangue e me transformou num eterno semimorto; sem forças para viver e incapacitado de morrer. Agora ela me leva até o meio lago e me atira. Fiquei olhando para cima até o último momento em que a água me permitiu ver seu rosto. A profundeza do lago era fria e escura. Meus braços e pernas estavam presos a pedras no fundo e não podia me mexer. E eram correntes de metal que não apodreciam facilmente. Senti algo mordiscar minha pálpebra: era um peixe. Eu não conseguia vê-lo até o momento em que ele vazou os meus olhos, primeiro um e depois o outro. A escuridão total se fez pra mim. Mentalmente eu projetei uma imagem nessa escuridão, a imagem de um rosto; o dela.

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