-A mãe vira lobisomem.
-Mesmo?
-Toda sexta-feira. De lua cheia.
-Toda?
-Come gente.
-Criancinha?
-E gente adulta.
-E ele?
-O príncipe?
-Quem mais?
-Sofre.
-Como filho?
-Mais ainda.
-Faz o quê?
-Procura consolo.
-Consolo?
-Na floresta.
-Hein?
-Com o velhinho.
-Aqui, ó príncipe, floresce a couve e a alface. Aqui, ó
príncipe, floresce o rosto e a face.
-Face de quem? Da mãe que não posso alcançar?
-Face de quem você pode de tudo salvar.
-Salvar?
-Na floresta... existe um lugar encantado.
-Encantado?
O bisavô do velho contou ao avô do velho, que contou ao pai do
velho, que contou ao velho, que contou ao príncipe, que contou ao mundo.
-O quê?
NO REINO ENCANTADO
RAINHA
Ai,
que me adianta
ter a flor mais linda,
a begônia, a magnólia,
a orquídea,
de todas elas a glória,
REI
se delas não tens
o pólen,
se com a gente
tudo morre,
de nós nem
rei nem rainha
vai nascer,
se, de nós,
tudo vai fenecer?
Mas um dia a rainha pariu a mais bela criança que no mundo já
se viu. Menina era, princesa seria. Assim estava satisfeita a corte, a realeza,
o rico, a pobreza, o sonho, a fantasia.
Todas as fadas para o batismo foram convidadas. Vieram as fadadas e as não
fadadas, as solteiras e as casadas. Só não veio a mais velha.
-Por quê?
-Não foi convidada.
-Por quê?
-Era peidorreira. E enfezada.
Só que a enfezada fada um jeito encontrou de entrar, atrás de
um reposteiro no salão deixou-se restar, de lá pôs-se a
tudo ver, sem de nada um mínimo átimo perder.
A FADAÇÃO
-Que esta princesinha tenha sempre os lábios do carmim mais puro.
-Que esta princesinha tenha sempre os peitos durinhos, acetinados, no presente,
no passado. no futuro.
-Que esta princesinha seja rica como um tesouro, bela como a luz, matreira
como a raposa, dadeira como na cerca o chuchu, forte como belzebu.
-Ah!Ah!Ah! - fez a fada Peidorreira. - Vocês já fadaram, agora
fado eu. E o que eu fadar não pode se modificar, porque fado por derradeiro.
Pouco tempo viverá a menina. Quando quinze anos completar, sua mão
com um fuso de fiar algodão ferirá. E morrerá.
-Ih, ih, ih! - ouviu-se de repente.
-Quem era?
-A fada Fedidinha.
-Fedidinha?!
-Saída da pocilga.
-Estava rindo?
-Da Peidorreira zombando.
-Podia?
-De sua maldade.
-Podia?
-Ia fadar por último.
-Fadou?
-A princesinha salvou.
"Mesmo por um bilro furada, a princesinha vai viver, adormecida embora,
à espera do belo príncipe que do sono de cem anos a tirará
para fora."
NA FLORESTA
OU
A TRAVESSIA
Capim, capoeira, capinzal, canavial
o príncipe pisou.
Rios, riachos, regos, ribeiras
o príncipe atravessou.
Fogo, fumaça, fogueira, fagulhas
o príncipe encarou.
Tempestade, tufão, tormenta, tornado
o príncipe enfrentou,
até chegar ao palácio encantado.
FLASH BACK
O rei, por decreto,
proibiu que em todo
o reino se fiasse.
Sem fiados,
a vida no reino correu,
calma, remansosa,
todo mundo de olho na princesinha,
para ela evitando
qualquer rebordosa.
Mas a princesinha, além de linda, muito bonitinha, era, como adolescente,
uma boa filha da putinha. Em vez de no seu cantinho ficar, ficava o tempo todo
pelos 1334 cômodos do palácio a zanzar. Foi assim que num deles
viu uma fiandeira, às escondidas, fiar. Os olhos arregalados, pôs-se
a tudo examinar.
Foi aí que o bilro viu.
Extasiada se sentiu,
as mãos por todo ele correu,
o sangue todo se lhe ferveu,
o espírito desvaneceu,
o mundo sumiu e apareceu,
a luz apagou e acendeu.
O bilro então
a princesinha furou.
-Ai! - gemeu ela
e para trás, como morta,
durinha caiu.
A fada Fedidinha apareceu,
fadou, a todos no castelo encantou.
E até hoje lá estão,
juntos com a princesinha,
à espera do príncipe
para os libertar da encantação.
A SALVAÇÃO
"Ai, como esse bem
demorou a chegar!
Eu já nem sei
se terei no olhar
toda a ternura
que eu quero lhe dar!"
Dar, ela deu.
E tanto
que logo um filho,
de nome Belo Dia,
lhes nasceu.
E depois uma filha,
de nome Bela Aurora,
o sucedeu.
A DANAÇÃO
A rainha velha
via Belo Dia crescer,
rosadinho, rechonchudo,
e só pensava
em com ele encher
o pandulho.
A rainha velha
via Bela Aurora
ficar a cada dia
mais gordinha,
mais apetitosa.
Sua boca se enchia d'água
só de pensar naquela
carne tenrinha, gostosa.
A rainha velha
via a carne já madura da princesinha,
pensava no sangue que a regaria,
e não via a hora
em que todo ele sugaria.
Assim os dias no palácio transcorriam,
na superfície venturosos,
no fundo soturnos, tortuosos.
A DEGLUTIÇÃO
Desse jeito tudo continuou
até que, certa ocasião,
o príncipe saído para caçar cervos,
a rainha velha os três prendeu.
Alimentou-os a pão de ló,
fê-los comer sem dó,
queria-os sacudidinhos
para degustá-los todinhos.
No alvorecer do quarto dia,
logo de manhãzinha,
levou-os para o pátio do palácio,
amarrou-os em estacas,
debaixo delas fez montinhos de capim
para, depois de sugá-los, assá-los.
Foi quando, de inopino,
o príncipe, voltado da caçada, surgiu.
Revoltado com o que viu,
terrível grito deu,
sobre a mãe pulou,
a cabeça dela cortou,
todo o seu sangue, todinho, chupou.
Gostou.
Belo Dia e Bela Aurora
já estavam mortos,
mas com o sangue intocado, intacto.
Ele, com muito tato,
lhes cortou da garganta a veia,
aquela que entre o pescoço
e a cabeça permeia,
e dos dois, um a cada tempo,
o sangue por inteiro sugou.
Mais ainda apreciou.
Enfim, para a princesinha se voltou,
e dela sem um ai,
o coração lhe arrancou.
Pulsante, ensanguentado o devorou.
Saciado, no entanto, não estava.
Alguma coisa lhe faltava.
Foi quando o foguinho acendeu,
os quatro nele cozeu
e tanto deles se fartou que se besuntou.
O dia já clareando, lasso se sentiu.
Debaixo de uma jaqueira
se acomodou, o corpo estirou.
Deu longo bocejo,
leve arrotinho, discreto peidinho.
Logo se viu envolto
por gostoso soninho.
E lá permaneceu,
o dia inteiro, inteirinho,
agora por sono pesado tomado.