A mais velha se chamava Marivalda. Seu olho direito para a esquerda se voltava,
o esquerdo para a direita mirava. O da direita era de vidro, só o esquerdo,
verdadeiro, funcionava. Assim o mundo ela encarava.
Mariilda era como a do meio se chamava. Faltavam-lhe os dois olhos e todos os
dentes da superior arcada. Apenas três, pequenininhos, sobranceiros, bem
na frente, na gengiva inferior sobrenadavam. Assim no mundo ela mastigava.
Marione era a mais novinha. Não tinha dentes, não tinha olhos.
A perna direita da esquerda dez centímetros se agigantava. Assim ela
- deixa que eu chuto - capengava.
Era a forma como no mundo andava.
Todas as noites, Marivalda os dois olhos tirava. O de vidro, na gaveta esquerda
do criado mudo guardava. A gaveta da direita era onde o olho bom sempre ficava.
Com as irmãs o seguinte combinara: pela manhã, até o meio-dia,
Mariilda o olho bom usava. À tarde, até às seis, era a
vez de Marione dele desfrutar. E ela, Marivalda, com ele ficava até a
hora de se deitar.
CANTIGA
Roda, roda,
Roda o mundo.
O mundo é puro
Rodar.
Gira, gira
Gira o mundo.
O mundo é puro
Girar.
Se eu fosse
Uma das Graças
Um amor
Eu procurava.
Se eu fosse
uma das Graças
um amor
eu encontrava.
Como não sou
Uma das Graças,
Em busca do amor
Não vou.
Como não sou
Uma das Graças,
Sozinha sempre estou.
Ai, ai
Ai, ai,
Sozinha sempre estou
Ai, ai,
Ai, ai,
Negar isso
Não vou.
Ai, ai,
Ai, ai.
ANÚNCIO DE JORNAL
Senhor de meia idade, situação financeira definida, branco, 1,70
de altura, 68 quilos, olhos azuis cor do mar, aposentado, procura, para fins
de relacionamento sério, senhoras ou senhoritas em idêntica situação.
Favor enviar fotos, inclusive de corpo inteiro e, se possível, de maiô
Catalina.
AMOR DE PERDIÇÃO
Marivalda para as irmãs o anúncio leu. Os olhos tirou, foram se
deitar. Alta madrugada, Marione se levantou, pelo quarto tateou, a gaveta direita
do criado mudo abriu, o olho bom pegou, nela ele colocou. Com o travesseiro,
Marivalda sufocou.
Mariilda na cama se agitou.
- O que foi? - chegou a perguntar, mas Marione nem a deixou continuar. Com o
mesmo travesseiro também a ela acabou por matar.
Em seguida, com a faca dez centímetros da perna esquerda de Mariilda
cortou. Em sua perna esquerda esses dez centímetros enxertou, para nunca
mais capengar. De Marivalda, os dentes todos tirou, nela colocou, no espelho
do guarda-roupa se olhou, seu sorriso no escuro fez brilhar. Sentada na cama,
esperou o dia clarear. Assim que o sol a tudo cobriu, o maiô Catalina
vestiu. Na porta da casa se sentou, o Príncipe Encantado pôs-se
a aguardar.
Até hoje, no mesmo lugar, por ele continua a esperar.