A Garganta da Serpente
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Hotel

(Edu Beckandroll)

De todas as situações bizarras que eu havia vivido até então em minha curta, no entanto promíscua e banal passagem pela Terra, esta que irei relatar, sem dúvida é a pior.

Em 1953 eu contava com a idade de 15 anos e costumava passear demoradamente, todas às tardes, por aquela minha minúscula e querida cidade. Eu parava defronte a cada vitrine, estacava e cumprimentava cada um dos passantes, e, se avistasse algum forasteiro, logo me aproximava para obter algumas informações a seu respeito.

Pois tanto foi, que, numa gélida e absolutamente encantadora tarde de inverno, tarde de mais um desses meus passeios diários, que eram tantos e tão demorados naquela época, eu vi uma pessoa maravilhosa, que há tempos eu sonhara, sim, eu tinha certeza, eu já havia sonhado com aquele rosto!

Aproximei-me então o mais rápido, porém suavemente, que eu pude e logo estávamos nós dois sentados à grosseira mesa de um bar, gargalhando e detalhando pormenorizadamente nossas vidas até então um para o outro.

A conversa seguia tão animada e agradável que a noite já caía quando nem sequer havíamos a percebido chegando.

E da mesma forma que não percebêramos a sorrateira e inebriante chegada da noite estrelada e fria, nós não havíamos percebido, como se fosse apenas um espectro invisível a nos rondar, aquela aura que nos envolvia, intoxicava e fazia respirar. Algo arrebatador, destruidor, aniquilador estava por acontecer. Certamente algo que nós ainda não tínhamos provado.

Minha nova companheira solicitou que eu a acompanhasse até ao pequeno hotel o qual se hospedara, então nos despedimos no lobby do hotel e fiquei assistindo ela deslizar escada acima até o estágio superior do hotel onde ficava seu quarto. Virei-me rapidamente, assim que ela desapareceu no topo da escada e rumei para minha casa.

Ao entrar em meu quarto deitei-me e fiquei imaginando como seria possuir aquele corpo de aspecto virginal e branco, de tranças longas e nuca delicada. Fui tomado por uma sensação febril a qual meu corpo reagia através de pequenos espasmos e suores, muitos suores.

Completamente perturbado por aquele mulher estranhíssima e encantadora eu não podia dormir. Meus olhos não cerravam, minha consciência não serenava, como se houvesse um motor funcionando dentro de meu peito. Então levantei-me, calcei as botas, coloquei um casaco e singrei através da madrugada pela cidade vazia e fantasmagórica até chegar ao
hotel.

Antes eu houvesse permanecido deitado tentando em vão adormecer.

Os fatos que lhes irei relatar a partir de agora serão reproduzidos o mais fielmente possível que minha torpe memória permitir. Se bem, posso assegurar-lhes, os acontecimentos daquela noite foram tão impactantes em minha vida que eu jamais poderia esquecer, por mais insignificante que fosse, qualquer detalhe, qualquer segundo de tudo que ocorreu de forma dolorosa e inverossímil.

Chegando defronte ao pequeno hotel, que era simples, porém limpo e digno, fiquei a observar o movimento ao redor do pequeno prédio. Nada de anormal. As ruas estavam calmas e quietas como um cemitério. Notei que apenas uma janela no segundo andar permanecia iluminada, indicando uma possível movimentação. Fiquei alerta, em estado de vigília absoluta, fixando meu olhar naquela janela que parecia me hipnotizar.

De repente sua silhueta surgiu por detrás da cortina iluminada por uma luz fraca e amarela. Deus! Quanta excitação senti naquele momento, algo incontrolável, então decidi que teria que entrar naquele hotel de qualquer maneira e chegar até o quarto que guardava o maior e mais delicioso tesouro que eu tivera a felicidade de encontrar em toda a minha vida.

Dirigi-me até a entrada principal do hotel e percebi que lá dentro apenas um sonolento atendente dormia encostado no balcão da recepção, tentando fingir que estava acordado e zelando diligentemente pelo estabelecimento.

Seria mais fácil do que eu havia imaginado penetrar no hotel sem ser visto e chegar até o quarto daquela mulher que me atraía como as estrelas atraem os demais corpos celestes. No entanto, havia um pequeno problema. A porta deveria estar trancada.

Com efeito, ao chegar até a porta constatei que ela estava chaveada por dentro, com o molho de chaves dependurado na fechadura feito um corpo na forca.

Então ocorreu-me algo brilhante.

Corri até minha casa e telefonei para o hotel. Dez vezes o telefone chamou até que a voz sonolenta atendeu perguntado o que desejava. Informei que algo terrível estava acontecendo no último andar do hotel, no quarto 602, um homem embriagado tentava assassinar sua mulher enquanto arremessava todos os objetos do quarto contra as paredes, tornando dessa forma qualquer tentativa de conciliação com o sono impossível. O rapaz assegurou que subiria imediatamente e resolveria o problema, e talvez afetado ainda pelo sono, desculpou-se mil vezes sem ao menos verificar em qual quarto do hotel eu estava hospedado.

Larguei o telefone de qualquer jeito e corri o mais que pude até o hotel e chagando lá quebrei o pequeno vidro da porta, abri-a e tratei de subir rapidamente as escadas até o terceiro andar, no qual se encontrava a mulher mais linda do mundo, oferecendo-se na janela para mim e somente para mim.

Quedei-me diante da porta do quarto da mulher e senti que estava em um sonho. Sim! Agora eu lembrava perfeitamente, o sonho que eu já havia tido com aquela mulher, com aquela noite, aquele hotel, aquele quarto... Aquela junção de fatores que eu vislumbrara tempos atrás em um sonho, como um sinal premonitório, determinaria o rumo de minha vida dali por diante.

Quase derrubei a porta do quarto, batendo com tanta força, completamente tomado por uma louca excitação, eu sentia meus olhos latejando, minhas têmporas vertendo suor.

A porta não abria, eu batia cada vez mais forte, esmurrava a porta, chutava-a, esbravejava pavorosamente até que derrubei aquela maldita porta e pude entrar correndo no quarto para finalmente possuir aquela mulher virginal e lasciva.

Deus! A cena que encontrei dentro do quarto. Que horror! Sangue nas paredes... Sangue no chão... Uma poça de sangue... sob os pés dela, diante da janela, empalada por uma grande e pontiaguda barra de ferro que entrava pelo seu ânus e saia pela boca junto com tripas, merda, sangue e vísceras.

Então era isso que eu via da rua. Um cadáver empalado defronte a janela sobre uma horrível poça de sangue.

Meu grito varou a madrugada enquanto três ou quatro homens me imobilizavam em meio a lamúrias incrédulas.

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