A Garganta da Serpente
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O inimigo natural

(Edu Beckandroll)

Quando eu tinha apenas dez anos de idade, em uma tarde de inverno em que uma fina chuva caía, eu tive uma revelação. Uma grande e importantíssima revelação.

É bom salientar que a chuva que caía apesar de muito esparsa prenunciava dias e mais dias de tempo cinza e melancólico. Eram daquelas chuvas monótonas e desconcertantes que despertavam desejos estranhíssimos em algumas poucas pessoas. E estas pareciam selecionadas rigorosamente, devido ao talento nato, de ver muito além do que os olhos podem ver, que revelavam nos momentos de melancolia profunda.

Era gozado ouvir o som da chuva batendo na calçada enquanto as outras crianças brincavam entretidas, completamente distantes da perversa realidade, mergulhadas em um delírio onírico infantil.

Mas, voltemos ao tema gerador deste relato.

A chuva incomodava sobremaneira aqueles como eu que possuíam a capacidade natural de se irritar até mesmo com as mais frugais demonstrações de superioridade da natureza em relação ao homem. Sentia-me por diversas vezes como se estivesse absolutamente a mercê
das vontades da senhora Natureza, como se esta pudesse controlar a mim e aos meus semelhantes como se fôssemos meros marionetes do mais vulgar dos teatros.

Essa sensação despertava em mim um ódio tão forte, um descontentamento tão arraigado em minha alma com as inexoráveis leis da física e da natureza que não me restava outra alternativa a não ser amaldiçoar toda e qualquer forma de vida, qualquer fenômeno natural, chegando ao ponto máximo da sobriedade (ou loucura?) de desejar que todos os seres fossem extintos, que o ambiente se transformasse no mais asséptico dos claustros e que eu, devido a minha inegável clarividência em relação a tudo isso, fosse alçado a condição de líder natural de um novo mundo e de uma nova humanidade.

Eu olhava aquela chuva maldita e me entregava totalmente aos pensamentos revolucionários sobre uma nova ordem natural e social que poderia conduzir a humanidade a conquistas nunca dantes sonhadas. A natureza era um empecilho para o homem e atravancava seu progresso, era dever de minha geração construir as bases, erguer os alicerces, da maneira mais sólida possível, que serviriam como lastro para o nascimento, desenvolvimento e plenitude de uma nova humanidade.

Enquanto aquela maldita chuva teimasse em continuar caindo nada eu poderia fazer. E isso só me deixava mais convicto de algo que deveria ser feito, sob a aterradora pena da humanidade viver perpetuamente sob a terrível sombra do desconhecido que, por critérios nem um pouco lógicos, absolutamente desconexos, sem relação alguma entre causa e efeito, condenava todos a determinar seus passos e ações de acordo com seus humores nem sempre favoráveis. O Homem é maior que a Natureza e deve, imediatamente, dominá-la de uma vez por todas. Eram esses os pensamentos que acometiam minha alma naquelas intermináveis tardes chuvosas e entediantes.

Ah, meus amigos! Como que quisera possuir o Dom de selecionar as espécies que mereceriam continuar existindo sobre a face da Terra! Eu poderia, muito mais sabiamente que Deus, encerrar com os tormentosos fenômenos naturais, como terremotos, erupções inúteis de vulcões assassinos e imprestáveis que colocam sempre nossa existência em xeque, como um intimidatório dedo acusador e inquisidor, eternamente a nos lembrar nossa frágil situação neste universo hostil e inquestionável.

O ódio em meu coração a essas alturas era de tal forma intenso que embriagava toda a minha alma numa pavorosa mescla de bílis e ácido, eu me perdia nos devaneios e chegava a ficar febril, tamanha era a reação que meu corpo demonstrava ao constatar a prisão na qual se encontrava.

E foi naquela tarde maçante e interminável que essa revelação foi-me feita, a partir somente, e tão-somente, de minhas observações pela janela da velha casa que eu habitava com minha família. Durante um tempo fiquei pasmado, num estado letárgico que lembrava o torpor proporcionado por alguma espécie de tóxico que me deixava inerte, porém, extremamente sensível a tudo o que acontecia ao redor. Ouvia os passos das formigas, escutava as folhas das árvores chocando-se umas contra as outras e recebendo desprotegidas as minúsculas gotas da chuva. Eu sentia o perfume das rosas enchendo meu quarto, penetrando em cada espaço que houvesse. Longe, muito longe alguns pássaros incomodavam, com seus ruídos cretinos e inúteis.

Elegi naquela tarde comum o objetivo de minha vida. Eu viveria a partir daquele momento somente e obcecadamente para aniquilar o inimigo natural. Sim! O inimigo natural, que limitava, assassinava, coordenava, determinava cada passo de cada ser vivente sobre este planeta maldito. A humanidade, devido a minha incrível clarividência tornaria-se enfim livre. Libertaria-se completamente das opressões naturais, impostas por uma natureza impiedosa e cheia de defeitos. O Homem é racional, é matemático, é previsível... Não poderia continuar sob o jugo totalitário de forças imbecis que não acrescentam nada à sua existência e desenvolvimento. Pelo contrário: lhes tiram um pouco da grandeza de ser Homem. Afinal, nos bastam os minérios! E algumas formas de vida, maravilhosamente controladas e observadas, que serviriam para alimentação. O homem e os minérios! A parceria mais bem sucedida e perfeita de todo o universo. E hoje, tantos anos depois daquela tarde redentora, escrevo estas linhas. É claro que meus objetivos ainda não foram totalmente alcançados, isto nem seria possível em tão curta passagem pela Terra. Mas as bases foram construídas. Outros seguirão meu trabalho, da mesma forma que outros tantos já seguem. No final, o Homem, somente o Homem, existirá.

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