A Garganta da Serpente
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O crime foi em São João Marcos

(Emil de Castro)

Vim a São João Marcos para cumprir meu juramento na cabeceira de minha mãe. "Você tem que voltar lá para saber a história verdadeira" foi o que ela determinou e eu tive que cumprir. Todavia não foi só por sua vontade, havia os meus motivos, minha razão particular e só minha de descobrir o que aconteceu naquele dia fatídico, um dia de dor e sangue, como estampou em manchete o jornal local.

Ninguém prestou atenção na minha chegada, apesar de eu ter mandado um telegrama para minha tia. Na verdade, eu não era uma figura importante que causasse alguma curiosidade em alguém. Se fosse em outro tempo, na época de meu avô, poderia ser uma visita muito importante, mas agora nem minha tia se lembrou de que um sobrinho chegaria na cidade. Com certeza ela deve ter ficado chateada, não é que não ficasse contente em receber o filho mais velho de seu irmão que não via há mais de 20 anos, mas por causa das festividades.

A cidade estava em festa. Minha tia era a maior festeira de seu tempo, conhecida por sua facilidade em aproximar as pessoas e jamais seu nome deixava de ser incluído nas comissões de festa do santo padroeiro. Deve ter pensado que não teria o sobrinho um dia melhor para visitar a sua única tia viva? Como se tudo na vida fosse planejado como se quer, principalmente na nossa família que trazia a sina de causar tantas coisas surpreendentes. Não vou bater pé firme com essas ideias sem sentido. Se vim até aqui, é porque o destino me impôs. Discutir é o que menos me interessa nessa altura dos acontecimentos. Vim porque tenho que decifrar o mistério que atormentou meu pai. Mesmo que minha tia não apareça, ou quem sabe nem tenha como aparecer depois de tantos anos. Quem sabe ela não tenha morrido de fato como parecia ter ocorrido contra a vontade de minha mãe que afirmava que recebeu uma carta dela pouco antes de morrer. Pode ser. "Pode ser" era o que meu pai repetia para si mesmo ao remexer mil vezes nas suas lembranças. "Pode ser" repetia minha mãe. Eu era o que menos tinha alguma coisa a dizer, a não ser ouvir sem nada entender desse intricado de mistério.

Vim aqui não propriamente para descobrir a verdade, mas para revelar a história com toda sua crueza, e é isso que pretendo fazer se me for permitido por minha tia. Aqui estou de volta onde sempre estive no passado. Contra a minha vontade, pois jamais gostei de acompanhar meu pai nas suas visitas à minha tia. Se nasci em São João Marcos não foi por minha decisão, nem poderia ser, eu sei disso. Algo do meu interior me assegurava essa certeza de que eu não desejava essa terra como meu berço natal. Pura tolice. Aliás, como tolice foi o que levou meu pai a insistir naquela fixação de querer desvendar o que parecia não poder ser desvendado: o mistério da tragédia que o mortificou toda a vida.

Agora eu estava mais próximo do casarão. Bastava atravessar a ponte sobre o rio do Bagre, subir a ladeira e desembocar no lado oposto da praça central. Pronto, com um abrir e fechar de olhos, estaria a um passo do portão do fundo do casarão. Era o caminho que minha mãe me ensinou. O caminho que ela sempre fizera todo santo dia para ir à farmácia do Gonçalves. O caminho por onde meu avô passou para conhecer sua mulher. Mas essa é outra história. A história que me interessa é a que o levou a agir como agiu daquela forma. O que o levou a matar sua mulher, a filha e suicidar-se enforcado no galho da grande figueira que atravessava seus galhos sobre o rio do Bagre era o mistério que meu pai levou a vida toda a decifrar, se tornando um homem destroçado. Isso depois de recobrar a memória 10 anos após o acontecimento. O que contava minha mãe. Meu pai foi quem encontrou os corpos e entrou em estado de choque. Não era mais do que um menino de 12 anos que via no pai a imagem que adorava. "Virou mania" falou minha mãe. O pai muitas vezes contou o fato para todos os que vinham de São João Marcos visitá-lo. Mil vezes repetiu a história com todos os detalhes, como encontrou os corpos da mulher, sua mãe, e da filha, sua irmã, e o pai pendurado no galho da figueira, o corpo a balançar de um lado para o outro. A mãe jamais o contrariou no que ela dizia ser a sua sina. Pelo contrário, ela dava o seu colorido na história, acrescentando alguns qualificativos que a tornava algo mais poética e menos dolorosa para quem se via obrigado a participar daquela tragédia.

Um dia, no entanto, o pai pareceu não se interessar mais pela história. Quando alguém de lá vinha à sua casa, de passagem, ele já não falava mais nada sobre o assunto. Com certeza teria apagado dentro de si a memória daqueles fatos. Quando a visita partia, ele entrava para o seu quarto, onde se trancava e permanecia durante horas, sem dar de si. No princípio a mãe ficou preocupada, mas depois, como ele nunca deixou de sair, ela aceitou suas justificativas. O pai, na verdade, jamais perdera a normalidade. Jamais perdera o tino das coisas. Agia com a mesma naturalidade de sempre e não deixava ninguém perceber qualquer desvio de conduta.

Assim corriam as coisas. O pai se isolava no quarto e lá ficava horas e horas e depois tudo voltava ao normal. Somente com sua morte, tranquila, durante uma noite de inverno, e de sua mulher, minha mãe, é que penetrei no seu quarto e observei a gaveta da escrivaninha fechada à chave. Alguma coisa importante nela estaria encerrada. Talvez a resposta de todo o mistério. A resposta que o pai tanto procurava. A resposta que hoje eu ainda procuro e tenho a esperança de encontrar senão nos papéis que permaneceram no casarão, quem sabe na poeira das ruas da cidade.

Abri a gaveta com todo o cuidado, com o auxílio de uma chave de fenda, pois que não encontrei a chave que a fechava. Foi então que entendi o que ele fazia trancado no seu quarto. Ele, cansado de tanto narrar a mesma história por infinitas vezes, passou a escrevê-la para si mesmo e a cada vez dava uma versão nova para a velha história. Versões que pareciam inverossímeis, porém conservando o mesmo tom de mistério.

Mas é a verdadeira história do por que todos morreram que vim aqui descobrir. Se é que minha tia não foi como os outros arrastada pelas águas da represa que arrasaram a cidade.

Vim para desvendar o mistério que atormentou o meu pai. Sei que de nada me adiantará descobrir a verdade. Meu pai na sua última versão diz que meu avô era um homem bom. Sei que ele era um homem bom. Sei também que meu pai escreveu que minha avó jamais traiu meu avô e que tudo não passou de um breve momento de loucura. "Minha avó era uma santa", foi o que escreveu meu pai na sua última versão. Pode ser verdade. Quem sabe? É por isso que vim a São João Marcos. Somente por isso e nada mais. A verdade? Meu pai a levou para o túmulo depois que tanto a reescreveu com o próprio sangue. Mas será que minha tia poderá revelar o grande mistério? Vim aqui somente por esse motivo. Amanhã quem sabe saberei a verdade.

(29.05.2003)

  • Publicado em: 21/05/2010
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