A Garganta da Serpente
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As dores finais de homem

(Evan do Carmo)

Em um quarto de um hospital público, jazia um corpo quase sem vida, um corpo de um homem simples, que padecia de um mal complexo. O Francisco das Chagas, que não tinha nada a ver com as Chagas dos mártires, ou com o mártir que lhe emprestara o nome; havia anos que sofria o esmagador processo de um câncer voraz que lhe destruía as partes baixas.A doença já lhe dilacerara todo seu ventre.Depois de buscas inúteis de cura sem intervenção cirúrgica, fora submetido abruptamente para remoção de um tumor maligno que se alojara em sua próstata. A cirurgia ocorre de modo esperado, seu organismo reage positivamente a ponto dos médicos cogitarem a possibilidade de não lhe submeter ao tratamento de quimioterapia.Todavia, em apenas trinta dias seu quadro foi revertido, de estável para critico, passou a sentir dores atrozes, que lhe levava ao delírio, à agonia da morte.

Voltando ao hospital, fora outra vez operado, desta vez retiraram-lhe os seus órgãos infectados, passou a urinar e a defecar por via sondária. A infecção era tamanha que, foi necessário lhe deixar de barriga aberta, para acompanhar melhor seu estado clínico, cada dia mais crítico.

Agora se encontra em um estado vegetativo, onde ninguém compreende, nem se arrisca a lhe encorajar, a lhe acariciar com palavras de tom positivo. O que é que se pode dizer para justificar a situação de um homem crente?Que Deus lhe chamara ao seu reino de glória? Ou que tudo isso fora consequência dos seus erros passados, da vida atual, ou de possíveis vidas vividas em outro corpo, em outro tempo?Ou ainda, como alguém em sã consciência poderia abrir a boca para dizer algo que não fosse fruto de ignorância existencial, ou de crendices sem fundamento lógico?

Eu tive o desprazer de conhecer tal homem, em tal estado lastimável. Levarei ao conhecimento da humanidade tal experiência, que vivi em carne e osso, que presenciei com os olhos embotados de pranto invisível; visto não ter o dom de chorar literalmente para outro homem vê, que eu sentia por ele apenas piedade mórbida.

Fui apresentado ao Francisco em uma tarde de domingo quando visitava outro conhecido que sofria de um mal infinitamente menor que o dele. Ao entrar em seu quarto, observei um quadro psicológico de grandeza singular: um homem que mal abria sua boca para pedir gotas de água, que fora há pouco lhe permitido beber, depois de vinte dias sem engolir nada de comer ou de beber por via natural. O amigo que lhe conhecia antes de mim me disse que ele estava de fato nas últimas horas do seu existir, que eu não me surpreendesse com seu modo de agir, e que os parentes todos já estavam consolado com o seu amargo fim.Eu não levei a sério tal alvitre; entrei de alma aberta, não esperava nada de anormal, que não pudesse absorver rapidamente como tinha o costume de fazer em situações difíceis. Enganei-me redondamente: fui surpreendido pelo abismo que me abriu, diante dos olhos cegos do meu espírito que até então não conhecia visão tão nefasta, ou pela emoção que registrei no âmago do meu ser; senti como que uma dor desconhecida que jamais teve fim, sobretudo durante o tempo que lá fiquei. Não acreditava que um ser humano fosse capaz de suportar uma situação similar àquela que suportava o meu novo amigo Chagas.

Ao entrar, segundos depois de ser apresentado, outras visitas foram embora, inclusive meu amigo, o que me levara; era necessário que saíssem para que outros pudessem entrar. Então por alguns instantes que não sei precisar o tempo exato, fiquei a sós com um paciente que agonizava às portas da noite eterna. Ficara a princípio eu e a sua esposa, uma senhora de cor, que pelo semblante abatido, passava-me um ar de distração, ou de resignação. Ela me falou:

-Você pode ficar com ele enquanto eu vou ali no quarto ao lado, olhar uma amiga que operou hoje?

-Sim! Pode ir! Eu fico com prazer!

Assim que saiu a mulher:

-Pode me dar um pouco de água?- disse-me ele com voz entrecortada, com olhar de desespero, como alguém que enxergava em mim um cúmplice para lhe conceder de forma ilícita um alivio breve...Peguei com um copo descartável um pouco de água, e segurei em sua boca; ele bebeu com fúria de quem não bebera água havia muitos dias.Depois que terminou, logo em seguida, assim que pus no lixo o copo ele me pediu mais:

-Pode me dar mais um pouco? Por favor?

Eu não tinha conhecimento do seu quadro patológico, nem com respeito a quanto de água ele podia ou não beber; por isso não lhe neguei, e lhe ofereci mais três vezes água de acordo ele me pedia...achei que fosse normal sua voracidade, sua sede incontrolável....ele me contou, que havia vinte dias que não bebia água, e que fora justamente naquele dia que os médicos haviam liberado água à vontade para ele. Eu não entendia como alguém podia estar tão feliz apenas por poder beber água...não sabia por onde começar uma conversa, que assunto poderia lhe interessar.Não demorou mais que um minuto, depois que se recuperou da emoção de beber novamente água fresca, para que ele mesmo me perguntasse:

-Conhece o Roberto de onde?

Eu? Sim! Somos amigos, faz algum tempo, estudamos juntos, e hoje por uma feliz coincidência nos encontramos aqui, e ele me falou de você, então quis vir te conhecer.Como foi que você veio a ficar assim? Como começou sua doença?

-É uma longa história, eu já estou doente faz tempo. Não sei se vou conseguir escapar, dessa vez, nessa última operação eu quase morri, a cirurgia demorou quatorze horas, e eu não sei como pude resistir. Tiraram-me tudo...

-Tudo o que exatamente? Desculpe-me, não precisa falar se não quiser.

-Não! Tudo bem! Não me importo! Não tenho reserva para falar sobre minha doença; pelo contrário eu gosto muito quando encontro alguém disposto para me ouvir.

-Então fique à vontade!

-Eu estou doente, não só fisicamente, além das dores físicas: sinto algo mais devastador n'alma. O meu estado é irreversível, não há esperança, sei que não suportarei esta última intervenção cirúrgica.

-Por que diz isso?

-Não sou ignorante amigo! Sei que não posso vencer esta batalha, antes mesmo de me submeter às cirurgias eu sabia que não tinha esperança no meu caso.O câncer que me acometeu, foi fulminante, e o médico que procurei no início, não teve perspicácia para cuidar de mim de modo correto, me iludiu por anos, dizendo que eu estava sendo curado através do tratamento de radioterapia.

-Mas como isso é possível?

O Chagas mesmo cansado não queria parar de conversa, sentia que talvez não tivesse mesmo muito tempo.Era um homem de eloquência acima da média.Respirava com a ajuda de oxigênio mesmo assim conseguia articular sem interrupção. Mesmo que eu me preocupasse, ele, não interrompia seu discurso, queria de fato deixar-me a par de tudo a seu respeito, principalmente da sua doença.

-Eu confiava plenamente nesse médico, que não me custou nada barato; todavia, depois de muito tempo, quase quatro anos é que fui alertado por um amigo: esse médico estava apenas interessado em ganhar o meu dinheiro.

-Mas, Chagas, não há mesmo chances de você se recuperar? Você não devia agir assim! Na acho que esteja certo, enquanto há vida, há, ou deve haver esperança!

-Não há mesmo! Na primeira operação eu até achei que poderia me curar, porém, depois que tive esta recaída, e que fui submetido à outra grande cirurgia; não me iludo, meu tempo é muito curto, não chegou até o fim do mês que vem. Os médicos não me falam a verdade, mas eu sei porque eles não me costuraram.Veja como está minha barriga!

Levantou o lençol que encobria parte do seu corpo nu, e me mostrou sua lesão cirúrgica.Era uma incisão de mais de trinta centímetros. Começava abaixo da virilha e terminava no início do estômago. Apenas fechada por esparadrapos, que eram trocados todos os dias para não infeccionar.Em sua barriga havia vários drenos para que ele pudesse fazer as suas necessidades fisiológicas.

-Não sente dores? Como consegue dormir com tantos tubos?

-Não durmo mais de quinze minutos, e à noite sonho. Sonho não tenho pesadelos horríveis, vejo alguém vindo me buscar; deve ser a morte, que as pessoas dizem que fica ao pé de quem está moribundo.

-Não existe isso Chagas!Não acredito nessas coisas, são distúrbios emocionais que afligem quem está acamado por muito tempo.A mente humana viaja nesses mares sombrios, quando se sente acuada, perturbada por enfermidade como a sua; não é fácil superar esse estigma, que massacrou a humanidade desde o tempo da ignorância. Antes não havia mesmo curar para essa doença, hoje é diferente. Muitas pessoas realmente foram curadas, e você também pode se curar acredite! Depois não esqueça, a mente pode ser de grande ajuda se for usada de modo positivo.

-Não amigo você não sabe como eu me sinto, não é fácil todos os dias ouvir pessoas bem intencionadas como me dizerem o mesmo que acaba de me dizer; e logo em seguida me sinto pior, pois sei que estou definhando todo dia um pouco mais, não tenho melhora. Não é que eu não queira viver, eu quero muito vê meus filhos, crescerem.

-Quantos filhos têm?

-Tenho dois.Um casal, uma mina com dezessete, e o menino com dezoito.Pode me dar mais um pouco de água?

-Sim! Claro, tenha calma não deve se emocionar desse jeito, eu vou chamar sua esposa.

-Não! Não, fique mais, eu ainda não terminei, quero lhe contar, outra coisa.

-Tudo bem! Eu ficou! Mas não se agite, tenha calma que eu espero você se recompor, descanse um pouco!

A sua aflição era visível, queria me confidenciar algo que eu não podia supor; que fosse algo tão íntimo, e revelador de sua personalidade.Então logo que voltou a respirar com mais serenidade, me surpreendeu: não era comum sua atitude para com um desconhecido. Disse-me:

-Como é seu nome generoso amigo? Posso te chamar de amigo?

-Claro que sim!

-Então posso confiar a você algo?

-Sim! Pode! Se quiser, é claro!

-Eu te chamarei de amigo. Não quero saber teu nome, para que você não se sinta responsável pelo que vou te contar.

Falava-me isso, como se visse em mim de fato, um amigo, alguém em quem pudesse confiar de olhos fechados.

Disse-me:

-Eu, amigo, estou nas últimas horas do meu existir nesse planeta, e não fui feliz completamente; acho que não preciso me esforçar para te dizer isso, a minha situação física comprova o que te digo. Entretanto tive alguns dias de felicidade "plena" quando tinha boa saúde achava que podia tudo, abusei do meu corpo, fui ao extremo da minha liberdade, agi como um louco, não tive a responsabilidade que devia ter diante da minha obrigação para com a vida que recebi de Deus. Hoje o que mais me atormenta, não e a doença em si: é sim a dor da consciência, que me acusa diariamente pelo que não fiz para proteger meus filhos, agora me vejo nesta condição de inutilidade, e com um agravante: estou dando muito trabalho para os meus entes queridos. A minha esposa mesmo, já demonstram sinais de cansaço como você mesmo pôde ver. Doe-me saber que fui eu mesmo que me trouxe até aqui; bebi de mais, usei drogas, e principalmente o maldito cigarro, é que foi o responsável maior por meu estado de doença terminal.Quero dizer-te tudo isso que não tive força moral para admitir para minha esposa, e nem para um dos meus parentes próximo. E guardar esta confissão para mim mesmo, tem sido a dor maior dos meus últimos dias. Minha vem vindo...

Espero que você não se incomode de me fazer um favor: quando vier aqui outro dia, quando te contarei o resto da minha história, traga-me um bom livro para eu ler. O Roberto havia falado-me de um amigo escritor, nunca imaginei que fosse te conhecer. disse-me ele que escreve muito bem, que tal um dos seus livros?

-Trago sim! Não se preocupe!

Logo em seguida chegou a esposa, e eu tive que ir embora. Acabara a hora da visita, me despedi do Francisco prometendo volta na próxima semana.



Durante a semana seguinte recebi um telefonema do meu amigo Roberto me convidando para o sepultamento de meu novo, e eterno amigo.F. das Chagas...

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