A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O garçom Loiola

(Evan do Carmo)

Loiola um garçom, um jovem pai de família exemplar, mais uma vítima do sistema cruel, da desigualdade social, do aleijo de uma sociedade hipócrita. Loiola, que como todo cidadão de bem, uma vez habitando na periferia; para sustentar sua família precisa se deslocar para o centro das grandes cidades, onde conseguem com mais facilidade um sub emprego, para garantir sua sob existência. Loiola era empregado de um restaurante de Brasília.Todos os dias saía de casa muito cedo e voltava muito tarde; sem contar com as viradas de noites nos fins de semanas para engordar o seu magro provento de garçom. O bar em questão também funciona como casa noturna, com música ao vivo. Loiola nunca faltava em seu serviço, era para ele como um dever sagrado. O patrão do Loiola, dizia aos quatro ventos que ele era o único digno de total confiança, depois do seu gerente, o Ricardo.Loiola por causa de sua conduta exemplar havia conseguido do patrão algumas regalias, além da confiança. O generoso patrão lhe dava algumas sobras de comida, às vezes lhe emprestava o carro, para que ele resolvesse os problemas burocráticos da empresa; enfim, tinham-no em alta estima, como um "amigo", dizia às vezes. O Loiola sempre estava disponível para cobrir as faltas dos outros garçons, e muitas vezes do próprio Ricardo; quando o mesmo tirava alguns dias de férias. Só o pobre Loiola não tirava os seus dias de descanso justo, porém isso não lhe incomodava.

Certa vez houve um desacordo entre o Ricardo e seu bom patrão, o Sr Orlando, e por conta desse episódio o Ricardo se afastou do emprego por alguns meses. Foi durante este período que o Loiola assumiu de fato, seu posto de gerente interino, ou como o bom quebra galho, como dizia o patrão generoso.Foram longos os dias em que viveu com a responsabilidade de ser chefe de todos os seus colegas de profissão. Fazia as compras, resolvia todos os problemas, de ordem financeira, até de contratação de pessoal, tudo ficou aos poucos sobre seu olhar zeloso. O patrão, por confiar plenamente em seu novo gerente, foi deixando-o só, não cumpria mais a escala que havia proposto, onde se revezaria, principalmente durante as noites nos finais de semanas.O bom Loiola nunca reclamou, da sutil exploração. Acreditava o Orlando que, a qualquer momento voltaria o Ricardo, por isso não contrataria outra pessoa para por em seu lugar vitalício, enquanto não voltasse o Ricardo, ele daria conta muito bem do recado.Depois de seis breves meses, para o Ricardo; o necessário para que ele esfriasse a cabeça, resolve voltar, é claro que foi bem recebido por todos, porém, o Loiola ao contrário do que se esperava dele, ficou muito mais feliz que os outros, sua atitude foi de fato imprevista, pois, segundo os seus colegas, ele não devia deixar de ser gerente, ainda mais que estava ganhando salário referente ao cargo. Devia mandar o patrão escolher entre os dois. Não! O Loiola fica realmente feliz pela volta do amigo gerente, era fiel, e agradecido por ter com ele aprendido tudo que sabia, em vez de ficar desolado se ajoelha aos pés do amigo e lhe agradece por ter voltado, já o patrão, apesar das muitas petições que fizera a Deus, para que o Ricardo voltasse, não revela sua enorme satisfação. O Loiola, diz para o amigo como sentiu sua falta, como teve que se virar em dois para assumir seu posto, para dar conta da sua enorme responsabilidade.

No ínterim, enquanto ocorre a transição, durante os dias em que o Ricardo fica à par das novidades administrativas; o Patrão chama o Loiola para uma conversa imprevista:

-Loiola meu bom amigo, você se saiu muito bem durante este tempo em que ficou no lugar do Ricardo, eu pude observar sua competência, e o quanto você agiu de acordo com a minha vontade, você fez de fato, a diferença; eu não sei como seria se não fosse sua atitude responsável e generosa, assumindo certas atribuições que não eram da sua "competência", por isso, quero lhe oferecer uma promoção. Você será o meu subgerente, e continuará ganhando o mesmo que ganhava enquanto o Ricardo estava fora.

-Não seu Orlando. Eu realmente agradeço, e fico contente de que o Senhor tenha observado a minha dedicação, todavia, não quero continuar como antes, eu quero ter minha vidinha de outrora, ter hora de chegar em casa. O senhor sabe como sou caseiro, amo meus filhos e minha esposa, não quero ficar mais tanto tempo longe deles. Não me leve a mal, eu to muito feliz, em poder ter dado a minha contribuição na hora em que o senhor precisou.

-Então, só me resta lhe agradecer, e dizer que se mudar de opinião, a proposta está de pé.

-Obrigado seu orlando, voltarei a ser novamente, apenas um bom garçom, mas, isso não me impede de lhe servir em qualquer assunto que casualmente venha precisar.

Terminando o diálogo breve, o Loiola continua na sua função de humilde garçom, porém, com a mesma nobreza de um gerente. Estava livre o Loiola de tão pesada responsabilidade.

A vida continuou sempre normal, como antes, ele no seu digno posto de garçom, e sua esposa em casa, dava também um excelente exemplo de honra como ajudadora leal, não fazia muita questão sobre o assunto, da falta de ambição do seu marido, respeitava sua decisão.

O casal tinha um casal de filhos, a alegria do lar, toda riqueza que possuíam; onde viviam felizes em um modo simples, porém sereno de vida.Não estavam acostumados a novidades, e o tempo que tinha de folga tiravam para dedicar integralmente aos filhos.Embora vivessem em uma condição sub humana, em um lugar sem as menores condições de dignidade social, eram de fato, satisfeitos com o seu quinhão de vida.

O Loiola morava com a família no entorno de Brasília, em Valparaízo, cidade de Goiás, na verdade em um setor de chácaras, e que de paraíso só tinha o nome.Como todas as cidades circunvizinhas, em volta do distrito federal, representa um quadro horrendo, um retrato perfeito do descaso, e da hipocrisia política dos habitantes ilustres de Brasília.E enquanto levantam o estandarte de ouro, anunciando para o mundo, Brasília como a cidade com melhor qualidade de vida do país, em baixo de suas mesas fartas, falta pão e água limpa na mesa de muitas crianças filhas de um povo explorado pelo sistema que eles têm orgulho de apresentar para o mundo como modelo. Povo que são usados como massa de manobra, que só tem algum valor durante as eleições, pois, são de fato, eles que fazem a diferença na apuração final; com a corrupção eleitoral quando são trazidos como bois para outro curral, que mais convém para seus donos generosos, para comer sal nas mãos dos seus capatazes.

É sabido por todos, que durante as políticas locais existe um troca-troca de zona eleitoral, uma eterna mudança de interesses e de endereços, sobre os olhos da lei, da cega justiça eleitoral.Este descaso, essa insensibilidade tem produzido uma sequela que não terá nunca solução.Vegetam em volta de um oásis, os excluídos sociais, pessoas que não têm a mínima dignidade, segurança, educação, lazer, e, sobretudo, vivem assustados com a violência crassa que massacra as pessoas de bem. É nessas cidades onde se esconde toda sorte de malfeitor, marginais, assassinos perigosos, que a justiça prende e solta sem a menor preocupação com a liberdade dos cidadãos cumpridores da lei, que são a grande maioria. Esquecem os donos do poder, que é este povo quem produz, quem limpa suas ruas sujas de corrupção, ou como o Loiola, servem em suas mesas pratos bem azeitados, e vinhos raros, para seus deleites diários.

A Elizabeth a esposa do Loiola, trabalhava em parceria com ele para ajudar nas despesas da casa. Nas horas vagas de suas obrigações domésticas durantes as tardes sobre um calor abrasador, e debaixo de muita poeira vermelha, ela visitava suas clientes no lombo de uma desconfortável bicicleta acabada que comprara à prestação.Muitas vezes brincava com o marido, dizendo que em poucas horas ganhava até mais que ele, durante dias e noites inteiras. A vida pacata daquela feliz família estava com as horas contadas: um dia quente de verão era dezembro, a Elizabete muito cansada, depois de pedalar alguns quilômetros, e totalmente sem fôlego, de subir e descer ladeira, já perto de sua casa, onde deixara os filhos trancados, voltava aflita por ter demorado além do normal, havia feito um pouco mais do que estava acostumada, atendera duas clientes, que não estava planejado.

Antes de chegar na sua rua de fato, atravessava um caminho sombrio, uma vereda, comum nas encosta das cidades, onde seus moradores fazem desvios para encurtar caminho. O sol pendia no horizonte, quando seu corpo é sacudido sobre a terra vermelha, sobre o pó da covardia de um assaltante cruel, que pela força do braço lhe impele a golpe fatal o descanso no chão da inutilidade. Com a face sobre o solo quente e já sentindo o efeito do golpe covarde, tonta fica imóvel, não reage, e vê com os olhos entreabertos, para não despertar vingança; o marginal tirar todos os seus pertences, tomar seu pobre dinheirinho, também seus tênis, e depois ir embora sem olhar para traz.

Depois do susto que sofrera, e da expectativa funesta de ser também estuprada, ou mesmo assassinada, levanta-se a jovem senhora e caminha em passos largos para seu porto seguro, para seu lar, onde lhe esperava um drama futuro: como iria justificar o rosto inchado, os olhos vermelhos de chorar lágrimas de sangue, tamanha fora a humilhação vivida. Sabia da personalidade forte do marido, que embora calmo não reagiria de modo covarde, não seria fácil convencê-lo de nada fazer para vingar sua honra imaculada. Acreditaria mesmo que ela não sofrera molesta sexual? E como seria sua vida a partir do dia em que contasse uma mentira para seu fiel esposo? Haviam feito um pacto de lealdade sobre qualquer situação. Toda dúvida seria, contar ou não contar, seria justo o seu sofrer só? Ou seria injusto destruir a paz do esposo leal?

À noite, lá pelas ultimas horas da madrugada, chega o Loiola em seu sagrado lar. Não incomoda sua linda esposa que dorme como um anjo, junto com os anjos filhos. Loiola não imagina a dor que tem no coração da companheira, e deita ao seu lado, e dorme o sono pesado de quem cumpriu sua obrigação de mais um dia de trabalho árduo.De manhã a Beth levanta mais aflita, mais perto está a hora difícil da sua decisão, que mudaria a vida de toda família.Faz o café, já são dez horas de um dia inesquecível.O que mais machuca a sua honra é o fato dela saber, conhecer de perto o maldito marginal, um monstro da vizinhança, carreava sobre suas costas vários crimes, um fugitivo da justiça, que distribuía sua fama de ser violento até com pessoas indefesas. Um ladrão acima de tudo, covarde. Há relatos no mundo do crime, de que a filosofia dos"bons"fora da lei é, não molestar seus vizinhos; pelo contrário, há relatos emocionantes de pessoas que foram protegidas...

Às onze da manhã acorda o Loiola, faminto, sentindo o cheiro de café caseiro que tanto elogiava para os amigos, dizia que ninguém fazia um café como a sua amável Beth. Na cozinha sua esposa espera o desfecho da sua atitude, iria mesmo ter que contar tudo para seu marido, amigo de todas as horas:

-Bom dia meu amor! Estou morrendo de fome! - diz o marido de modo meigo:

-Que foi meu bem por que está chorando?

-Nada.- diz a mulher enxugando as lágrimas.

-Como nada, você não chora por nada. Vamos me conte o que houve, por favor!

-Não foi nada, é que hoje faz um ano que minha mãe faleceu; e eu ao fazer o café que ela me ensinou, veio a nostalgia, não aguentei a saudade.

-Assim!-Diz o marido abraçando a sensível esposa, que chorava por uma dor bem mais dolorida que a falta da mãe, que já não doía tanto.

-É verdade, hoje são vinte de dezembro. Faz um ano que ela foi morta por aqueles bandidos que invadiram sua chácara para roubar uma meia dúzia de galinhas. Mas eles já receberam sua punição, fiquei sabendo que não tem mais nenhum deles vivo para contar a história. E quanto a ela sabemos que está em um bom lugar. Deus vinga sempre os inocentes.

-Acredita mesmo Loiola, que Deus pode nos vingar, defender, ou mesmo aliviar a dor sofrida, por algum mau que venhamos a sofrer?

-Claro, acredito. Você não?

Depois de falar isso, olha nos olhos da esposa que continuava chorando copiosamente. E diz:

-O que foi isso no seu rosto? Ta muito inchado, como fez isso? Ou quem te machucou, me diga! Por favor meu bem, quem fez isso com você?

-Não posso dizer meu amor, não insista, pelo amor dos seus filhos, eu não posso contar, pelo bem de nossa família...

Diz isso, abraçando-o fortemente, como que soubesse, o que iria acontecer, mesmo se não contasse. Em seguida sobre o alvoroço de crianças felizes se estanca o choro justo. Os filhos não percebem o drama que se desenrola, em um cenário agora sombrio, sobre as sombras da incerteza.Passam-se as horas, chega a hora de Loiola ir para o trabalho, sem mais nada saber a respeito das dores da esposa, que se fechara em copas, e que sozinha bebia o cálice amargo da humilhação, do mal que sofrera.

Loiola não esquecera um só segundo da expressão de desespero em que encontrou pela manhã a sua fiel esposa.Todavia, não descansaria enquanto não descobrisse o que de fato, ocorreu. Em sua cabeça passava toda sorte de pensamento; o mais funesto era o de imaginar que sua amada havia sido molestada sexualmente por um daqueles marginais de sua rua, das redondezas onde morava; por não ter os meios para viver em outro lugar menos inóspito. Durante a noite, ficou visível para seus colegas e até clientes que ele não estava presente ao corpo, tamanha era a perturbação mental que lhe afligia...

Os dias se passaram, alguns dias, e ele por motivo não revelado ao seu estado psíquico, nem a qualquer psicólogo de plantão; bloqueia, não faz mais perguntas para poupar a esposa ou a si próprio. Já a esposa, a adorável Elizabeth, talvez por inocência, ou por displicência, acredita que ele realmente esquecera do fato, e que apesar do ocorrido iriam viver em paz. É, mesmo para um leitor atento, talvez não seja muito fácil imaginar o final dessa história, o que acha você?

Então, depois de um mês do ato covarde, do abuso que sofrera a Beth, algo incomum aconteceu:

Em uma madrugada fria, depois de se deitar ao lado da esposa, depois de fazer os costumeiros carinhos, a moça adormece, e começa a delirar, ou a sonhar, talvez um pesadelo, ou lembranças do assalto: falar em alto e bom som quem fora seu algoz, diz o nome do bandido.Tratava-se de um vizinho, não muito próximo, mas, conhecido de todos os moradores.

De manhã sem nada saber do que revelara em sonho, ou em pesadelo, a moça acorda sorridente, e não ver nada de estranho nos olhos do marido, que planejava algo conscientemente, ou friamente.Depois do café sagrado em família; diz o pai de família exemplar:

-Hoje eu vou tirar o dia de folga, meu patrão me emprestou o carro para eu fazer alguns mandados: pagar umas contas, depois volto para casa, não vou trabalhar à noite!

Todos ficam felizes, teriam um dia inteiro juntos, poderiam até fazer um passeio de carro, coisa que as crianças amavam fazer.Depois de beijar a esposa e os filhos, sai o Loiola sem nada transparecer.De repente se ouve dois disparos, e em seguida, na rua um alvoroço ensurdecedor.Os vizinhos gritando: "mataram um homem no bar do Valdemar, chamem a policia! Chamem a policia"! Diziam algumas senhoras sem parar.

A Beth pensa: "que policia! Ela não vem aqui nem mesmo que matassem um pai de família, um homem de bem, quanto mais para se meter em assuntos de gangues, que vivem a se matar por nada".Todavia, por curiosidade, se aproxima do tumulto, e ao chegar mais perto, escuta alguém dizer: "foi o Loiola! Foi o Loiola! O Edmundo atirou, e matou o Loiola, que tentou lhe acertar com um facão; ninguém sabe o porquê"..

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br