A Garganta da Serpente
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A menina da vitrine

(Eliane Cândido)

A princípio não notei a menina na vitrine, mas aos poucos fui percebendo que sempre no mesmo horário, ao cair da tarde, lá pelas cinco ela para em frente á loja e observa as pessoas aqui dentro.
De aparência simples, olhar tímido e insistente, uma pasta branca do colégio e mais nada. Fiquei imaginando o que desperta a atenção dela, certamente algum produto da vitrine que ela deseja ter. Aparenta ter uns 15 anos, a idade dos sonhos de toda menina, do mundo a descobrir, das coisas novas do mundo feminino que ela poderá usar, do vestido ou do salto alto que experimenta sozinha em seu quarto, em seu mundo. O desejo de se transformar logo em mulher e ser como alguém que admira a mãe, uma irmã, uma amiga, uma atriz.

Não, ela não é como ás outras pessoas que param para observar a vitrine, ela não olha para as lingeries sedutoras e coloridas que enfeitiçam todas as mulheres, nem para as joias, os vestidos brilhantes, o tênis da moda, ela olha para dentro da loja, sempre na mesma direção, por um momento achei que ela estava olhando para mim. Mas me chamaram e quando voltei, ela já não estava mais.

Numa tarde em que ela voltou a olhar a vitrine meu amigo Luiz também notou a presença da menina e comentou comigo:
-Essa menina vem todos os dias aqui vocês notaram?
Fica parada ali olhando pra cá.

-Você a conhece de algum lugar? Pergunto.

-Não. Ela deve estar vendo algum produto que gosta.

-Ela parece querer mais que isso, é estranho, ela fica parada olhando em nossa direção, mas não sorri, não entra na loja, só olha, parece querer dizer algo. Falo mais para mim mesma do que para Luiz.

Não consigo tirar aquele rosto triste do meu pensamento, minha intuição me diz que não é normal ver aquela menina todos os dias as cinco com aquele olhar perdido. Já pensei em ir até lá, conversar com ela, perguntar seu nome, se ela procura alguém, se precisa de ajuda, sem me conhece de algum lugar. O jeito como ela me olha me faz sentir que talvez a conheça de algum lugar, mas de onde?

Os meses foram passando e numa tarde muito fria de inverno, a chuva fina cobrindo a cidade. Quando chove os carros invadem as ruas, as pessoas em frente á loja com seus capotes pretos e ombros encolhidos procuram refúgio e andam apressadas.
Isso me leva a pensar que adoro a chuva ao contrário da maioria das pessoas, vejo uma beleza melancólica na chuva que cai, na loja o som baixinho de um piano me faz sentir saudade de um amor que nunca vivi, sonho com um grande amor futuro, desses dos clássicos de cinema como Casablanca, Romeu e Julieta, personagens de livros que guardo na memória.

De repente ouço o som abafado de uma batida de carro, estilhaços de vidro pelo chão, gritos de socorro e depois o indesejável grito do silêncio.
É assim que conheço a morte, chega silenciosa ou faz uma tempestade deixando depois tudo vazio. Oco e uma solidão infinita, a certeza de que por mais que busquemos ter alguém ao nosso lado no final sempre seremos sós.

Em frente á loja as pessoas de aglomeram ao lado dos carros que colidiram, algumas mulheres tapam seus rostos com as mãos, horrorizadas.

No chão ao lado de um dos carros uma pasta branca de colégio e o corpo já sem vida da menina. Olho para a pasta entreaberta e vejo um envelope de carta com desenhos de borboleta e corações e quase sem acreditar meu vejo meu nome escrito em letras miudinhas.
Aproximo-me da pasta e pego sem que ninguém veja o envelope, algo me faz acreditar que a menina queria me dizer alguma coisa.

Os bombeiros chegam e a levam dali, as pessoas nas ruas não se mexem ainda em choque. Falam baixinho entre si consternadas.
Corro para dentro da loja, meus colegas na porta da loja comentam o que aconteceu. Vou para uma sala no segundo andar e fecho a porta.
No som da loja ainda ouve-se o piano de Erik Satie triste e belo.

Na sala numa mesinha perto da janela o envelope ainda molhado parece ter sido escrito há algum tempo.
Abro o envelope e noto a data em que foi escrito, em Janeiro, oito meses se passaram desde que foi escrito.
Em letrinhas miúdas, as palavras foram formando uma confissão que eu não esperava.

A carta era para mim, uma declaração de amor, falava dos dias em que a loja fechava e ela não podia me ver, do medo, a dúvida do que estava sentindo, a incerteza e depois a confirmação.
Viu-me a primeira vez quando eu estava voltando para a loja, havia saído para ir ao banco do outro lado da rua. Toda molhada, os cabelos escorriam pelo rosto e tremia de frio, mesmo assim a cumprimentei quando passei, sorri. Ela estava voltando da escola e depois daquele dia parava ali e apenas me olhava, mas foi crescendo um sentimento de admiração que ela não sabia identificar. Dizia para sim mesma que estava errada, que não entendia o que sentia, não era possível, mas a cada dia foi sentido algo mais forte.

Conta que apenas algumas vezes eu notara sua presença outras vezes nem sequer percebi as lágrimas em seus olhos interrogadores procurando os meus.



Precisava falar comigo, mas não teve coragem. Escreveu e guardou a carta na pasta em meio aos cadernos esperando um dia ter coragem de entregá-la.

Fechei o envelope com todo cuidado. E pensei como eu ainda preciso aprender sobre o amor, sobre os sentimentos e como pude despertar um sofrimento de amor naquela menina.
Que segredos têm o amor, que nos faz sofrer quando amamos, e sofrermos mais ainda quando não amamos ninguém?

A tarde cai, a chuva fina continua pintando de cinza e de melancolia tudo ao meu redor.

No relógio da catedral o sino bate cinco horas.

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