Agora, em silêncio, ouço do velho índio que me habita mais um conto sobre a origem do homem; sobre como o amor pôde, no início dos tempos, salvar-nos da raiva, da dor e da fome ...
As tribos Kaingangue e Xokleng um dia foram uma só e grande nação.
Porém, havia mais de mil luas que, por causa do egoísmo semeado
pelos abaçaís ,
guerreavam sem tréguas. Cada uma ocupava uma das margens do Rio Amapari.
Um dia os deuses, decepcionados pela intolerância de seus filhos para
com eles mesmos, viraram as costas para as duas tribos e, por isso, não
aceitavam mais nem os seus presentes, nem as suas danças de súplica
para afastarem deles os castigos. Negavam sistematicamente aos índios
o milho, as raízes e a caça. Os homens enfraqueciam e as mulheres
e crianças perdiam o viço da pele e a alegria de viver. Alguns
se despediam daquela morte em vida pendurando-se pelo pescoço nos galhos
das castanheiras, ou se lançando contra as pedras dos fundos das ravinas.
Akire Imuyam, a guerreira intocada da tribo Xokleng, se recuperava da infestação
que sofrera como parte da maldição que pairava sobre sua gente
e agora era mais cuidadosa ao lidar com o seu prazeroso e permitido brinquedo,
aquele que substituía os homens, proibidos a ela por seu pai, o cacique
Yacamim, como promessa aos deuses para amenizar os seus corações
sagrados e fazê-los devolver a fartura e a felicidade ao seu povo.
O prazer que o falo de barro proporcionava à jovem guerreira fazia-a
esquecer, por alguns momentos, da angústia que se abatera sobre sua gente.
Ela afogava no gozo mecânico e quase seco, necessariamente lubrificado
por um pouco da própria saliva, as ameaças da morte iminente dela
e de todos a quem amava.
Uma tarde, quando o crepúsculo vespertino engolia a floresta, Akire Imuyam
se divertia com o objeto redentor, deitada sobre folhas de bananeira, na borda
de um igarapé. Yawara, um valente da tribo Kaingangue, com o auxílio
de uma peconha , subiu numa jovem
sequoia para um breve reconhecimento da outra margem e para planejar
uma eventual incursão no território inimigo e capturar, se houvesse,
comida para a sua tribo.
Ele viu o mato mexer à beira do igarapé e alegrou-se com a esperança
de que fosse uma queixada, uma paca ou uma capivara que estivesse pastando por
ali. Esperou com paciência até se certificar de que não
se tratava de um inimigo camuflado, de tocaia para matá-lo. Os tremores
das folhas continuaram, mas delas não saiu ninguém. Yawara desceu
rápida e silenciosamente de seu posto, cruzou o arco no corpo, mordeu
as flechas e nadou em silêncio até a outra margem. Aproximou-se
com cuidado e contra o vento, de modo que a caça, ou o possível
inimigo não o notassem, nem pelo som, nem pelo cheiro. Ao chegar bem
perto, viu Akire Imuyam com a lança de barro nas entranhas, enquanto
movimentava os quadris com entusiasmo.
Com os olhos semicerrados de um quase-gozo, Akire Imuyam percorreu a silhueta
do corpo forte de Yawara. Não se assustou. Delineou-o com o olhar de
desejo e deteve-se em sua borduna, já preparada para substituir com mais
propriedade o mastro de argila, que agora para ela parecia áspero, incômodo
e repugnante. Yawara entendeu o sorriso convidativo de Akire Imuyam e penetrou-a
com urgência com sua lança viva. Caiu sobre ela como a onça
cai sobre o veado-mateiro. Segurou-a pelos pulsos, de modo que ela não
pudesse feri-lo e fazê-lo de caça, como faz a viúva-negra
com o macho, após o coito.
Akire Imuyam deixou-se possuir com volúpia. Estava farta daquele falo
de argila morto e frio. Queria um corpo de homem, viril, quente e pulsante dentro
de si. A sua fenda agradeceu com bálsamos abundantes, que enlouqueceram
Yawara, sobretudo quando sentiu Akire Imuyam perder o fôlego e estremecer
com tamanha intensidade. Ele convulsionou dentro e sobre ela, deixando o mais
fundo que pôde o seu humor leitoso e cheio de vida. Entreolharam-se felizes,
mas ainda insatisfeitos. Yawara deu-lhe um beijo índio, deixou por alguns
instantes a sua testa junto à de Akire Imuyam, enquanto recuperava as
forças. Antes de ir embora, ele partiu uma de suas flechas e lançou
os pedaços no rio que dividia as tribos. Olhou no fundo dos olhos de
Akire Imuyam e voltou apressado para a margem que a tradição dos
velhos dizia ser a sua, assustado pela estranheza do que sentira pela guerreira
inimiga. Ao chegar à margem certa, teve a sensação de que
deixara do outro lado mais do que uma flecha partida, suas sementes líquidas
e uma fêmea saciada.
Não se sabe se Yawara e Akire Imuyam voltaram a se encontrar outras vezes,
mas o que é tão certo quanto a morte é que a guerreira
estava prenhe de vida e, antes que a terceira lua retornasse, Akire Imuyam sentiu
os desconfortos que vieram avisá-la da aflitiva novidade. Ela ficou muito
assustada. Sabia que se não tomasse a puçanga para expulsar a criança, pariria um filho do inimigo. A pena
para quem deitasse com um rival e parisse um filho seu era enterrar a criança
viva num grande formigueiro e, para aumentar o pavor de Akire Imuyam, a própria
mãe do rebento teria de fazê-lo. Ela pensou em fugir da aldeia
com seu curumim, mas para onde iria naquele estado, sobretudo numa floresta
em que não havia o que comer? Além do que, se fugisse, sua covardia
desonraria mais ainda os seus pais e a sua tribo perante os deuses que, sem
dúvida lhes aumentariam as desgraças. Sua barriga crescia e todos
logo souberam que o pai da criança era da tribo que ficava na margem
errada.
Akire Imuyam foi desprezada naqueles meses de angústia e só não
pereceu porque, enquanto todos dormiam, ela recebia a visita de Rudá
, que cuidava dela e levava todas as noites uma cabaça
com o suficiente para ela alimentar a si e à vida que habitava o seu
ventre.
Numa noite em que uma tempestade ameaçava lavar o resto de vida que habitava
a floresta, a guerreira sentiu as primeiras dores e horas depois despejava a
criança sob um "rabo de jacu" e sobre
folhas de bananeiras iguais àquelas onde havia se entregado ao homem
que a fecundara. Ela preparara tudo sozinha, ao perceber que o momento da parição
se aproximava - não era permitido parir filho de inimigo dentro da taba.
No dia seguinte de manhã, enquanto Akire Imuyam amamentava a criança
e descansava, vieram o pajé Uaná e o cacique Yacamim, para acompanharem-nas
até o Formigueiro da Clemência e testemunharem a limpeza necessária.
Nem as lágrimas torrenciais de Akire Imuyam podiam demovê-los de
cumprirem a lei sagrada, sob pena de cair uma maldição infinitamente
maior sobre toda a sua nação. Rudá, por que me alimentou?
Por que não me deixou morrer à míngua, para que eu não
tivesse de beber o amargoso martírio desta hora? Perguntava Akire Imuyam,
baixinho, em prantos que lhe esmagavam o peito e trituravam-lhe a alma, tão
vulnerável e à mercê da impiedade quanto a criança
prestes a ser devorada. Rudá não se manifestou, porque não
era espírito baixo, era deus nobre e sábio demais para isso.
Ao chegarem ao grande formigueiro, o farrapo do que outrora fora vigorosa guerreira
ergueu a criança, exibindo-a ao pajé e ao chefe, antes de entregá-la
à voracidade das formigas de fogo. Nesse momento a menina sorridente
urinou e onde caíram as gotas, imediatamente nasceu um pé de mandioca
e uma grande queixada veio apressada comê-lo. Assustados, os três
deram alguns passos para trás. A menina, que agora gargalhava, como se
brincasse com um deus invisível, defecou e onde as suas fezes tocaram
a terra, nasceu um pé de milho com quatro enormes espigas. Boquiabertos,
os homens novamente usaram de suas autoridades, mas agora, para condenarem a
criança e toda a sua gente à vida. Tomaram a menina das mãos
enfraquecidas e trêmulas da mãe, no intuito de protegê-la
da pena-ritual por pouco não consumada.
Desde aquele dia a paz entre as tribos foi perpetuamente selada e a menina,
Aisó Ayra, passava duas luas em cada margem do rio: duas na antes certa
e duas na antes errada, embora nunca mais tivessem sido necessários os
seus excrementos para fecundarem a terra. Ela e a guerreira atravessavam o rio
numa piroga especialmente para elas construída pelos guerreiros mais
virtuosos e abençoada pelos pajés de ambas as tribos, em rituais
solenes e demorados, sempre reiterados e sucedidos por festas com comida farta,
de modo que a moça jamais fosse reclamada nem pelos deuses, nem pelo
rio.
Por fim, contou-me o velho índio que habita em mim, que a menarca de
Aisó Ayra chegou numa dessas travessias e que quando a primeira gota
de sangue bateu na água, o rio povoou-se de peixes.
O índio falou e repousa agora.
Quando acordar novamente,
Contará outra história.
(Elcio Domingues)