A Garganta da Serpente
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A Piroga Sagrada

(Elcio Domingues)

Agora, em silêncio, ouço do velho índio que me habita mais um conto sobre a origem do homem; sobre como o amor pôde, no início dos tempos, salvar-nos da raiva, da dor e da fome ...

As tribos Kaingangue e Xokleng um dia foram uma só e grande nação. Porém, havia mais de mil luas que, por causa do egoísmo semeado pelos abaçaís , guerreavam sem tréguas. Cada uma ocupava uma das margens do Rio Amapari. Um dia os deuses, decepcionados pela intolerância de seus filhos para com eles mesmos, viraram as costas para as duas tribos e, por isso, não aceitavam mais nem os seus presentes, nem as suas danças de súplica para afastarem deles os castigos. Negavam sistematicamente aos índios o milho, as raízes e a caça. Os homens enfraqueciam e as mulheres e crianças perdiam o viço da pele e a alegria de viver. Alguns se despediam daquela morte em vida pendurando-se pelo pescoço nos galhos das castanheiras, ou se lançando contra as pedras dos fundos das ravinas.

Akire Imuyam, a guerreira intocada da tribo Xokleng, se recuperava da infestação que sofrera como parte da maldição que pairava sobre sua gente e agora era mais cuidadosa ao lidar com o seu prazeroso e permitido brinquedo, aquele que substituía os homens, proibidos a ela por seu pai, o cacique Yacamim, como promessa aos deuses para amenizar os seus corações sagrados e fazê-los devolver a fartura e a felicidade ao seu povo.

O prazer que o falo de barro proporcionava à jovem guerreira fazia-a esquecer, por alguns momentos, da angústia que se abatera sobre sua gente. Ela afogava no gozo mecânico e quase seco, necessariamente lubrificado por um pouco da própria saliva, as ameaças da morte iminente dela e de todos a quem amava.

Uma tarde, quando o crepúsculo vespertino engolia a floresta, Akire Imuyam se divertia com o objeto redentor, deitada sobre folhas de bananeira, na borda de um igarapé. Yawara, um valente da tribo Kaingangue, com o auxílio de uma peconha , subiu numa jovem sequoia para um breve reconhecimento da outra margem e para planejar uma eventual incursão no território inimigo e capturar, se houvesse, comida para a sua tribo.

Ele viu o mato mexer à beira do igarapé e alegrou-se com a esperança de que fosse uma queixada, uma paca ou uma capivara que estivesse pastando por ali. Esperou com paciência até se certificar de que não se tratava de um inimigo camuflado, de tocaia para matá-lo. Os tremores das folhas continuaram, mas delas não saiu ninguém. Yawara desceu rápida e silenciosamente de seu posto, cruzou o arco no corpo, mordeu as flechas e nadou em silêncio até a outra margem. Aproximou-se com cuidado e contra o vento, de modo que a caça, ou o possível inimigo não o notassem, nem pelo som, nem pelo cheiro. Ao chegar bem perto, viu Akire Imuyam com a lança de barro nas entranhas, enquanto movimentava os quadris com entusiasmo.

Com os olhos semicerrados de um quase-gozo, Akire Imuyam percorreu a silhueta do corpo forte de Yawara. Não se assustou. Delineou-o com o olhar de desejo e deteve-se em sua borduna, já preparada para substituir com mais propriedade o mastro de argila, que agora para ela parecia áspero, incômodo e repugnante. Yawara entendeu o sorriso convidativo de Akire Imuyam e penetrou-a com urgência com sua lança viva. Caiu sobre ela como a onça cai sobre o veado-mateiro. Segurou-a pelos pulsos, de modo que ela não pudesse feri-lo e fazê-lo de caça, como faz a viúva-negra com o macho, após o coito.

Akire Imuyam deixou-se possuir com volúpia. Estava farta daquele falo de argila morto e frio. Queria um corpo de homem, viril, quente e pulsante dentro de si. A sua fenda agradeceu com bálsamos abundantes, que enlouqueceram Yawara, sobretudo quando sentiu Akire Imuyam perder o fôlego e estremecer com tamanha intensidade. Ele convulsionou dentro e sobre ela, deixando o mais fundo que pôde o seu humor leitoso e cheio de vida. Entreolharam-se felizes, mas ainda insatisfeitos. Yawara deu-lhe um beijo índio, deixou por alguns instantes a sua testa junto à de Akire Imuyam, enquanto recuperava as forças. Antes de ir embora, ele partiu uma de suas flechas e lançou os pedaços no rio que dividia as tribos. Olhou no fundo dos olhos de Akire Imuyam e voltou apressado para a margem que a tradição dos velhos dizia ser a sua, assustado pela estranheza do que sentira pela guerreira inimiga. Ao chegar à margem certa, teve a sensação de que deixara do outro lado mais do que uma flecha partida, suas sementes líquidas e uma fêmea saciada.

Não se sabe se Yawara e Akire Imuyam voltaram a se encontrar outras vezes, mas o que é tão certo quanto a morte é que a guerreira estava prenhe de vida e, antes que a terceira lua retornasse, Akire Imuyam sentiu os desconfortos que vieram avisá-la da aflitiva novidade. Ela ficou muito assustada. Sabia que se não tomasse a puçanga para expulsar a criança, pariria um filho do inimigo. A pena para quem deitasse com um rival e parisse um filho seu era enterrar a criança viva num grande formigueiro e, para aumentar o pavor de Akire Imuyam, a própria mãe do rebento teria de fazê-lo. Ela pensou em fugir da aldeia com seu curumim, mas para onde iria naquele estado, sobretudo numa floresta em que não havia o que comer? Além do que, se fugisse, sua covardia desonraria mais ainda os seus pais e a sua tribo perante os deuses que, sem dúvida lhes aumentariam as desgraças. Sua barriga crescia e todos logo souberam que o pai da criança era da tribo que ficava na margem errada.

Akire Imuyam foi desprezada naqueles meses de angústia e só não pereceu porque, enquanto todos dormiam, ela recebia a visita de Rudá , que cuidava dela e levava todas as noites uma cabaça com o suficiente para ela alimentar a si e à vida que habitava o seu ventre.

Numa noite em que uma tempestade ameaçava lavar o resto de vida que habitava a floresta, a guerreira sentiu as primeiras dores e horas depois despejava a criança sob um "rabo de jacu" e sobre folhas de bananeiras iguais àquelas onde havia se entregado ao homem que a fecundara. Ela preparara tudo sozinha, ao perceber que o momento da parição se aproximava - não era permitido parir filho de inimigo dentro da taba.

No dia seguinte de manhã, enquanto Akire Imuyam amamentava a criança e descansava, vieram o pajé Uaná e o cacique Yacamim, para acompanharem-nas até o Formigueiro da Clemência e testemunharem a limpeza necessária. Nem as lágrimas torrenciais de Akire Imuyam podiam demovê-los de cumprirem a lei sagrada, sob pena de cair uma maldição infinitamente maior sobre toda a sua nação. Rudá, por que me alimentou? Por que não me deixou morrer à míngua, para que eu não tivesse de beber o amargoso martírio desta hora? Perguntava Akire Imuyam, baixinho, em prantos que lhe esmagavam o peito e trituravam-lhe a alma, tão vulnerável e à mercê da impiedade quanto a criança prestes a ser devorada. Rudá não se manifestou, porque não era espírito baixo, era deus nobre e sábio demais para isso.

Ao chegarem ao grande formigueiro, o farrapo do que outrora fora vigorosa guerreira ergueu a criança, exibindo-a ao pajé e ao chefe, antes de entregá-la à voracidade das formigas de fogo. Nesse momento a menina sorridente urinou e onde caíram as gotas, imediatamente nasceu um pé de mandioca e uma grande queixada veio apressada comê-lo. Assustados, os três deram alguns passos para trás. A menina, que agora gargalhava, como se brincasse com um deus invisível, defecou e onde as suas fezes tocaram a terra, nasceu um pé de milho com quatro enormes espigas. Boquiabertos, os homens novamente usaram de suas autoridades, mas agora, para condenarem a criança e toda a sua gente à vida. Tomaram a menina das mãos enfraquecidas e trêmulas da mãe, no intuito de protegê-la da pena-ritual por pouco não consumada.

Desde aquele dia a paz entre as tribos foi perpetuamente selada e a menina, Aisó Ayra, passava duas luas em cada margem do rio: duas na antes certa e duas na antes errada, embora nunca mais tivessem sido necessários os seus excrementos para fecundarem a terra. Ela e a guerreira atravessavam o rio numa piroga especialmente para elas construída pelos guerreiros mais virtuosos e abençoada pelos pajés de ambas as tribos, em rituais solenes e demorados, sempre reiterados e sucedidos por festas com comida farta, de modo que a moça jamais fosse reclamada nem pelos deuses, nem pelo rio.

Por fim, contou-me o velho índio que habita em mim, que a menarca de Aisó Ayra chegou numa dessas travessias e que quando a primeira gota de sangue bateu na água, o rio povoou-se de peixes.

O índio falou e repousa agora.
Quando acordar novamente,
Contará outra história.

(Elcio Domingues)
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