A Garganta da Serpente
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Apartado

(Edgard Santos)

A luz solar, sendo fonte de toda a vida, não mede sua temperatura quando se derrama, dadivosa, para cumprir sua missão. A intensidade do calor que chega até nós, só é medida e dosada pelos obstáculos à livre propagação ou pelas proteções naturais que nos rodeiam e cumprem a lei do equilíbrio. Assim é, por exemplo, o mar. Ou então, fugimos do excesso quando nos abrigamos em nossa própria invenção; assim são as casas. Penso no deserto. O que pode haver de mais exposto a essa luz que, sem querer, se excede, sem pedir licença? Acredito que o Supremo, ao criar o sol, criou, logo em seguida, as areias do deserto. Assim, o astro rei teria onde se expandir, relaxar-se sem ser enjeitado.

Da mesma forma que o sol brinca no deserto, descansa sobre o mar os seus raios e viaja sobranceiro ao longo das milhas, das léguas e dos quilômetros de uma terra opaca em busca de luz, assim também são os seres privilegiados que já nasceram adaptados às distâncias solitárias que interligam caminhos de areia a outros caminhos de areia, caminhos de água a outros caminhos de água. Infelizmente, poderia dizer felizmente, o homem não faz parte desses seres porque esta não é a sua missão. Nasceu para dominar a terra e tudo que nela existe, mas faz pelo mental o que não é capaz de conseguir pela força física. Hibernar sobre o gelo, cobrir em marcha distâncias arenosas, com o mínimo de suprimento, transformado em reserva inexaurível, não são tarefas humanas. Fazer do sol mais causticante um viajante aliado, e das profundezas inatingíveis moradia perene, é privilégio de poucos, outras espécies, outros reinos. Mas, será que isto faz alguma diferença?

Houve no deserto um ser, humano pela constituição e pela origem, mas que contraria, senão tudo, grande parte do que acaba de ser aqui afirmado. O convívio com o meio transforma o ser, mas este também pode transformar o meio. Este homem (era um homem, preciso é reconhecer) pautou sua existência a mais estranha forma de relação homem meio ambiente que se pode supor imaginável. Tinha a força de um gigante nos braços, nas pernas e na aparência de um ser comum. Em velocidade, não podia competir com uma lebre, mas bem que, se o fizesse, seria um ferrenho oponente. Que não me perguntem onde ou como conseguiu tais poderes. A resposta seria tão incerta quanto a origem do ser. Querem uns acreditar que veio ainda menino para o meio do deserto, trazido por algumas dessas caravanas que caem nas mãos de salteadores. Ele conseguiu fugir no meio do assalto que quase sempre termina em tiroteio e muitas vezes em morte. Daí, viveu entre oásis e beduínos que o viram crescer. Mas, não se adaptando aos rigores dos seus criadores, mais que aos desafios da vida reclusa, aos treze anos abandonou-os para ampliar sua visão insatisfeita pelo horizonte único e inamovível que vinha até então de deslumbrar.

Assim cresceu e tornou-se adulto. Como pode alguém viver só? A solidão rouba o sonho do amor que é a doação. Apartado - era este o seu nome - encontrou sua alma gêmea. É bem verdade que os semelhantes se atraem. Apartado conheceu Malina e não sossegou até roubá-la. A tribo deu por falta de sua mais bela componente. E também a mais ousada em tempos de guerra e a mais dedicada em dias de paz. Mas no único combate onde o amor é comandante, sagrou-se vitorioso o coração de Apartado. E não adiantou represálias. Impossível desatar o elo da paixão que é invisível e já decidiu o destino, impossível trazer Malina de volta. Ela bem tentou, deu saudades de sua turma; fugiu dos braços de Apartado mas quando voltou não a queriam mais. Agora, só o amor era o seu dono e ele sabe esperar. Esperou até não mais deixar de sê-lo. Passaram a viver um para o outro, morando aqui e acolá, colhendo o máximo do mínimo que um deserto pode proporcionar. Eram nômades, mais por opção do que por necessidade. Gabavam dessa vida sem paradeiro. Queriam sentir-se livres e guiarem-se pela luz do sol ou pela luz das estrelas em vez de pela imprecisão de um relógio ou de uma bússola humanos. Entretanto, como havia oásis em sua rota, paravam aí e permaneciam por mais tempo. Numa dessas estadas, envolveram-se com outros humanos até que deram origem aos fatos que fizeram esta narrativa.

O deserto em questão é o de Nevada. Em uma de suas rotas, caravanas passam em disparada, transportando inúmeros passageiros e com eles muito, mas muito ouro, para ser gasto nos suntuosos e flamejantes cassinos que pululam em Las Vegas. Como se não bastasse, ainda outras carruagens rasgam os caminhos, levantando tufos de areia na ânsia de chegarem ao seu destino com a valiosa carga. O metal era em grande quantidade, suficiente para invejar o mais abastado sultão, além de notas tinindo de novas, joias de penhor e outras nababescas.

Aos vinte e quatro anos de idade, vivendo a liberdade plena a céu aberto e sobrevivendo de suas caçadas fenomenais, Apartado desconhecia o que era ter contato com gentes das grandes cidades civilizadas. Quando isso ocorreu, a forma traumática do acontecimento deixou em seu coração uma impressão deturpada dos valores que compõe o todo de nossa humanidade. A vida que teve anteriormente ao seu desaparecimento no deserto perdeu-se por completo nos escaninhos de sua memória estiolada. Dali em diante gastou o resto dos anos de sua infância e o intróito de sua adolescência na companhia de seres diferentes em quase tudo; do linguajar aos costumes, das tradições à vanguarda de vidas.

Tanto isso era verdade que, em um período de oito anos não lhe forneceram mais do que comida para que crescesse e armas para que não perecesse na luta contra inimigos comuns do seu ambiente natural: o deserto. Graças a esta incessante batalha, desenvolveu as qualidades que fizeram de si um modelo vivo e admirável de força, agilidade e elegância.

Apartado tornou-se resoluto no sentido de proteger os indefesos viajantes dos abomináveis ataques a partir do dia em que tornou-se vítima de brutal covardia. Invadiram, para saquear, uma de suas moradias de nômade, construída em uma de suas passagens por muitos pontos do deserto. Nada encontrando, fizeram de Malina vítima de suas crueldades. Violentaram-na moral e fisicamente, deixando-a arrasada. Ela teria escondido de seu herói a infeliz ocorrência mas as marcas não a deixaram. Também a dor e o choque frustraram o seu silêncio. Apartado, já forte de músculos, fez-se agora forte de decisão, o que é o mesmo que dizer desejo de vingança. A mulher ficou boa, mas ele piorava a cada dia; dor moral, revolta. Chegou por vezes a brigar com a teimosia de Malina.

- Não me diga que tudo passou; nada há como a dor da alma. - Não queria ser egoísta, mas também não queria ser um derrotado. A casa, que como as outras pelo caminho, servia-lhes de morada por umas semanas apenas, abrigou-os, desta feita, por um período não inferior a cinco meses. Mas, para Apartado e sua ira, até que valeram a pena os dias de grande apertura. Ele estava decidido a não abandonar o local até que fosse feita justiça; a sua justiça. Sacrificou-se além do habitual para conseguir a água e o alimento que já iam escasseando. A vingança foi cruel. Foram quatro os elementos responsáveis pela atrocidade com Malina; nenhum foi poupado. O mesmo tipo de morte sofrido pelos animais que tinham a má sorte de cruzar o ar ou a terra, pondo-se a frente das armas certeiras de Apartado, foi imposto a cada um deles. Nunca mais importunariam alguém. O mundo, ao menos aquele circunscrito pelas andanças de um simplório, com uma simples companhia, estaria agora liberto do mal representado por aqueles marginais.

A vida do casal transformou-se verdadeiramente a partir do dia em que Apartado integrou-se ao grupo de proteção aos caravanistas do deserto. Deixaram de ser andarilhos. Passaram a ter uma casa normal, como gente normal. As condições de moradia e o local iam melhorando na proporção em que se aperfeiçoava a experiência do grande defensor, como também a confiança que nele era depositada. Três foram as mudanças para melhor. Na terceira, viram-se fazendo parte de um povoado, não mais de gente decente que ia e vinha, tanto para as roletas de Las Vegas quanto a outros locais, uns distantes, outros nem tanto; locais de realização profissional a quem suportasse as constantes agruras do tempo e da temperatura.

Apartado e Malina tiveram um filho: Aganon. Agora, onde viviam, e com um fruto inocente a depender deles, podiam tranquilizar-se um pouco mais quanto ao futuro, uma vez que o trabalho remunerado tirava de suas cabeças o martírio da preocupação, fantasma imperdoável, corrosivo da alma sem fé e sem apoio. Quando as caravanas desfilavam uma a uma em frente à casa onde moravam, saindo da estação a passos dali, em direção aos pontos de apoio espalhados pelo deserto habitável, Malina, do patíbulo envidraçado e iluminado pelos primeiros albores das manhãs do inverno que marcaram os últimos meses da espera de Aganon, esperava a hora do seu aceno a Apartado. Ele vinha, garboso e feliz, de pé em um dos carros da frente, e mandava beijos a sua querida. Ela, com uma das mãos, dava adeus, enquanto a outra acariciava o próprio ventre volumoso. O feto ali dentro devia estar sorrindo, feliz da vida, pois teria um pai vitorioso e, mais que isso, alguém capaz de amá-lo e defendê-lo do mundo ou talvez não, porquanto o mundo já não seria o mesmo, transformado pela ação heróica desse pai especial à época do crescimento de Aganon.

Um dos cassinos em Las Vegas enviava para o deserto enorme contingente de caravanas. Esses jogadores podiam ser esperados a qualquer hora do dia ou da noite; a maioria homens afortunados que viam no jogo uma forma amena de extravasar suas angústias e idiossincrasias. Mesmo sabendo que o risco que corriam era grande, escolhiam esta forma perigosa de viver, como se para eles a morte fizesse parte do seu cabedal de apostas, ou o dinheiro, que não compra felicidade, fosse capaz de assegurar-lhes a paz verdadeira. Apartado tinha grandes amizades neste cassino. A principal delas era o próprio dono do estabelecimento que era também padrinho de Aganon. Sujeito rotundo, amigo verdadeiro dos seus iguais, adulava-os porque gostava de fazer o bem para recebê-lo em troca. Entenda-se aí o bem da adulação, da troca de interesses, porque para Porfírio, era esse o único tipo de boa ação que interessava. Contudo, o inesperado desejo de ofertar-se para padrinho do menino surpreendeu Apartado. Porfírio estava velho, possuía uma fortuna invejável. Parentes, tinha-os muito poucos, mas nenhum merecedor de seu legado fabuloso; coisas de família.

- Pretendo fazer de seu filho um cidadão invejável - dizia ele sempre a Apartado. Este fazia que sim com a cabeça, sorria para agradar o velho, mas na verdade não acreditava muito em suas palavras. "Quem sou eu para merecer tamanho galardão?", questionava a si mesmo.

- Muito respeitado tenho por suas atividades e reconheço nelas a razão principal da projeção que o senhor desfruta atualmente - falou uma vez Apartado ao amigo. - Mas só que - continuou - não quero este tipo de vida para o meu filho, tenho outros planos para ele. Jamais desejaria vê-lo envolvido com jogadores que poderiam pô-lo também no mau caminho. Em se tratando deste tipo de profissão, muito poucos possuem, como o senhor, a fibra de administrar um local para inveterados sem se tornar um deles, e acima de tudo fazer fortuna.

- Meu amigo - respondeu Porfírio, na sua calma habitual, entre baforadas do cachimbo inseparável -, eu é quem jamais aceitaria que um afilhado meu chegasse um dia a engrossar a fileira dos viciados em cassinos. Você conhece minha franqueza e sabe quando a uso, porque, melhor do que ninguém, tem na franqueza e na sinceridade um lema de vida correta em todos os sentidos. Não vou negar a você que também já fui um jogador incorrigível até ver-me no fundo do abismo. Não foram alguns dólares que perdi, mas inestimáveis quantias que jamais consegui recuperar. O que hoje possuo não chega a uma fração do que a vida ofertou-me um dia e não soube dar valor. Viver neste tipo de ambiente e ganhar dinheiro nele foi uma maneira de provar a mim mesmo que o mal do mundo está nas práticas viciosas que roubam da alma a verdadeira alegria da existência. Encaro isso aqui como uma profissão séria e de responsabilidade; jamais deixo-me envolver pela falsa aparência que é isso aqui.

- Como é que consegue isso?

- É muito simples. Administro cada minuto do meu tempo de dentro desta sala e usando apenas este aparelho telefônico. As pessoas de minha inteira confiança você já conhece. Não preciso de nada além disso para manter tudo em ordem. Minha esposa é a peça principal do meu negócio. Por natureza, detesta o jogo e isso deixa-me bastante tranquilo. Só vou mesmo ao salão principal no final de todo o movimento, quando já não há mais nenhum frequentador.

O tempo passou. As coisas foram se modernizando em todos os sentidos e, como não podia deixar de ser, a evolução veio também para as casas de jogos que refletiam o crescimento dos locais onde se situavam. Novos e mais ágeis meios de transportes deram lugar às caravanas; elas representavam agora a graça da sofisticação e do bom gosto de quem as utilizava. Faziam a diferença nas vias urbanas apinhadas de motores barulhentos e complicados. Quem quer que optasse por uma carruagem ou mesmo uma simples sege para a sua locomoção, era visto por uma forma de respeito e até admiração; porque destoava do lugar comum da época ao preferir preservar o limpo e o belo a confiar no desconhecido e no arriscado.

Tudo passou por uma inevitável descentralização. A população pululava em Las Vegas e, onde há pessoas, seus vícios e manias acompanham-nas. Cassinos havia agora em grande número. O de Porfírio - que já não mais vivia - ostentava o privilégio de ser um dos mais frequentados pela alta elite. E, como não podia deixar de ser, já que estava escrito, um dos seus proprietários era também um dos homens mais ricos e influentes de Las Vegas: Aganon. Porfírio cumprira a promessa, e cumprira ao jeito de Apartado. A fama de Aganon atravessava territórios. Se no tino para negócios igualou-se ao padrinho e superou-o, a personalidade, por outro lado, era diferente. Quando, em 1905, Las Vegas foi fundada oficialmente, Aganon era possuidor de sessenta por cento dos direitos da Union Pacific. Esta estrada de ferro tinha como atividade mais lucrativa o transporte dos endinheirados americanos que vinham da Califórnia para adquirir lotes em Las Vegas. Ainda garoto, com pouco mais de vinte anos, dirigia um departamento dentro da Union que o punha em contato direto com doleiros e dirigentes da principal bolsa de mercados de Nova York. Aos trinta, ainda solteiro, estava entre os vinte e oito maiores acionistas de sua empresa e aos trinta e seis tornava-se seu principal sócio.

Estamos em 1919. Nessa época, Reno era a maior cidade de jogos em Nevada. Após a segunda guerra mundial o grande movimento deslocar-se-ia para Las Vegas por estar mais próxima de Los Angeles. Já nesta época, cada lote no meio do deserto vendido a $1.500 por Aganon aos milionários que ele transportara gratuitamente em suas locomotivas, podia ser tranquilamente negociado por cifras nunca inferiores a $20.000. Seria o mais natural que aceitasse este fato sem ressentimento, visto que, aos cinquenta e um anos, com tanto dinheiro que até aos cem não conseguiria gastar, Aganon, vendendo saúde e um ar tranquilo que o colocava acima do seu tempo, o que mais desejava era uma vida sem aqueles problemas tão comuns ao seu passado. Mas problemas sempre existiram; Aganon sabia disso. Sabia que fazem parte de nossas vidas da mesma forma que o ar que respiramos e que sem eles nada somos.

Recentemente aposentado, fazia agora do seu tempo um amigo inseparável; fizeram as pazes. Este amigo que antes perseguia-o sem trégua, exigindo-lhe atenção exclusiva, agora era outro. Fez dele um milionário e largou-o para outra amizade: com a vida. A vida pertencia a Aganon. Com dinheiro, tempo em superávit e, ainda por cima, solteiro, o que faria ele agora?

Apartado ainda vivia. Eram os anos derradeiros de uma existência. Malina partiu em 1915, também feliz. Aganon tinha consciência que o pai não tardaria a deixá-lo também. Por isso, o mais das horas do seu dia, passava com ele. Distraía-o, trazia-o das divagações que sempre lhe assaltavam com conversas amenas, passeios de carruagem ao ar livre e algumas viagens bastante interessantes.

Estas não podiam ser constantes dado à saúde de Apartado, mas quando aconteciam eram um banho de alegria e de entusiasmo - até perigoso - para ele que nunca deixou Nevada. A vida de Aganon começou a mudar num desses passeios.

Ele conheceu alguém; uma mulher mexicana, uma enfermeira. Durante uma das viagens, a saúde de Apartado começou a dar sinais extremamente preocupantes. Não era para menos. Um ataque do coração, de regular gravidade, obrigou-o a ficar oito dias em Guadalajara. E era de Concita a responsabilidade pelos cuidados do velho pai de Aganon. Concita era jovem, muito mais jovem do que Aganon; vinte anos, para ser mais exato. A casa que alugara, por temporada, para abrigar o pai, não podia estar melhor situada. Era em local cuja atmosfera não deixava dúvidas quanto à eficiência de um tratamento natural. Afastada da poluição e do burburinho das metrópoles. Cercada do verde das montanhas que a circundavam, das árvores que sombreavam todos os caminhos de entrada e saída e, naturalmente, da consequência disso tudo que é a paz verdadeira. Somam-se a isto a companhia em tempo integral dos cuidados e da meiguice de uma doce mexicana. Concita exalava juventude nos seus trinta anos irreconhecíveis. Tinha o dinheiro que a tornava ainda mais bela, como gratidão pela própria beleza que a fez rica. Das enfermarias para o palco e deste de volta às enfermarias, após uma carreira tão rápida quanto retumbante.

Uma frustração amorosa deu fim a dois sonhos de Concita. O problema, assim encarado, denota fraqueza, senão física, mas de caráter. Entretanto, no caso dela, não era nem uma coisa nem outra. Quem antes a conhecia e a viu depois, poderia perfeitamente entender o sentido de minhas palavras. A ex-atriz, o que perdeu em amor fracassado, conquistou em talento e experiência para merecer outro amor. O que perdeu em interrompendo uma brilhante carreira, viria a ganhar mais tarde em forma de maturidade para empregar muito bem as suas riquezas. A beleza, conjugada a uma forma sutil de inteligência, era uma delas; foi assim que conseguiu amarrar o coração de Aganon.

Ele foi pessoalmente à agência quando precisou de uma enfermeira para o pai. Como sempre fez com cada candidato aos cargos que punha em oferta em seus tempos de executivo, assim foi a escolha de Concita: demorada e repleta de pormenores esclarecedores. Na entrevista Aganon conheceu os dotes secretos de Concita. Fez questão de que viesse consigo; queria conversar e conhecê-la melhor. Meteu-a na carruagem que alugara e passou deliciosamente os quarenta e cinco minutos seguintes em doce confabulação.

- A paixão pela enfermagem é assim tão grande para merecer o abandono dos refletores? - perguntou. Concita sorriu ao lisonjeio. Seus dentes tão alvos e perfeitos, marca de sua simpatia habitual, mostraram-se a Aganon. A passagem de um pensamento forçou a mudança repentina no estado de humor; então respondeu:

- Infelizmente, as circunstâncias da vida falam mais alto que os nossos desejos pessoais. Mas o que há de errado com seu pai? - emendou, tentando mudar de assunto. Aganon falou do velho e da doença, como se fosse agora um problema a mais dentre os tantos em sua vida. Não dava conta, ou se o fazia, não se importava do descuido em relação à seriedade do caso. Via-se como repuxado por um sentimento que há muito não sentia. Mas prosseguiu mesmo assim. Concita bem próxima. Se o corpo dela não encostava-se ao seu, o perfume, por outro lado, inebriava-o; ia fundo em suas narinas. A boca, que preferia deixar ao dono do olfato o prazer que, para ela, pouco valia por ser incompleto, falou:

- Não está nada bem, mas agora vai ter companhia de verdade; a união do talento profissional com a beleza, mais profissional ainda. - Concita deixou vir novo sorriso. Trocaram novas ideias. A viagem foi curta. Porém, deixou no ar a certeza do clima que brotou entre os dois; a mutualidade da simpatia. Para Concita, o respeito, acima de tudo. Aganon mostrou-se diferente de outros homens que insistem nos assuntos pessoais que as mulheres lutam por deixar de fora nas conversações, pelo simples prazer de vê-las encabuladas e assim facilitarem a conquista. Aganon não fazia uso de tão rasteira estratégica.

Ao ver Apartado não se abalou. Sabia o que tinha de fazer e fez. O seu estado ainda não era animador mas estava bem melhor que antes. Pai e filha retornaram a Las Vegas, Concita ao hospital, mas por pouco tempo. Aganon descobriu, após o afastamento, que algo diferente, um sentimento que conhecia, mas que dormia em seu peito, dava sinais de querer viver novamente. Desde que o escondera num canto do coração, largara-o ali, encafuado e triste. Entretanto, não era simplesmente um envolvimento a mais o que procurava. Queria viver um romance, um caso de amor; com começo e sem fim. E não se tratava aqui de uma troca de interesses. Dinheiro, ambos possuíam. É certo que a fortuna de Concita não chegava aos pés da de Aganon, mas ela parecia satisfeita com o que tinha, sem ambicionar muito mais. Tinha no trabalho uma forma de terapia a apagar de sua memória lembranças indesejáveis. Se o amor entre os humanos, para gerar felicidade, dependesse, única e exclusivamente da afinidade entre os prognósticos de dois seres apaixonados, tudo seria muito mais fácil; bastaria isso ao amor. A união dos corpos seria mera coincidência, posto que completos já estariam, com conhecimento de causa.

Aganon foi buscá-la uma semana depois de chegar com o pai em Las Vegas. Não foi fácil convencê-la, muito menos a agência para a qual trabalhava. Para Concita, era uma mudança de costume, de adaptação ao clima, mais do que de um estilo de vida. Visto como fuga amorosa ou mesmo como um desafogo de mágoa, até que traria mais alívio do que saudade para a libertação do ego sofrido, da tristimania impiedosa. Precisou ficar alguns dias em Guadalajara, e não sairia de lá enquanto ela não dissesse sim a sua proposta. Por duas vezes jantaram juntos. A conversa durante o segundo jantar foi decisiva.

-Não posso demorar-me mais por aqui; preciso voltar e ficar perto de meu pai. Por outro lado, não queria causar ao velho uma decepção. -Usando esta estratégia, Aganon conseguiu mexer com o coração de Concita. A paixão dela pela enfermagem não era sem motivos. Tinha prazer em cuidar da alma humana. O sofrimento do corpo dava-lhe compaixão, mas deste podia ela tratar e, quando tinha sucesso, não havia alegria maior. Ver um doente recuperado pela magia do seu tratamento era para Concita paga maior e mais duradoura do que a maior e mais rendosa de todas as profissões. Porém, quando tratava-se este doente de um mortal apedeuto que, apesar da ignorância, deixaria o exemplo do triunfo com simplicidade superar o lugar comum dos pseudo vencedores de colarinho branco, a compaixão de Concita não era maior que o orgulho de amparar esta alma que venceu o mundo a sua maneira. Apartado foi um desses seres que passaram pela mão de Concita. Os dias, poucos por sinal, que com ele conviveu, e as raras conversas, deixaram nela estas impressões. Por essas razões, quem sabe - difícil é avaliar um sentimento - mais forte que a vontade de esquecer o passado ou conhecer Aganon, aceitaria o desafio de dar as costas ao velho e conhecido em busca do inusitado.

Sendo assim, deu Aganon o primeiro passo para ter por perto uma forte candidata a ocupar um espaço vazio em seu coração. Ele podia não saber, mas a doença do velho transformara-se em paradoxo a trabalhar em favor da sua felicidade. O dinheiro não compra amor mas, neste caso especial, o seu poder influenciou uma vontade e deu como resultado uma viagem. A ambição, por sua vez, falou mais alto do que uma amizade de anos entre Concita e sua patroa, dona da agência de enfermagem. Ainda assim, três tentativas fizeram-se necessárias, pois a ansiedade de Aganon em conseguir seu intento não era menor do que a venalidade irreprimível num caráter extremamente mercenário. Fechou-se o acordo por uma soma bastante considerável. Um alegrão, a princípio dissimulado, estampou-se no rosto da mulher. A tentativa de encobri-lo mostrou-se frustrante, mas ela bem que tentou.

-Vou sentir muito a falta dela; são anos de trabalho dedicado. - Aganon fez que acreditou e, para equilibrar, brincou o mesmo jogo. Afinal, não ia ser pouco educado com quem lhe entregava Concita. Optou pela vantagem que o amor lhe oferecia, mesmo que em detrimento aos escrúpulos que sempre foram para ele uma prioridade. Mas em nome desse mesmo amor já via-se perdoado.

-Não imagina como me sinto grato. Prestou-me enorme gentileza. - Estava, assim, aberto o caminho que, segundo as aparências ou as probabilidades, iria dar no coração de Aganon. Resta conhecer os caminhos ou tendências do coração de Concita. Todas as razões que a razão desconhece povoavam o coração daquela mulher enigmática.

No solar de Las Vegas, a rotina de alguns anos passados não era a mesma para Apartado e possuía razões para não ser a mesma para Aganon. Fez-se encontradiço com Concita no quarto do pai que melhorava a olhos vistos. Bem mais do que isso: em função do cuidado e de uma atenção constantes, o doente de antes passou pela convalescência com a lepidez de um animal de raça que desperta de um só salto ao primeiro raio de sol. Ao fim do primeiro mês dispensou a cadeira de rodas. As refeições, tomava-as em um dos quartos de baixo, sempre servido, e muito bem, pela diligente mexicana que, não raro, comia com ele. Para não aumentar aos arrufos que pressentia em Aganon, concordava em fazerem as refeições no salão principal. Após uns quinze dias o velho sentia-se forte para subir as escadas; voltou ao seu quarto no segundo andar. Ainda assim, com frequência optava, ou a mulher, por não descer às refeições. Uma tarde, Apartado dormia sua cesta e Concita encontrava-se no jardim. Olhou as plantas, cuidou da grama e entrou de novo para casa. Costumava ler a estas horas mas, um fato raro desviou-lhe a atenção e o alvitre. Aganon chegava pelas seis ou sete, jantava e às oito retornava ao cassino; neste dia, porém, fez diferente.

Há poucos instantes soaram as badaladas no grande relógio à parede da sala de estar onde se sentara Concita também há poucos instantes. Foram quatro as badaladas do relógio; foram três as batidas na porta. Ela fechou o livro que pegara na estante, levantou-se e o recolocou no lugar; foi atender a quem chamava. Na mente, a incógnita de saber ou imaginar quem poderia ser a tal hora do dia. Quando viu Aganon, não escondeu a surpresa.

- Sr. Aganon! houve alguma coisa?

- Boa tarde! - disse ele sorridente, ainda no limiar da entrada - nada sério, só uma dor de cabeça. Aproveitei o fraco movimento e vim atrás de um banho seguido de um bom descanso - completou, com um gesto de fisionomia que não convenceu Concita. Outrossim, era corado, sem aparência de mal estar. Então subiu, mas daí quinze minutos reaparecia na sala e, mais uma vez, interrompia-lhe a leitura.

- Bom livro? - perguntou, sentando-se na poltrona em frente. Concita descansou o livro e as mãos sobre os joelhos.

- Sim, promete; estou ainda no começo e já me sinto curiosa. O senhor parece ter bom gosto para a literatura.

- Como sabe?

- Vendo os títulos já dá para se ter uma ideia. Os assuntos parecem ser interessantes. Demais, já li alguns deles.

- Fico feliz em saber que possuíamos mais este ponto em comum.

- Não sabia que tínhamos pontos em comum - Concita replicou. Aganon não encontrou tréplica à altura; então se calou, sorrindo com simpatia. Ela, no seu jeito franco, sem afetação, ergueu o livro e tornou à leitura. Ele aproveitou a calma e a quietude do momento para apreciar de perto e melhor a beleza da enfermeira. Seus cabelos eram negros e compridos. Pendiam com frequência incômoda sobre a cabeça, impedindo-lhe a concentração.

- Como está papai?

- Dorme. Acredito que já esteja recuperado; agora é só se cuidar, não ter aborrecimentos e, principalmente, distrair-se.

- Se depender de sua atenção e cuidados, não vejo maiores problemas para a sua saúde.

- Parece confiante.

- Você não está? - perguntou Aganon com ligeira insinuação de ciúme que Concita captou mas fingiu indiferença.

- Sempre estou confiante, faz parte do meu ofício.

- Também faz parto do seu ofício conversar um pouco mais com quem contratou você?

- Já estou fazendo isso - respondeu com um sorriso. Aganon correspondeu.

- Refiro-me a algo informal, fora do nosso ambiente profissional. Podemos jantar juntos, aceita?

- E por que não? Já fizemos isso, está lembrado?

- É claro, mas foi diferente.

A experiência de Concita fê-la manter-se à altura de sua feminilidade durante todo o tempo em que esteve na companhia de Aganon. Ele, por sua vez, soube respeitá-la mas não procurou compreendê-la. Saíram no dia seguinte após às nove quando já dormia Apartado. Jantaram em ambiente de luxo, dançaram e muito conversaram. Júbilo para Concita. Frustração para Aganon que não obteve sucesso em sua conquista. Onde estaria o problema? Ela tentou esquivar-se a sua maneira mas suas justificativas não o convenceram. Saíram outras vezes. A lugares diferentes e variados. Mas Concita era a mesma. Adorava Las Vegas. Vibrava no glamour das noites iluminadas mas sua frieza o deixava perplexo. Como entendendo ou supondo que deveria haver compensação ou que era isso o que ele queria, aceitou dormirem juntos uma noite.

Concita era uma mulher extremamente carinhosa; sabia dar prazer a um homem. Porém, pelo modo como se comportou com Aganon, ficou tácito que não o amava. O papel de fêmea foi cumprido, muito bem até, mas não o convenceu. O prazer carnal e as sensações físicas estão para o ato sexual quanto um delicioso petisco está para o paladar. Impossível evitar seus efeitos, mormente em corpos saudáveis e ávidos de toques e carícias como os deles. Aganon sentiu além do toque físico. Mesmo ciente da indiferença dela, alimentou esperanças; queria ganhar, além do corpo, o coração de Concita. Usaria o seu talento, sua experiência e maturidade e, na esfera do interesse, o dinheiro, se preciso fosse e quanto preciso fosse.

Assim decidido, mudou sua estratégia. Continuou cortejando a bela mexicana, hora a sua maneira, hora à maneira dela. Tratava-a com carinho; porém, cessaram os convites para as saídas noturnas. Aganon pouco a via. Não por não poder. Tempo tinha demais para isso, se quisesse, mas, preferia passar a maior parte do tempo no escritório onde amargava sua incompreendida frustração amorosa. Em casa, tinha na biblioteca o refúgio predileto. Quando com ela conversava, esforçava-se por parecer natural. Mas raramente conseguia. E de tudo fazia para esconder a tristeza de não ter sido compreendido. Concita, por sua vez, não parecia ter dificuldades em lidar com este tipo de situação como se fosse o mas natural e como se mais de uma vez já o tivesse vivenciado. Queria de Aganon a sua amizade e chegou a propor isto a ele.

Obviamente ele não aceitaria este tipo de acordo. Seria o mesmo que ver-se rejeitado pelo amor; e perder para o amor é estar infeliz. Pior ainda é estar por perto de quem se ama sendo obrigado a conviver com a derrota, sufocando o desejo. Como era de se esperar, surgiu a decisão. Apartado era outro; sem doença e forte outra vez. Seus setenta e quatro anos como se houvessem reduzido aos setenta ou sessenta e oito. Nunca vira o pai tão animado e cheio de vida. Quando Aganon comunicou-lhe a decisão de dispensar Concita, o velho levou um choque cujos efeitos custava a esconder.

- Nem pense nisto! - falou, buscando o autocontrole -, exatamente agora que me acostumei com ela!

- Estou notando o senhor muito entusiasmado. Sabia que já não está em idade para isso? - falou, em tom de carinhosa brincadeira. A verdade é que, não passava pela cabeça de Aganon a mínima hipótese de a recusa de Concita em corresponder a sua conquista ter a ver com Apartado. Tinha idade mais que suficiente para ser pai dela; mas isso ao mesmo tempo poderia representar um detalhe bem insignificante para ele. Sempre respeitou Malina mas pouco custou para recuperar-se do choque que foi a sua perda. Nunca a substituiu, mas nunca deixou de levar pretendentes à presença do filho. Nada sério, talvez em respeito à memória da morta ou por falta de confiança em si próprio, todos os relacionamentos não foram além de breves passatempos, onde namoriscar eram fugas à realidade ou tentativas de retorno aos tempos inesquecíveis da juventude com Malina, a única que realmente importância teve para ele.

Aganon conhecia muito bem o seu velho. E por conhecê-lo e não querer contrariá-lo ou machucá-lo ainda mais, achou por bem adiar a decisão. Passaram semanas que se transformaram em meses. Ele precisou suportar muita coisa neste período; até que o ciúme foi mais forte que sua tolerância. Há dois dias Aganon vinha tomando suas refeições completamente só no salão principal. É certo que evitava ver ou falar com a mexicana. Mas um ou dois dias sem cruzar com ela, quer fosse pelos corredores da casa, na cozinha ou ainda pelo jardim, era para ele tortura maior do que a possibilidade de não mais tê-la para si.

Um dia aconteceu o que parecia inconcebível. Ou inacreditável. Era madrugada e Aganon não conseguia conciliar o sono. Levantou-se e foi até a varanda a fim de espairar as ideias e aliviar a mente exausta de tanto pensar em Concita e sofrer a sua rejeição. Ficou por lá pouco menos de meia hora. Ao regressar ao quarto, observou que, no andar de cima, a porta dos aposentos dela encontrava-se entreaberta; nunca foi seu costume tal procedimento. Aganon não resistiu ao desejo incontrolável de ir até lá, nem que fosse para olhar, por momentos, simplesmente um pouco da intimidade daquela a quem amava. Porém, qual não foi a sua surpresa ao perceber que a cama estava vazia; melhor dizendo, não havia sido, sequer, desarrumada. Estranhando tal estado de coisas, pensou em ir até a cozinha; quem sabe a encontraria por lá. Mas ao descer dois degraus da escada interna que o levaria de volta ao andar de baixo, teve outra ideia. "Não quero acreditar no que minha mente está me sugerindo", pensou e voltou atrás. Obedecendo a intuição dirigiu-se ao aposento de Apartado. A porta estava fechada. A luz da lua penetrava pelo outro lado através da janela envidraçada e dava um pouco de claridade ao recinto. Aganon hesitou por alguns instantes. Poderia, muito bem se quisesse, abrir a porta e entrar, mas, seguindo ainda a intuição, não o fez; algo lhe dizia que não iria gostar do que visse. Em todo caso, não foi capaz de resistir a uma espiadela pelo buraco da fechadura. O que viu deixou-o aterrado, quase a tremer. Concita dormia ao lado de Apartado, na mesma cama que ele. Como fazia frio, estavam enrolados na mesma colcha azulada de edredon; dormiam profundamente.

Era impossível acreditar naquela cena. Mais parecia o apogeu de uma noite excitante representado no gesto contundente de satisfação a poucos metros da visão parcial de Aganon. Ambos exibiam em suas fisionomias relaxadas a cumplicidade de um momento, tanto inesperado, em suas fisionomias relaxadas, quanto repentino. Em menos de duas horas os raios curiosos do sol fariam-se presentes a iluminar o ambiente. Aganon saiu dali a passos trôpegos sem querer acreditar na cena que acabava de testemunhar. Desceu a escada e entrou em seu quarto. Em sua mente as ideias não lhe chegavam sensatas; podia estar sonhando mas não estava. "então era esse o motivo", pensou. Saber que o próprio pai era a razão direta de toda a recusa de Concita, representava o início do fim de uma esperança. Por momentos, sentado à beira da cama e totalmente estático em seus pensamentos, Aganon tinha o rosto entre as mãos, totalmente perdido e sem ação. Não queria acreditar, mas não tinha escolha.

Esta noite foi das piores na vida de Aganon. Dizer que não mais pregou os olhos para dormir é tão redundante quanto desnecessário. Se tinha um coração, este já não mais lhe pertencia, posto que, juntamente com a esperança, deixara-o abandonado ao sabor do nada. Foram bater fora de seu peito; era melhor que assim fosse. Desta forma não teria que suportar o insuportável. Apagou-se dentro de si a luz da razão. Era, e queria ser, uma massa física, não mais que isso. A constatação da cena tocou em Aganon o alarme da dor. Ainda procurou encontrar para si próprio justificativas que pudessem apaziguar o choque que sentiu; mas era tudo tão claro e evidente!

A decisão foi tomada. Uma semana após este acontecimento, Concita já não mais andava por aquela casa; nem por Las Vegas. Cioso do pai, Aganon tinha um plano, mas este era tão falível quanto a decisão de executá-lo. Amava o pai; não perdera, entretanto, o amor pela mexicana. Deixou passar algum tempo que julgou necessário ao reequilíbrio das tensões dentro de casa. - Não quero que uma estranha venha atrapalhar o bom relacionamento que sempre houve entre nós, meu pai; vou fazer de conta que nada aconteceu. Meu respeito pelo senhor continuará sendo exatamente o mesmo.

- Aganon, você fala como se seu pai tivesse cometido um crime imperdoável! Aquela mulher me seduziu! É claro que sua beleza e juventude são um atrativo quase que irresistível a um homem; especialmente alguém na minha idade. Mas, garanto a você, foi ele quem começou tudo. - Apartado ficou a observar a fisionomia do filho enquanto soltava estas palavras. Por certo, não esperava que fossem encontrar eco ou crença por parte de Aganon. Todavia, este não tinha intenção de criar constrangimento. Guardou para si a dor de perder Concita. Tra-la-ia de volta, não fosse isso constranger seu coração. Porém, para o bem de Apartado, providenciou companhia que pudesse manter são o velho peito, sentido com a separação de quem melhor dele soube cuidar, em todos os sentidos.

Esta mulher caiu do céu na vida de Aganon. Na vida de Aganon mas no coração do velho. Apartado não ficou sabendo qual seria a razão tal que faria o filho afastar-se por duas semanas de Las Vegas. Seria muito bem vinda a sua decisão se esta não deixasse de fora o pai ainda carente, nem tanto agora de bem estar, mas, de quem garantisse a ele o desafogo das mágoas que ainda lhe eram companheiras.

Engraçado como nunca nos apercebemos do que vai realmente no íntimo das criaturas, mesmo aquelas que nos são mais próximas. Por lógica resultante de uma vida de convivência, deveria Aganon estar ciente das necessidades do velho pai. Porém, não seria assim tão fácil desfazer-se de seus conceitos de infância para vê-lo de outra forma. Para Aganon, o pai herói teria que ser eterno: as mesmas virtudes, as mesmas preferências e as mesmas paixões. Quando vão estas coisas e fica o coração, nem tudo é como antes. Neste caso de Apartado, cujo próprio coração quase não fica também, porque teriam que ficar aqueles valores, tão arraigados na consciência do filho, mas sujeitos às mudanças inevitáveis da roda de nossas vidas?

Tudo acabaria bem, o que não quer dizer que não houve tragédias. Talvez, para Apartado, a perda daquela que foi, de todas, a sua grande paixão, primeira e única, tenha sido a sua tragédia; esta nunca seria superada. Malina foi o seu maior bem; a perda de Malina, o seu maior mal. Este é o resumo de sua vida. O que veio depois, ele passou a chamar, na sua costumada ironia, de: o resto. E foi isto. As aventuras posteriores, Concita - o marco dessas aventuras - e, finalmente, Ava, não contam mais do que reles manchas de tinta, pontos opacos de uma tela sabiamente iluminada; assim foi sua vida.

O surgimento de Ava nesta narrativa não passaria de mera coincidência, não fosse o fato deixar profundas lembranças em Aganon. Ele precisou de alguém para cuidar do pai enquanto transferia parte dos seus negócios para a cidade do México, mais precisamente, Guadalajara. Sim, o que ele queria mesmo era estar perto daquela que nunca conseguira esquecer; apesar de tudo. Dois anos se passaram. Numa bela tarde de sol de domingo, pai e filho, como sempre faziam, tomavam o chá na varanda da grande casa. O cair das últimas horas antes da noite que prometia ser das mais quentes de Las Vegas, trazia consigo o garboso som de pássaros recolhendo-se aos ninhos. Apartado sentia-se cansado. Suas frases eram circunlóquios agravados pelo enfadamento da idade avançada.

A presença de Ava já vinha de quase três meses, os quais, apesar de tudo, já traziam para o velho um sentido de paz e confiança que deixou muito bem feliz Aganon. Ava tinha sessenta e dois anos; era descendente de índios. Perdera os pais quando criança na Guerra de Secessão. Casara-se muito jovem em Las Vegas, onde nasceu, indo com o marido para o Canadá; aos trinta e sete enviuvou. Tinha um casal de filhos. O menino, aos quinze anos, conheceu o peso da responsabilidade ao ter que trabalhar para ajudar no orçamento. Ava, como resultado da luta para a criação dos filhos, desenvolveu um dom natural, tornando-se exímia cozinheira. Passou pelos mais famosos e sofisticados hotéis e restaurantes de Montreal. Foi em um desses que conheceu Concita.

A habilidade de Ava em sua profissão e a amabilidade como pessoa, conquistaram a mexicana. No auge dos poucos anos em que conheceu a fama do mundo cinematográfico, Concita passou por Montreal para cumprir uma etapa de lançamento do que acabou sendo o seu último filme. Gostou tanto de Ava naqueles oito dias em que ficou hospedada que tornaram-se amigas a ponto de o diretor das filmagens não resistir às insistências e dar à cozinheira uma pequena participação na história; porém, o que importa é o que aconteceu depois. Ava tornou-se para Concita parte fundamental do seu sucesso; não na frente das câmeras ou por trás dos bastidores, mas na vida real. O que deixaram engrolado na arte cênica, souberam completar na verdadeira arte do cotidiano. Como cozinheira particular de uma ex-atriz, Ava realizou-se também como mãe, pois acabou trazendo também os filhos.

Ava não conheceu o amor impossível que fez com que Concita abandonasse prematuramente sua tão promissora carreira. Mas testemunhou as aventuras que a jovem viveu, não porque gostasse, mas por não ver, talvez, muito sentido em sua vida. Nessas aventuras muito, às vezes, se machucava, mas, por ter Ava, sempre se reerguia. Até que veio, por sugestão da amiga, o curso de enfermagem, a Agência e, em seguida, Aganon.

-Vou para Las Vegas - disse, um dia, Concita, pegando Ava de surpresa e fazendo, por momentos, sua mente viajar para um passado tão distante do qual mal conseguia lembrar-se. -Não precisou explicar mais. Ava sabia a quem Concita estava se referindo. A fama de Aganon atravessava territórios e fronteiras como um dos homens mais influentes de sua época; contudo, desconhecia a origem daquele homem tão ilustre.

No começo da separação eram constantes as cartas trocadas entre as duas amigas. Porém, com o passar do tempo, elas foram escasseando. Até que cessaram por completo. Ao cabo do primeiro ano, Ava não hesitou e foi procurá-la. Chegando a Las Vegas foi, primeiro, ao encontro de Aganon. Teve com ele longa e proveitosa conversa na sala reservada do cassino. Ao final, a decisão de Aganon de dispensar os serviços de Concita sem deixar o pai de todo desamparado acabou se consolidando. Quando soube tratar-se de Apartado, os olhos de Ava adquiriram tão vivo e repentino brilho que fizeram Aganon não conter a surpresa.

- Você conhece meu pai?

- Sim - confessou, após alguma hesitação, mas não deu maiores detalhes. Foi marcado o encontro entre as duas mulheres. Por dois dias ficaram na cidade matando suas saudades e falando sobre o futuro. Qual seria o futuro para Concita? O futuro que Ava pintou para si, ampliado pela visão saudosista que, por anos, alimentou seu espírito, só poderia ser de felicidade! Para a mexicana, a incerteza seria ainda sua companheira por algum tempo, mas apenas o suficiente para que, mais uma vez, se deixasse levar pelos ditames incompreensíveis de sua personalidade desequilibrada.

Apartado não usufruiu como quis, ou como merecia, a companhia de Ava. Viveram próximos um do outro muito mais como dois amigos do que qualquer outra coisa; para ele foi o bastante. O romance prematuro no intróito de suas juventudes e que não levou a nada, pois nada era além de meras fantasias de adolescente, concluiu-se agora na mais pura e sincera amizade. Bastaria isso ao amor; a união dos corpos seria mera coincidência, posto que já se completavam, com conhecimento de causa.

E Concita? Bem, parece que a aventura é o que sentido fazia a sua existência já sem sentido. Envolveu-se com o filho de Ava, numa relação de aparências, onde o interesse juntou-se ao brilho e o glamour da cidade de Montreal. Deixou, assim, para trás, os que a queriam de verdade, tirando dos locais que escolheram, as vantagens e suas limitações; impostas por uma amizade antiga e verdadeira e pela solidão inevitável.

  • Publicado em: 24/10/2006
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