Todas a formas e todas as cores, que possam atrair a atenção e
despertar, não só a curiosidade, mas os paladares mais exigentes,
ali estavam expostas. Completamente apinhados de barracas simples, cobertas
de uma lona branca e bastante forte, que as protegiam das fortes chuvas que
ali se faziam frequentes, e guarnecidas nas laterais por tecidos avermelhados,
encontravam-se os dois lados da rua. A multidão se espremia e disputava
espaços raros em busca daquelas que ofereciam os melhores preços
e as melhores mercadorias. A vista das enormes e apetitosas ameixas, do vermelho
das maçãs, realçado pelo brilho das gotículas que
resvalavam do alto de uma pequena abertura, enchia de desejo os olhinhos de
Ahamed e de água a sua boca, que desde a noite anterior, até aquele
já quase final de tarde, ainda não provara alimento.
Valeria a pena se arriscar e pagar o preço da fome implacável?
Por culpa do próprio regime em rigor naquela terra distante, a pobreza
excessiva destruira a dignidade e a esperança da maioria. Ahamed era
o exemplo vivo desta desumanidade. Seu corpinho raquítico destoava da
idade de 14 anos vividos em meio à fome e à miséria. Os
olhinhos fundos nas faces encovadas acompanhavam com agilidade o movimento da
turba. Ao contrário daquela sua aparência, desfilava a sua frente
a nata privilegiada, mostrando sem pudor ou constrangimento o produto do ganho
fácil, fruto da discriminação.
Ainda não caíra com força a chuva. Restara, do temporal
da véspera, o barro em alguns pontos da estreita rua de terra. As mulheres
pisavam com cuidado e desviavam-se das poças protegendo as belas e coloridas
sandálias, enquanto os homens que trajavam túnicas preferiam erguê-las
até a cintura, não se importando em chafurdar os pés no
negro lamaçal recém formado.
Ahamed não despregava os olhos de uma das barracas a sua frente. Era
repleta de frutas; nozes, pêssegos, enormes cachos de uva pendurados a
balouçar ante a sua visão maravilhada. Encostara-se no muro branco
de uma residência a uns dez metros do portão e ali ficara, esperando
a oportunidade de se aproximar sem ser notado. Talvez não tenha percebido
a chegada de um morador descendo as escadas do terraço, trazendo nas
mãos algumas sacolas contendo lixo. Ele abriu o portão, olhou
para o menino, mas não esboçou nenhum tipo de reação.
Caminhou alguns passos para o lado oposto, ergueu a tampa de uma enorme caçamba,
atirou lá dentro as sacolas e retornou, subindo as escadas.
As ofertas tentadoras atraiam a todos que passavam. Os preços estavam
expostos em tinta preta sobre plaquetinhas amarelas espetadas nas mercadorias.
A multidão aglomerava-se ao redor, cobrindo com frequência
a visão de Ahamed. Súbito, uma ideia pairou em sua mente.
Porque não se infiltrar no meio dos grandalhões para roubar algumas
frutas? Era tão miúdo que talvez não dessem por sua presença.
Esperou a passagem de um burro, montado por um sujeito muito magro e sem camisa
que transportava uma menininha em sua garupa. Atravessou e meteu-se no meio
dos outros. Uma gorda, vestida num avental branco e encardido, atendia aos pedidos,
pesando em uma balança quadrada as mercadorias e ensacando as moedas
no enorme bolso da frente. O moleque, sem que ninguém notasse, passou
para debaixo de uma das bancas da barraca e ali ficou, na espera de uma oportunidade.
- Aproveitem! As melhores frutas da estação pelos melhores preços
estão aqui - gritava a mulher e depois sorria, exibindo os dentes amarelados,
com algumas falhas no lado esquerdo da boca. Ahamed, encolhido por trás
de alguns balaios de vime, esticava de vez em quando a mão e puxava um
pêssego ou uma ameixa, saciando, aos poucos, a fome.
Eis que surgem, entre a freguesia, vestidos em seus uniformes: calças
de linho alaranjadas, grossas sandálias trançadas até o
tornozelo, jaquetas de lã, os guardas do palácio imperial, fazendo
a costumeira ronda; Ahamed os viu. De onde estava, acompanhou os passos de um
deles que, súbito, retornou e veio em sua direção. Percorreu-lhe
um calafrio e pressentiu algo ruim, quando duas enormes pernas pararam diante
dele. Tentou sair dali e correr, mas já era tarde. Ao erguer-se pelo
outro lado da barraca sentiu duas mãos pesadas que o agarraram pelo pescoço.
O homem que vira minutos antes saindo da casa esperou o momento certo de tirar
mais um desfavorecido de circulação.
O flagrante da prisão levou-o diretamente ao departamento de polícia
onde permaneceu por duas semanas encerrado em um cubículo de oito metros
quadrados junto com mais três menores que, como ele, se condenados, e
certamente o seriam, receberiam o mesmo castigo. No Egito daquele tempo não
havia apelação, idade e, tampouco, fiança para os crimes
de roubo. Perder a mão, decepada ao golpe da cimitarra era o que aguardava
Ahamed. Triste penalidade para o triste suplício da fome que pede apenas
que seja saciada.
Julgado e condenado chegou o dia da execução. Foi levado a campo
aberto na entrada do deserto e amarrado a duas traves fincadas na areia úmida
e branca, na posição de pé, braços e pernas abertos
e com os pulsos e mãos esticados e atados em grossas cordas. A mão
direita pendia, inerte, aguardando o fim trágico. Ali se encontravam
os homens da lei, representantes do faraó, testemunhas e outros interessados
e curiosos. Foram lidos os termos da pena. Em seguida, um trecho do Alcorão
completou a cerimônia. O carrasco apresentou-se; os braços nus,
musculosos e queimados pelo sol. As mãos peludas seguravam com firmeza
a arma que brilhava e causava medo.
A aproximação de uma carruagem de forma repentina e barulhenta
desviou a atenção do evento e, mais ainda, uma mulher bela, tanto
em trajes quanto em beleza física.
- Quem ousa interromper a cerimônia de execução? - quis
saber o juiz presente.
- Sou Demétria, secretária de paz da princesa Bartira, do reino
de Abdul.
- Que deseja a nossa adorada Bartira?
- O rei Abdul está doente. Os afazeres do castelo se fazem urgentes e
acumulados e necessitamos de escravos. Poupe da morte este pobre coitado que
vou levá-lo agora mesmo à presença de Bartira.
- Embora não aceite fiança o nosso faraó, o condenado pode
ser negociado como escravo e livrar-se assim da morte e a responsabilidade recai
sobre o adquirente. Sabe, no entanto, que os valores da negociação
são altos. Não sei se valerá à pena ao nosso rei.
- Não importa a Abdul o valor e ele está ciente de todos os riscos.
Liberte-o agora mesmo.
Livrou-se assim Ahamed de perder a vida e seu peito encheu-se de gratidão
e alegria. Aquele infeliz menino, vagabundo e sem família, atirado na
rudeza e na solidão das ruas, viu transformar-se a vida de um momento
para o outro como consequência afortunada de um fato corriqueiro
nas ruas do Cairo nos tempos de Ramses. A fama de Bartira como favorita do rei
Abdul era inquestionável. À bela princesa não faltavam
o conforto e as riquezas do castelo onde vivia. Alta, olhos azuis brilhantes
e expressivos e tez morena acentuada pelos raios abundantes do sol que invadiam
os amplos espaços dos seus aposentos. As escravas cercavam-na de préstimos
e atenção. Foi este ambiente de riquezas e maravilhas que acolheu
Ahamed e o viu transformar-se de um raquítico e débil guri num
forte e garboso mancebo. A princesa, acompanhando de perto esta mudança,
mudava de igual forma o jeito de ser para com ele. Os músculos, desenvolvidos
no exercício diário das pesadas obrigações como
escravo, eram agora o colírio calmante que a enchiam de admiração
e desejos por ele.
Tornaram-se amantes. A princípio, às escondidas, tendo como testemunhas
de seus momentos proibidos não mais que as paredes e pilastras daquela
morada.
- Meu coração não vê a hora de unir-se ao seu sem
que precisemos ocultar ao mundo os nossos sentimentos, meu grande amor. Amo-o
como nunca amei outro homem. Não foi à toa que rejeitei as investidas
aventureiras de muitos que aqui estiveram trazidos pelo faraó. É
porque sabia, do fundo da alma, que um dia seria sua. O fim de Abdul está
próximo e, como rainha, não precisaremos fingir nossa paixão.
Ahamed deixava-se levar pelas declarações de Bartira, correspondendo
integralmente. As mãos macias que penetravam os bastos cabelos macios
do moço, como as unhas pontiagudas da futura rainha, deslizavam com afeto
sobre o couro cabeludo, eriçando-lhe os pelos.
- Que mais poderia eu desejar da vida? Tanto sofri que já perdia as esperanças
de haver alguma felicidade neste mundo. Até que, por desígnio
dos deuses, surgiu você, salvando-me a existência. Mais do que isto,
mostrou-me o doce encanto do amor. Quero viver a seu lado eternamente; este
é o meu lar e você é tudo que quero e que preciso.
A morte de Abdul trouxe mudanças. Bartira, no trono, não cumpria,
à altura do pai, as árduas tarefas de um monarca. O temperamento
calmo e parcimonioso que a todos agradava e havia conquistado desapareceu com
o tempo. Mudou leis, criou estatutos e afastou amigos e colaboradores. Tornou-se
uma rainha má, na opinião de seus próprios conselheiros.
As penas de morte, assim como as execuções, triplicaram, colocando
em pânico a sociedade do seu tempo. Ahamed, por mais que a alertasse,
não obtinha sucesso em abrir-lhe a visão ao que vinha ocorrendo.
A paixão já não era a mesma. O fogo do amor diminuía
ao transcorrer dos anos, os mesmos anos implacáveis que empanavam também
a frescura da pele e o cativante brilho da fisionomia da rainha.
Alguns anos se passaram. A herança de Ramses II permanecia gloriosa,
exposta nos templos e palácios da capital Tebas e, nas suas vizinhanças,
Luxor e Karnac eram o habitat de Deus sobre a terra. De uma maneira inteiramente
excepcional, Ramses III permite-nos lançar uma olhadela sobre a vida
íntima do harém e suas diversões. Nos apartamentos das
torres da "Grande Porta", situada hoje na margem ocidental do Nilo,
fez-se representar em suas relações familiares com suas favoritas.
As mulheres, e ele próprio têm por únicas vestes uma coifa,
um colar e sandálias. As esbeltas e graciosas criaturas cercam seu senhor,
que traz à cabeça a coroa azul dos faraós, jogam com ele
o xadrez e apresentam-lhes às narinas buquês de flores cheirosas.
A gente o vê pegar pelo queixo sua encantadora companheira e não
se pode contemplar este gesto de terna intimidade sem que ocorra a lembrança
de que aquele mesmo soberano haveria de morrer, vítima de uma intriga
do harém, na qual estiveram imiscuídos seus familiares mais imediatos.
Além das moças nativas, o harém compreendia representantes
de regiões longínquas. Mais de uma princesa oriental foi enviada
com grande pompa e ricamente escoltada para o vale do Nilo a fim de ali se tornar
esposa oficial do filho do sol e contribuir para a melhoria das relações
políticas entre os dois países. Depois de alguns dias de festa,
em que a recém-chegada era coberta de presentes e honrarias, esta desaparecia
atrás das grades do harém e os documentos históricos fazem
o silencio mais completo a respeito delas. Sabemos somente que uma tumba lhes
era reservada a oeste de Tebas e o que conhecemos da psicologia daquele tempo
nos permite crer que a estranheza dos ritos fúnebres egípcios
devia encher de inquietação e de angustia mística o coração
daquelas belas exiladas.
Evidentemente, a escolha das concubinas era determinada, em primeiro lugar,
pelos encantos femininos, sem que a nobreza de sua origem fosse tomada de maneira
alguma em consideração. O faraó tinha por costume manifestar
a particular estima que mereciam certos personagens da corte, oferecendo-lhes
esta ou aquela beldade do seu harém pessoal. Não sabemos quanto
tempo as pensionistas do harém viviam a cargo do soberano. É,
entretanto certo que várias dentre elas, cujos nomes conhecemos, passaram,
após a morte do seu senhor, para o harém de seu sucessor e ali
ocuparam um cargo de destaque.
Ruana viera da Pérsia para encher de beleza e magia o castelo de Ramses
III e ele, tendo na conta de um dos mais fiéis conselheiros o garboso
Ahamed, fez questão de ambos aproximar. Agora, com 25 anos bem distribuídos,
em beleza física e inteligência, Ahamed exercia no palácio
as funções de escriba e gozava de grande respeito e admiração
perante a nobreza. O passado de miséria ficara no esquecimento. O felá
esfomeado e vagabundo, o ladrão de feiras emagrecido era apenas um a
mais dentro da maioria esmagadora que era a população do Egito,
a classe dos dominados. Mas quis o destino que uma sentença de morte
fosse interrompida e lhe trouxesse uma grande oportunidade. Amou-o Bartira pela
constatação dos fatos que só fizeram comprovar a grande
fé que nele depositava. Amou-o por vê-lo escravo durante o dia
e seu servo favorito em todas as outras horas, estudante fervoroso, amante das
letras; tanto ou mais que as curvas do seu belo corpo. Devia a ela, sem dúvida
alguma, a sorte que conquistara, devia-lhe, mais que isto, a vida.
Passou a valorizá-la ainda mais, depois da morte de Abdul. Temia então
pela amada. A posteridade dos soberanos do vale do Nilo foi geralmente numerosa,
o que tornava particularmente espinhosos os problemas que a sucessão
deles suscitava. Inúmeros papiros fazem alusões a interrogatórios,
a julgamentos secretos, a execuções sumárias e outros ajustes
de conta, em ligação com a morte de um príncipe reinante.
Desde os tempos mais antigos, certos domínios da coroa eram destinados
à manutenção dos numerosos príncipes de sangue.
Mas estes últimos eram obrigados, ao mesmo tempo, a assumir funções
muitas vezes pesadas na administração, nos cultos e no exército.
Foi o que sucedeu com Bartira. Com a morte de Abdul, ela, passando para o harém
de Ramses III, ocupou ali várias posições de destaque,
mas não se sentia satisfeita. O poder da soberania anterior era-lhe muito
maior e cheio de liberdade, o que agora não ocorria. Achava que Ahamed
a traía com as demais concubinas. Com a morte de Ramses III por envenenamento,
Bartira perdeu parte de suas regalias, que já não eram muitas.
Foi a julgamento, conseguindo se livrar de uma condenação. Mas
teve que abandonar o palácio e ir para os cultos como serva de Amon Rá.
Os dotes de Ruana juntaram-se aos de Ahamed e a paixão não se
fez esperar. A ela não faltavam o luxo nem o conforto. Poderia sentir-se
satisfeita com o estilo material de vida que a preenchia por fora, mas o vazio
da solidão permanecia. Sentia-se usada, vivia num mundo que não
era o seu. Nobres, guerreiros e sacerdotes faziam parte do seu dia a dia. O
amor de Ahamed era notório. Sentia-o nos olhos do escriba ao cruzar com
ele nos corredores do palácio, quando não o captava disfarçado
num sorriso que ele fingia não ser para ela, mas para Ramses ou outra
concubina nas festas coletivas. Usara da influência do faraó, soubera
como nenhuma outra tirar vantagem dos momentos de orgia em que o soberano era
mais seu do que de outras concorrentes. Foi fácil, num momento de fraqueza,
incutir nele a ideia de lhe facilitar Ahamed.
A princípio, todos os que estiveram no palácio, ou que por lá
passaram, eram culpados pelo assassinato do rei. A influência de Ahamed
conseguiu tirar Ruana de uma possível condenação. Salvou-a.
O amor fê-lo por si. O amor que já não sentia por Bartira.
A mesma que um dia livrara-o da morte certa, perdera-o para uma escrava; quão
revoltoso não devia estar o seu coração. Só mesmo
os deuses para consolá-lo e ela vivia no meio deles, agora. Tanto a eles
se dedicou que conquistou os sacerdotes do templo.
Passaram-se meses, a sucessão efetivou-se e, quando isto acontece, só
não mudam de lugar as paredes do templo. Um papiro em forma de mensagem
destitui de suas funções Ahamed que, rebaixado, não suporta
a humilhação e decide abandonar tudo.
- Não sofra por mim, eu te peço. Preciso aceitar meu destino.
Você é linda e inteligente, não posso aceitar que se arrisque
ao meu lado. Não fuja. Permaneça aqui e enfrente tudo; no final
estaremos unidos e nos amaremos para sempre. Confie em mim, meu amor.
- Por favor, não me peça tal coisa - disse soluçando Ruana.
As lágrimas de dor e angústia banharam os contornos rosados de
suas faces. Os olhos verdes e expressivos fitavam Ahamed, como a lhe suplicar
que a não deixasse.- Prefiro a morte. Não suportaria continuar
nesta vida sabendo que não mais o teria a meu lado. Vivi e tenho vivido
envolta no paraíso. Quase esqueço que sou uma concubina que divide
com outras as horas de alegria e descanso de um Ramses. Sou diferente delas
porque tenho a ti, meu amor, meu guardião, minha fortaleza.
Mas, por maiores que fossem as promessas e por mais torturante a decisão
que precisava tomar, Ahamed não titubeou. Ao dar o beijo de despedida
em sua amada, foram de seus olhos as lágrimas que desta vez rolaram.
O abraço apertado, o rosto oculto no choro e o vestido branco de linho
umedecido irão se perpetuar na mente de Ahamed com a mesma força
que já se perpetuara o amor de Ruana em seu coração. Naquela
manhã calorosa partiu ele a cavalo para sua nova vida.
Bartira, a grande causadora do renascimento de Ahamed, como de sua queda, de
promoção em promoção dentro do templo, tornou-se
sacerdote, conquistando em todo o Egito respeito, admiração e,
inevitavelmente, medo, posto ter sido ela no passado alvo de iguais sentimentos.
E, agora, depois do faraó, a mais rica e influente personalidade tinha
muito em suas mãos. Ahamed enfrentou anos de penúria vagueando
no deserto, sacando de sua grande sabedoria a força e a coragem, sustentado
pelo amor de Ruana. Os ricos e abençoados oásis foram seu lar
e sua oficina; e a experiência, a convivência entre beduínos
transformaram-no mais uma vez. Tornou-se próspero na compra, venda e
criação de camelos. À sua tenda, bela e confortável,
vinham mercadores dos quatro cantos da África. Com exceção
de Ruana, Tebas, o palácio do faraó, as pirâmides, em fim,
o Egito, passaram a ser, não só para ele, mas para todos da longínqua
região onde agora vivia, não mais que uma referência comercial
e bastante lucrativa. E foi graças a isso e a sua fama, e não
menos à sábia mão do destino, que Ruana passou a ser sua
novamente, trazida a camelo e com muita pompa.
Pelo poder da riqueza e da grande influência sobre a sociedade daquela
época, eram os sacerdotes temidos e respeitados. Nem mesmo a força
de um faraó era capaz, em certos casos, de sobrepujá-los. Tinham
em mãos a fé cega de um povo submisso e ignorante. Sob o reinado
de Ramses III, e mesmo depois, a riqueza do clero de Amon aumentou em grandes
proporções. Os celeiros clericais regurgitavam de trigo. Um exército
de 107.000 escravos servia os padres de Amon. E, admitindo que a cifra da população
tenha sido de cinco a seis milhões, um homem, dentre cinquenta e
sessenta egípcios, era escravo do clero. E mais, a sétima parte
das terras aráveis pertencia a Amon e a seu clero. Este era proprietário
de 169 cidades do Egito e da Síria, de uma frota de 88 navios, de 53
estaleiros navais e de 500.000 cabeças de gado.
De fato, eram os faraós rebaixados ao lugar de criados dos servidores
dos deuses. O poder e o prestígio reais decresciam à medida que
aumentava o poder do clero. Sendo assim, Ramses III sobreviveu por pouco tempo
à conspiração urdida contra ele e morreu em 1167 a.C. Sintomas
alarmantes: domínio clerical, conspiração e invasão
do país por estrangeiros eram os sinais precursores da ruína do
Egito.
Dentro deste clima de insatisfação e revolta vivia a população
do Egito. No palácio, Ruana amargava os maus tratos que sofria, instigados
pelos sentimentos de perda e frustração de Bartira. A vida sem
graça e sem sentido longe do amor de Ahamed tornava-se-lhe agora insuportável.
Descuidou-se da saúde e da beleza física. Tornou-se, nos dois
anos que agora os separavam, gorda e envelhecida. O período da transição
que sobreveio à morte de Ramses III foi o pior de sua vida palaciana.
As mordomias que ostentava deram lugar à tortura e a perseguição.
Bartira não se esqueceu da promessa de Ahamed de ser somente e para sempre
seu, por isso não perdeu a esperança de reviver o seu amor. A
influência que agora exercia no Egito atravessava fronteiras, afetando
todas as transações comerciais que fossem do seu interesse. De
maneira hábil e premeditada boicotou todas as relações
de negócio com a Síria, reduto de Ahamed e sua principal fonte
de riqueza. Isto o prejudicou imensamente. Dono de magnífico império
viu, em pouco tempo, cinco das oito cidades em que prosperava passar para as
mãos do clero egípcio. Perdeu com isto dois estaleiros, quatro
navios, centenas de cabeças de gado, entre outras riquezas. Ele sabia,
no entanto, que no fundo do coração de Bartira ardia, por trás
de toda sua pompa e ostentação, um tremendo vazio, o vazio do
amor. Portanto, foi até ela. Quem sabe não chegariam a um acordo?
A exuberante entrada de Luxor é o retrato da prosperidade do novo império
Egípcio. Ramses II dedicou sua longa vida a estes exageros arquitetônicos;
suas esfinges, como a querer eternizá-lo, nos recepcionam de forma imponente,
para não dizer assustadora. Ahamed estacionou ali numa manhã de
domingo em duas carruagens, trazendo consigo seis pessoas entre escravos e conselheiros.
Como parte da condição de recebê-lo e ouvir o que tinha
a dizer estava a aceitação dele em não ver nem perguntar
de Ruana.
- Vejo que está muito mais bonita. Parece que Amon tem derramado sobre
você as suas graças - disse Ahamed, sozinho com ela numa das salas
do templo.
- Você sabe que minha felicidade só seria completa se o tivesse
ao meu lado. Não sei o que viu em Ruana, uma simples escrava. Mostre
que é realmente aquele sábio Ahamed que eu ajudei a ser, ficando
comigo. Já provou isto ao deixar o palácio e tornar-se o homem
mais rico de toda a Síria. Pode ter tudo em suas mãos. A mulher
mais poderosa de todo o império egípcio, a deusa de Amon Ra, que
tem a seus pés reis e rainhas. Mas tudo isso não passa de quimera
se não tiver o que mais anseio na vida: o seu amor. Ahamed, case-se comigo
e terá de volta tudo o que lhe pertencia; será rico novamente.
Muito mais que isso, será o número um de toda a terra do Egito.
Ahamed a ouvia em silêncio. No fundo, o que sentia por Bartira não
passava agora de mágoa e compaixão. Estava de todo transformada;
só o poder agora a ela interessava. A transformação que
ele já pressentia de longa data, somente agora, ante seu olhar surpreso,
se evidenciava. Já contava, na verdade, com esta mudança. Mas
a expressão e o tom de voz de Bartira não deixavam dúvidas
do que o poder causou em sua alma de sórdido e repelente. Não
quis, todavia, demonstrar o que estava sentindo. Afinal, a sua felicidade também
dependia dela. Começou dizendo.
- Querida Bartira, meu peito não cabe de gratidão a tudo quanto
por mim fizeste. Não é então uma vida tesouro maior do
que todas as riquezas reunidas? Por mais que eu viva e por mais poderoso que
venha a me tornar, nunca me morrerão no peito os momentos por que passei
ao ver de perto o meu fim. Levarei para a eternidade a alegria de ter sido salvo
por ti. Mas, pelo poder de Amon, não me peças o impossível.
Não posso negar que um dia te amei mais do que tudo neste mundo. Porém,
quem resiste às flechas da paixão inexplicável, do amor
gêmeo, correspondido e compatível de sentimento, de carne e de
espírito? Ruana é o grande amor da minha vida. Por ela cheguei
onde estou superando todos os percalços deste mundo e resistindo à
falta do amor causada pela distância agonizante, mas não carente
de esperanças. Por Deus, permita que a veja e fale com ela.
Diante destas palavras de Ahamed, viu Bartira cair por terra todas as esperanças
que ainda restavam em seu coração. Sentiu, como mulher inteligente
que era, que nada o traria para junto de si. Que, mesmo que dele arrancasse
até o último do seu gado, não teria o seu coração,
posto que à outra de uma vez pertencia. Mas, apelou, mesmo assim, para
uma última tentativa.
- Então, é mesmo o que quer? - disse, não conseguindo esconder
a frustração. - Alegre-se, pois; terá Ruana de volta. -
Operou-se na fisionomia de Ahamed a mudança característica dos
apaixonados. - Mas, é meu dever preveni-lo. Ruana não é
mais aquela menina linda e cheia de vida que você deixou há mais
de cinco anos.
- O que ela tem, está doente? - perguntou assustado.
- Não, pode ficar tranquilo. Pelo menos, não fisicamente.
Mas está deprimida. Não demonstra muito amor pela vida e come
exageradamente. Não sei se irá reconhecê-lo de tão
gorda que está; quer mesmo vê-la ainda assim?
- Certamente que sim. Meu amor por Ruana é maior do que a perda de sua
beleza física; se é como diz.
- Verá com seus próprios olhos. Mas, não é só
isso. Existe mais um problema.
- Pelos céus! Não me torture. O que fizeram com a minha Ruana?
- Acalme-se. Não é sobre ela que vou falar agora, mas sobre os
seus bens que ficaram na Síria. Entra em vigor ainda este ano a lei de
execução penal de todos os envolvidos na more de Ramses III. Tanto
você quanto sua amada não poderão viver no Egito e nem retornar
a Síria. Seus bens serão confiscados até que sejam descobertos
e punidos os verdadeiros culpados. Caso isto não ocorra, eles passarão
ao poder do clero de Amon Ra. Contudo, Ahamed, pense bem. Eu tenho o poder de
mudar toda esta história. Apenas peço que fique comigo e tudo
será como antes.
- Não, Bartira. Perdoa-me, mas não posso. Que seja então
cumprida a lei e eu fique sem os meus bens. Conseguirei provar a minha inocência.
Enquanto isso seguirei trabalhando como tenho feito nos últimos anos,
agora com muito mais alegria, pois terei a meu lado a mulher que amo. - Dizendo
estas palavras, virou as costas e saiu, deixando Bartira envolta em lágrimas
de perda e de fracasso.
E assim termina a historia de Ahamed. Ele e Ruana encontraram-se naquela mesma
noite e pernoitaram no palácio, partindo sob escolta para a Turquia,
onde viveram exilados por sete anos. Tiveram três filhos neste período.
Unidos pelo amor, trabalharam e, pacientemente, esperaram. A mudança
de governo da Síria favoreceu o seu caso. Reconhecido o grande serviço
prestado àquela nação, foi aceito de volta e, ali, com
Ruana e as crianças, estabeleceu-se definitivamente e reconquistou quase
a totalidade de sua enorme riqueza.