A Garganta da Serpente
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O homem invisível

(Edgard Santos)

Ele não era. O sujeito pode não estar oculto aí na simplicidade deste período. Mas na realidade da ficção, se é que isto seja possível, o homem era tão invisível quanto o ar que respiramos, o qual, mesmo sem vê-lo, sabemos da sua existência. Muito mais fácil e lógico seria classificar ou alcunhar o que, dele, alguns privilegiados conseguiam captar. Uns, o som; outros, suas peças de roupa. Viam-se, então, a dona cueca, o senhor blusão ou a senhora calça, ou todos a um só tempo, vagueando nas sombras da noite, pulando um muro ou abrindo uma porta.

Era um ser humano como qualquer outro, afirmam os que confessaram tê-lo conhecido antes daquele marcante dia de tempestade que lhe lançou sobre o corpo um raio, fazendo-o desaparecer da vista da esposa. Atravessavam uma ruela entre muros altos que costeavam avenidas independentes de residências campestres. Os ramos enfolhados dos álamos em primavera os protegiam dos pingos da chuva fina e persistente da manhã. Ao atingirem o descampado e aberto o guarda-chuva, veio o estrondo. Ela não foi atingida mas o homem deixou de existir, ou melhor, seu corpo deixou de ser percebido. Se não houve velório e nem enterro, posto não ter havido o morto com o seu cadáver, concluiu-se daí que algo estranho tenha ocorrido e muito mais estaria para acorrer.

Ele pode não ter sido dado como morto mas a mulher, tida como viúva, passou a ser vista também como louca. Ver alguém a conversar com um fantasma era, no mínimo, engraçado. Pois era o que fazia Damiana com Cleber e até que o provasse concretamente, tinha que aguentar as gozações e os achaques. Quer isso dizer que, enquanto não se vissem o balouço de suas peças de vestuário ou uma ação de sua parte cumprindo uma ordem ou um mando, Cleber era visto, ou melhor, não era visto como nada ou como coisa alguma, o que vem a ser, ou não, a mesma coisa.

Passou-se a falar na cidade sobre o homem invisível. À princípio, o medo foi a sensação dominante. Não tinha a cidadezinha mais do que sete mil almas, todas precavidas contra o temível impostor. Era assim que o viam. A notícia invadiu a imprensa local com a mesma velocidade do inusitado raio; daí espalhou-se com igual ímpeto. Uma semana após a divulgação do fato, a pracinha principal do lugarejo foi invadida. Rádio, televisão e outros interessados em busca de testemunhos e reportagens. Nos espaços reservados ao tobogã, às gangorras e aos balanços, como na quadra de esportes, na grama e nos bancos de madeira, em vez de crianças a brincar e casais apaixonados, grassava a multidão e os comentários. Em meio ao cenário um velho, com seu chapéu coco e terno cinza amarrotado, falava ao jovem repórter cabeludo com rabo de cavalo e brinquinho na orelha.

- O Sr. pode nos contar o que viu? - perguntava o repórter.

- Como é que eu vou ver alguma coisa se o tipo é invisível, meu menino? - dizia o homem num motejo, a exibir a dentadura amarelada e bamboleante. - O que eu posso garantir é que o tipo é dos que enganam a própria sombra.

- O Sr. o conhece?

- Não é de hoje, moço, não é de hoje!

- Por que o acusa, já foi vítima alguma vez?

- Eu mesmo não, mas conheço a vida do sujeito.

O repórter agradeceu e o homem fez um gesto pondo a mão no chapéu e afastou-se. Uma jovem mãe, sentada em um dos bancos, meneava o carrinho cor de rosa e, dentro dele, seu lindo bebê, uma menina, deliciava-se com o ritmado vaivém e dormia alheia a tudo e a todos, mascando a chupeta branca. Ao lado, no banco, a repórter de famoso jornal de grande circulação, segurava um microfone bojudo ligado a um fio preto e comprido que vinha de dentro da Kombi branca estacionada no canto da rua.

- É verdade que você teve um caso amoroso com o homem invisível? - quis saber da mãe, enquanto puxava o fio que ameaçava enroscar-se à roda de uma carrocinha de pipocas.

- Sim, é verdade - disse a mãe, não muito simpática, segurando a ponta do xale que lhe cobria o peitilho de tule preto de algodão. - Não sei como souberam; por certo foi a megera da Damiana que passou essa informação. Enfim, não me importo, já faz cinco anos que estou casada e muito feliz. Em todo caso, não sei em que o meu relacionamento com ele pode ajudá-los no caso. O que vocês precisam investigar são as causas do acidente, isso sim. Não foi o raio? Já não viram as roupas mexendo-se sozinhas? Se acham que ele merece confiança, sigam adiante; não tenho mais nada a declarar - completou impaciente. A repórter desligou o pequeno gravador, entregando-o ao auxiliar. Este levou-o para o carro enquanto ela sacava do bolso de sua calça jeans azul clara um bloquinho de anotações com espirais de arame. Escreveu alguma coisa, olhou o relógio do pulso, escreveu novamente e despediu-se da entrevistada que fez um sim com a cabeça e prosseguiu indiferente a embalar a pequerrucha.

Escusado mencionar a notoriedade que alcançou a cidadezinha a pouco mais de uma semana do ocorrido. Após os depoimentos dados na praça, outros foram surgindo. E, na maioria esmagadora, o conceito do homem em questão pendia para o negativo. Então, precaveram-se todos. Os visitantes encontraram dificuldades para instalarem-se. Os hotéis e hospedarias redobraram os cuidados, as casas fecharam as portas e janelas e os maridos trancafiaram a sete chaves as suas esposas, os pais, as filhas e por aí vai. É que a fama de ladrão e sem vergonha, já conhecida e corroborada, disseminou-se de vez. A cidade compunha-se de diversas ruas curtas e paralelas, algumas asfaltadas e outras não. Duas outras vias de maior acesso passavam ao longe e serviam de escoamento. No entroncamento das duas estradas ficavam a delegacia, a prefeitura e, mais à frente, ao longo de um centro urbanizado, com hotéis, a rodoviária. Do outro lado, mais comércios e algumas casas que iam terminar ao sopé de um morro. Margeando a outra estrada, uma via férrea que, a uns duzentos metros, desaparecia nas faldas de uma montanha. No extremo oposto, seguindo-se por qualquer uma daquelas ruazinhas, jazia o cemitério cuja extensão pegava um pedaço do morro e subia por este. Algumas cruzes e mausoléus eram vistos a grandes distâncias; certos moradores tinham esta visão como sendo a primeira da manhã ao abrirem as janelas de suas casas. E tanto o fizeram que se acostumaram à paisagem.

Atravessando-se a linha férrea em sentido contrário ao do centro, tem-se o outro lado da cidade, um pouco mais ameno e sossegado. As residências são maiores e requintadas. É, na verdade, uma vila moderna para os mais abastados que queriam paz e privacidade, podendo pagar por isso. As ruas arborizadas serpenteavam entre as herdades, algumas com dois ou três pavimentos, e contornavam um parque com playground e chafariz. O comércio era mínimo e os moradores em seus carros luxuosos saíam e entravam na vila por uma estrada vicinal ligando-se por uma cancela à rota primordial.

Cleber e Damiana moravam neste local privilegiado. A vida pregressa do moço, destrinçada por quase todos que, há anos, o conheciam, escandalizou a mulher. Juntos há pouco tempo, ela desconhecia-lhe o passado. A casa abrigou-os, após o casamento, para a lua de mel e moradia. Cleber fez questão de guiar, ele próprio, a limusine vermelha que alugara. Retornando da cerimônia religiosa em que participaram uns poucos amigos do casal, parou, às nove e meia, junto ao portão de grades automático, abriu-o sem sair do carro e, na garagem, desceu dando a volta pela frente do automóvel. Pegou no colo a noiva. Damiana enroscou-se-lhe ao pescoço com os dois braços e o buquê vermelho de rosas bem preso na mão direita. Ele beijou-a e assim entraram. A cauda do vestido branco arrastando-se no chão da varanda, Cleber descansou um pé no assento de uma cadeira enquanto tirava do bolso as chaves para uma nova vida.

O casal não tinha filhos. Damiana, na flor dos vinte e três anos, frequentava uma academia que ficava num mini Shopping Center ao lado da rodoviária. Seu corpo jovem, quase magro e elegante, estava totalmente em forma para todos os olhares que a admiravam e, principalmente para o marido que a amava. Mas teve que perder a gordurinha localizada na cintura e endurecer o bumbum. Religiosamente, todos os sábados pela manhã, acompanhava-a no passeio que fazia a pé para também exercitar-se. Foi num desses retornos que aconteceu o incidente. Cleber esperava por ela quase na saída do Shopping, sentado a uma mesa de lanchonete. Folheava uma revista que acabara de comprar na banca em frente; sobre a mesa uma garrafa e um copo em feitio de tulipa com mais espuma do que cerveja. A morena desceu os degraus da escadaria e, do patamar, jogou um beijo quando ele se virou para olhar. Ainda trajava calça de nylon azul escuro colada ao corpo e um mocassim branco nos pés. A blusa de malha tinha marcas de suor recente da ginástica. Ele fez um sinal de OK e ela voltou para onde estava. Em menos de dez minutos já estava em seus braços de banho tomado, roupa trocada e cheirosa.

A chegada à casa foi diferente e insólita. Damiana tinha que disfarçar ao dirigir-se a ele na rua. As roupas que Cleber usava no momento do choque também sumiram inexplicavelmente, portanto o único sinal, em princípio, era a sua voz. Não havia viva alma no local. Eles tinham acabado de atravessar a estrada e o beco entre as casas para seguir em direção à estrada de ferro. A chuvinha fria incomodava e o guarda-chuva voou pelos ares. Damiana viu-se desesperada. - Meu Deus! Amor, onde está você? Cleber!!! - gritou atônita.

- Hei! Estou aqui do seu lado, não está me vendo? - ele abraçou-a; a mulher tremeu da cabeça aos pés.

- Acalme-se, está tudo bem. Onde está o guarda-chuva? Vamos para casa.

- Amor, o que está acontecendo? Onde você está? Eu sinto você mas não o vejo.

- O que!? Olhe aqui minha mão; esta vendo? Vê a minha mão?

- Não; eu não vejo sua mão, nem seu rosto, nem seu corpo. Eu não vejo você.

- Você está cega! Você quer dizer que ficou cega?

- Não! Você não está entendendo, amor, eu vejo tudo muito bem. Só não vejo é … você … não vejo você.

- O que!? Quer dizer que eu morri!… já não pertenço a este mundo? E eu que nunca acreditei nessas coisas.

- Mas eu sinto você; acho que não morreu. - Cleber segurou-lhe no braço.

- Sente minha mão? - perguntou.

- Claro! Perfeitamente.

- Tem certeza que não é a mão de outro homem? - brincou.

- Cleber?

- Oi!

- Não está usando um dos seus truques engraçadinhos?

- Juro que não; também não sou tão bom assim. Acho que está é querendo se vingar das minhas brincadeiras.

- Estou com medo - disse Damiana com a expressão contraída. Cleber viu que ela não brincava. Abraçou-a mais uma vez, acalmando-a.

- Vamos para casa; estou ensopado.

Passaram o resto do dia entre ações e experimentos, buscando um meio qualquer de reverter aquele quadro. Como não conseguissem, tiveram que se adaptar, principalmente Damiana que não estava acostumada a conviver com uma pessoa invisível. Ver copos, garrafas, livros e toalhas passeando pela casa, portas e janelas abrindo-se e fechando-se sozinhas e ouvir o som de uma voz sem saber ao certo a direção, era, no mínimo, inusitado para ela, quando não, hilariante. Fizeram o teste das roupas e constataram, dentro do óbvio, uma assustadora realidade. Cleber tinha que andar nu para não ser percebido ou conviver em ambiente cuja familiaridade o protegesse contra possíveis situações constrangedoras e de risco. Deduz-se logo que, a depender das circunstâncias, isto seria impraticável.

Esperaram três dias, no quarto saíram às ruas. O céu enfarruscado do fim de semana havia dado lugar a uma manhã limpa e agradável. Entraram no automóvel, um Alfa Romeo prateado, com Damiana ao volante. Para precaverem-se contra um eventual contratempo, tinham, no banco traseiro do carro, uma vestimenta completa para Cleber, composta de camisa esporte enxadrezada, calça de brim e sapatos com meias e uma cueca branca. Desceram a rua de paralelepípedos, contornaram a pracinha e, a estátua branca do chafariz, a botar água pelas ventas, parecia entender a situação de Cleber e zombar dela. Seguiram pela rua preferencial e Damiana, extremamente acautelada, premia a buzina ao aproximar-se de cada cruzamento. Chegaram em frente à cancela e tiveram que esperar pacientemente a passagem de um trem de carga com seus intermináveis vagões atulhados de carvão mineral a granel que desfilavam indiferentes ante os veículos que já começavam a se fazerem numerosos; passaram finalmente. Alcançaram a via de alto acesso, pegando o sinal ainda verde e atravessaram-na dobrando então a primeira à esquerda e Damiana estacionou ao final de uma fila de táxis amarelos a espera de passageiros e suas bagagens. Um menino magricela, de chinelos azuis e camiseta branca, quase escondendo uma surrada bermuda jeans, aproximou-se com uma caixinha contendo amendoins e chicletes. Ela adquiriu alguns e o guri, sorridente, embolsou logo as moedas. Distraída, Damiana ofereceu o amendoim ao marido que o pegou também sem cuidados. Foi o suficiente para o moleque arregalar os olhinhos encantados ao ver o saquinho flutuante e solitário. Cleber, entretanto, atinou com a gafe e desceu a mão insistente para o assento do carro e fez desaparecer da vista do atordoado garoto o enigma.

A mulher pegou as peças de roupa, dobrou-as com cuidado e meteu-as numa bolsa grande de couro marrom com zíper. Daí, saíram a pé para uma insólita caminhada. Foram horas de apreensão e muitas vezes mal estar, ao fim das quais Damiana viu-se completamente estressada. As situações que precisou enfrentar, os disfarces e as constrições acabaram por afetar-lhe o humor ao fim do dia. - não sei o que vai ser de nós. Você viu que maçada? - disse, atirando-se no sofá escarlate de sua confortável sala de estar. Os pés, ajudando-se mutuamente, livraram-se das sandálias de tiras douradas e ela descansou as pernas sobre um dos braços do estofado e a cabeça e as mãos sobre o outro. Na poltrona em frente, um copo comprido com conhaque e gelo subia e descia.

- Não foi engraçado aquela cena na porta da academia? Sua amiga loirinha deve ter achado que você perdeu o juízo quando olhou para o lado e falou com a parede. E o pior é que eu nem estava ali.

- Aonde você tinha ido?

- Você não se lembra, paixão? Desci para ir ao banheiro, até dei um beijinho com estalido em sua boquinha… invisível, é claro.

- A coisa não é para brincadeiras. Foram tantos os momentos de tensão que tive que contornar. Tenho quase a certeza de que não consegui enganar muita gente. Imagino o que devem ter pensado de minhas estripulia aqueles que as perceberam. Devem ter-me tomado como maga ou, pior, como doida varrida.

Cleber, ou melhor, o seu espectro, levantou-se e, acocorando-se junto à esposa com o copo agora pairando entre as pernas, beijou-a e ela sentiu-lhe os lábios úmidos e um leve aroma da bebida ao retribuir-lhe o gesto com afagoso toque de mão entre os cabelos da nuca.

- Você está cansada. Vamos esquecer o que passamos hoje e pensar só em nós dois. Não vejo a hora de tomar aquele banho gostoso com você que sabe, como ninguém, esfregar umas costas; depois do amor e relaxados vamos nos sentir muito melhores, posso garantir. Aliás, você ficou ainda mais bela depois que arruivou os cabelos; parece que combinam mais com o castanho dos seus olhos. Na verdade você está linda de tudo - completou, beliscando de leve uma das bochechas da esposa.

- Pena que não possa dizer o mesmo de você - Damiana brincou, conseguindo relaxar um pouco. Sem dizer palavras, levantou-se e caminhou lenta e provocadoramente o corredor em direção à porta do banheiro. Enquanto o fazia, despia-se das peças que usava. Desvencilhou-se do corpete lilás e Cleber viu, do sofá onde se sentara, quando ela levou as mãos às costas e desabotoou o soutien de cor preta deixando à mostra todo um contorno de formas perfeitas e bem tratadas. A pele morena clara de Damiana, curtida pelas manhãs de sol do seu amplo terraço e pelo benefício da ginástica, fazia a preferência dele e acendia-lhe o desejo que tinha por ela. Quando se virou para entrar no banheiro, o bico firme do seio rosado mostrou-se a sua visão já deslumbrada.

Damiana, já no boxe e como veio ao mundo, gozava agora as delícias da água espumosa que cobria, por completo, o seu corpo dentro da banheira comprida e azulada. Sobre a cabeça, uma touca alaranjada protegia-lhe os cabelos recentemente reflexos. Percebeu o borbulhar do líquido, no momento em que Cleber entrou e juntou-se a ela no banho, e sentiu o contato de um corpo másculo a lhe fazer carícias. Banharam-se e fizeram amor tendo, como testemunhas, os últimos raios do sol, coando-se, furtivo, por entre as vidraças do ambiente. O auge do prazer chegou para Damiana entremeado de alguns soluços de aflição que ela tentou ocultar do marido mas sem sucesso. Ele percebeu e procurou confortá-la enumerando-lhe as vantagens que poderiam tirar do dilema.

De fato, os comentários que correram na cidade, logo após a divulgação da ocorrência que o tornara invisível, davam conta de um Cleber não muito bem conceituado na sociedade local. É certo que, sendo o lugar muito pequeno, qualquer ação inadvertida tornava-se grande demais. Ele aproximava-se dos trinta anos e, até conhecer Damiana, não podia ver rabo de saia. Além de muito pouco gostar de trabalho. O amor dela transformou-o, ou assim dava mostras. Quando não viajava pelas estradas do país a transporta em seu caminhão baú inúmeros equipamentos de informática: microcomputadores e eletrônicos para a empresa na qual trabalhava, passava em casa a maior parte do tempo e com a esposa. Ela retribuía este amor com afeição e respeito embora não muito convicta da fidelidade dele. O trabalho obrigava-o por vezes a permanecer dias longe de casa, dormindo e comendo em hotéis e pensões à beira da estrada, sem contar com a influência, às vezes negativa, dos companheiros de trabalho, outros caminhoneiros, na profissão por causa do lado liberal e desregrado.

As vantagens as quais se referia Cleber diziam respeito a uma espécie de retorno suave ao tipo de vida que tinha antes - não em relação ao seu comportamento com as mulheres porquanto agora estava amando de verdade - e precisou ser deveras sutil ao mencionar isto a ela. Damiana, é óbvio, não gostou nada da ideia; ficou, na verdade, visivelmente chateada. Levantou-se sem dizer palavras e, ao gesto de por o pé para fora da espuma, sentiu o leve toque da mão de Cleber segurando-lhe o tornozelo que pisava o mármore da banheira. - Me dá licença um pouquinho, preciso de uma ducha fria. - Saiu e ao fundo do boxe, no espaço entre a banheira e a parede azulejada, abriu um forte jato, inundando da cabeça aos pés o belo corpo, fazendo coar pelo ralo os últimos vestígios de espuma. - Posso saber o que pretende? - perguntou secamente, fechando a torneira do chuveiro.

- Nada demais. Damiana viu a toalha vermelha sair da coluneta esmaltada presa à parede a sua frente e vir em sua direção. Sentiu o tecido lanoso e macio quando o segurou. O chuveiro abriu-se novamente e a água voltou a jorrar. - só quero que compreenda, a maré está a nosso favor.

- A seu favor, tenho certeza de que está. - terminou de secar-se, recolocou no lugar a toalha e falou da porta, exibindo de lado, o corpo exuberante ao marido que nunca cansava de apreciá-lo. - Quanto a mim, faço sexo com alguém que sequer consigo enxergar. O prazer que você está tendo nesse momento me está sendo negado e eu não sei por quanto tempo vou conseguir suportar isso.

- Vamos achar um jeito; confie em mim. - A toalha começou a se mexer novamente. - Enquanto não aparece a solução, teremos que conviver com o problema; não há outra saída. Agora vem cá, - disse com ternura. - dá mais uma esfregadinha nas minhas costas, acho que ainda tem uma sujeirinha. - Damiana não viu muita graça na brincadeira desta vez.

- Sinto muito, estou com dor de cabeça - e saiu para o quarto. Naquela noite traçaram planos e estratégias para uma adaptação e enfrentamento dos possíveis obstáculos. Preparada para dormir dentro da camisola preta e sedutora e abraçada na cama a um pijama que protegia Cleber contra a baixa temperatura que vinha fazendo Damiana, debaixo de um lençol amarelo até a cintura, ouvia com atenção e preocupada, as explicações dele. Como primeira medida, e para evitar situações delicadas, não poderiam sair juntos, ao menos por ora. Damiana olhava o teto enquanto se punha pensativa. Ele percebeu e, a cada mudança de fisionomia que nela percebia, procurava encorajá-la. Não foi fácil para a moça aceitar tais alterações. Tão drásticas e inesperadas. Só ao final de uma semana, quando as notícias diminuíram e se arrefeceram os comentários, Cleber se arriscou a uma saída.

As primeiras incursões pelas redondezas não representaram problemas. Gastou quase uma inteira manhã em caminhadas sem arriscar-se a ousadias. No dia seguinte, uma terça-feira, acatou uma sugestão de Damiana de apenas dar-lhe uma carona até onde desejasse e pegá-lo mais tarde. Sendo assim, foram até a praça principal. Ela desceu do automóvel, deu a volta pela frente e abriu a outra porta. Disfarçadamente, fingiu que tirava algo do porta-luvas, dando chance a que ele desembarcasse sem problemas. Enquanto o fazia, ela, sentindo-lhe o hálito e o resvalo do corpo, ciciou-lhe o horário do reencontro. Em seguida, sentou-se novamente ao volante e, contornando a praça, pegou a mesma via. A uns cem metros à frente fez uma manobra e voltou pelo outro canto da pista. Passou novamente em frente à praça e entrou à direita em direção ao Shopping Center. Cleber acompanhou, parado ao meio-fio, toda a operação e, quando ela passou de volta ele, esquecendo-se por momentos de sua invisibilidade, acenou-lhe com um beijo. Recolheu a mão, lamentando a gafe mas satisfeito por ninguém ter atinado com ela. Contudo, serviu-lhe como advertência; precisava acautelar-se dali em diante.

Por dentro, uma sensação agradável dizia-lhe que o melhor estava para acontecer. Antevendo o prazer da liberdade que ia além do ir e vir, gastava o passeio apreciando sem pudor os rostos, os corpos e os saracoteios de sua preferência. Atravessou pela faixa debaixo do sinal luminoso e seguiu pelo canto da calçada em direção oposta à rodoviária. Tomando cuidado com os encontrões, desviava-se de tudo e de todos mas nem sempre isso era possível. Um gordo, saindo apressado do restaurante, deu com o braço curto e excessivamente peludo em seu ombro, ao sinalizar para um táxi que vinha passando. O motorista não parou e o homem, frustrado, com as mãos na cintura, ao lado da banca de jornal, exibia a barriga enorme e oblonga e olhava de vez em quando para trás, enigmático e curioso.

O grande problema para Cleber era não poder em nada segurar, com ninguém falar e nem exercer outras singularidades. Sentiu vontade de fazer xixi. Percebeu, passando em frente a uma choperia, uma porta entreaberta ao fundo do balcão; era um banheiro masculino. Entrou espremido rente aos bancos altos ocupados por animada gárrula de bebedores. Uns, debruçavam-se sobre o mármore gelado, a ouvir a prosa do companheiro de copo. De vez em quando um chope espumante vinha, trazido pela mão hábil do balconista de branco, com um pano meio sujo sobre os ombros, juntar-se às porções de queijos e linguiças cheios de palitos espetados. Cleber esvaziou-se e, por pouco, um garoto loirinho, de uns quinze, anos não flagra o esguicho da urina saindo do nada. Para não esbarrar no menino, esgueirou-se, cosendo-se à porta que bateu de leve, causando um movimento e um som, por sorte, não percebidos.

Na saída, um desejo irresistível. Viu os corpos suados pela bebida predileta e sentiu vontade de pedir o seu; mas como fazer? Teve uma ideia. Deu a volta, esperou que um magricela sem camisa e já um tanto borracho desobstruísse a passagem e ganhou o lado de dentro do balcão. O balconista, empanado no ombro, estava do lado de fora, entre as mesas da calçada, servindo a um casal que acabara de chegar numa moto vermelha e preta. Lá dentro, o patrão do rapaz, com sotaque espanhol, monopolizava a caixa registradora e a máquina de chope atrás dele, copiosa e abandonada, pingava pela torneirinha o néctar dos deuses; a visão umedeceu os lábios invisíveis de Cleber. O homem afastou-se um pouco a fim de atender a um cliente bem vestido com camisa branca e gravata, a procura de certa marca de cigarro. Enquanto pesquisava o mostruário e vasculhava embaixo do balcão atrás da mercadoria, a gaveta aberta e deleitante transbordava de notas e provocava o rapaz, como a lhe instar uma ação rápida e inconsequente, mas ele disse não ao seu instinto. Por outro lado, percebeu a inviabilidade do ato. Por um momento, imaginou um maço de dinheiro a correr de curiosos ávidos e policiais perplexos. Mas, um chopinho… apenas um, bebido à espreita, não faria mal a ninguém. Aproveitou-se das costas do espanhol, sacou de uma toalha amarela no espaldar de uma cadeira e cobriu a máquina. Por sorte, nenhum dos fregueses percebera este lance rápido, com exceção de uma criança moreninha e rechonchuda, bebendo guaraná ao lado da mãe, de lenço na cabeça. - Mamãe, a senhora viu a toalha andando sozinha? - A mulher largou o copo em cima do balcão para dar um tapinha de leve no ombro da menina.

- Larga de falar bobagem, o troço! Onde já se viu? Acaso tem alguém invisível aqui? - Elas não eram da cidade.

- Se tem eu não tô vendo - Zombou a pequenina.

A mão invisível de Cleber agarrou por trás da toalha, o copo, agora também invisível, e o encheu. Agachou-se ali mesmo e mandou a bebida; gostou. Quis repetir a dose. Porém, no meio do enchimento, eis que lá vem o garçom, secando as mãos no pano escurecido. Lançou-o sobre o ombro, pediu licença ao magricela e foi à prateleira, de onde pegou um copo. Quando viu a toalha, estranhou.

- Foi o senhor quem colocou isto aqui?

- É claro que não; para que? - Disse o espanhol, já em cima do dinheiro.

- Cleber encolheu-se todo onde estava, na espera de uma brecha para escapulir por onde entrara. O empregado arregalou os olhos, meio que descrente de sua lucidez. Por instantes, achou que merecesse umas férias pelo excesso de trabalho. Como só lhe restasse o trabalho para consolo, puxou a toalha, o que fez vir ao chão o copo. Antes de estatelar-se, porém, pairou por instantes sobre o colo invisível de Cleber que, rapidamente, lançou-o ao chão para que completasse a sua trajetória, cumprindo, a rigor, a lei da física. O rapazola ficou apalermado e, para desviar-se de um caco que ressaltou e o já ia atingindo, deu um passo para trás, caindo, imaginem, por cima do invisível Cleber. O espanhol, estupefato, com o alvoroço do outro, desconcentrou-se do que vinha fazendo e também sentiu a incoerência dos movimentos. O barulho chamara a atenção de alguns fregueses. Estes, e depois, todos, viram quando o funcionário largou tudo e, achegando-se ao balcão, desabafou: - O homem invisível! Ele está aqui! Ele está aqui! Dentro do balcão! - O espanhol fez o que lhe competia: agarrou-se a sua gaveta preciosa e esqueceu o resto, vendo, ou não vendo, no que ia dar a balbúrdia.

A reação assustada e instintiva do comerciante e o choque do empregado impediram-lhes de fazer o que deviam. Como torna-se difícil agarrar o que não se vê, perderam o invasor. Cleber viu que, além do magricela alcoólatra, outros impediam a passagem. O que fez, sem pensar e sem dificuldades, foi saltar o mais veloz e preciso que conseguiu, por sobre o balcão, sem deixar de derrubar açucareiros, xícaras, esbarrar em clientes e, para piorar e incriminá-lo, quebrar carradas de copos, um espelho e machucar uma senhora idosa, muito maquiada, de batom vermelho e sapato preto de salto alto, que interpôs-se em seu caminho ao penetrar no recinto naquele momento; foi levada ao chão, caindo sentada. Até ser socorrida, viu-se praguejando e bracejando, esquecendo a vaidade.

Ao olhar para trás, já afastado, viu Cleber a aproximação de uma viatura policial, um furgão azul marinho tarjado de branco e novo em folha. Desceram dois homens, uniformizados, mais barrigudos do que fortes, e entraram no estabelecimento. Não esperou para ver o que acontecia. Quando a multidão de curiosos invadiu a calçada, tapando-lhe a visão, ele virou-se e seguiu em frente. Cansado e faminto, lembrou-se de Damiana. Continuou caminhando e, ao passar em frente a uma barbearia, olhou para o relógio ao fundo, no alto da parede. Três horas e cinco minutos, ela já devia estar esperando por ele. Porém, ao ver um freguês recostado à cadeira, com a cabeça caída para trás e gozando as volúpias do pincel que encharcava-lhe de espuma o rosto, sentiu inveja e saudade. Deu vontade de entrar e pedir ao seu Manoel, o bigodudo português, sempre tão simpático, que lhe fizesse também a sua. Aproveitariam para colocar em dia as fofocas e discutirem as últimas notícias do bairro e da cidade. Entrou. Mas, além de lhe faltar coragem e disposição para enfrentar outra corriola, o momento não era propício. Parou ao lado da cadeira e olhou o espelho, realmente não havia reflexo; chegou a duvidar da própria existência.

Esperando o sinal verde para atravessar, viu de longe o seu carro parado ao estacionamento da praça; não viu Damiana. O movimento da tarde aumentava e Cleber, já do outro lado, encostado ao automóvel, de braços cruzados, olhava as mulheres que passavam por ele. Algumas tão próximas que o perfume inebriava-o. Nesse momento, viu que a esposa, saindo de uma farmácia, cruzou a faixa em sua direção. Ao abrir a porta do veículo, um beijo furtivo assustou-a.

- Cleber? - perguntou, estendendo o braço disfarçadamente.

- E quem mais queria que fosse, o meu fantasma? - brincou dando-lhe um outro beijo, agora nos lábios.

Neste momento, um carro se aproximou fazendo cantar os pneus e parou junto ao meio-fio; era o furgão da polícia. Os dois homens corpulentos apearam-se e Damiana percebeu que vinham em sua direção. Ela abriu a boca para falar com o marido alguma coisa mas desistiu com receio e desconfiança de que algo havia acontecido. Cleber ainda teve tempo para confessar e alertá-la: - Acho que me meti numa enrascada. Aja naturalmente e, não se esqueça: não pode me dirigir a palavra; estarei ouvindo a conversa.

- Boa tarde! - disse um dos policiais. Ela estava em pé, segurando a porta aberta, pronta para sentar-se ao volante. - Sabemos que é a esposa do Sr. Cleber; poderia prestar-nos algumas declarações?

- Com prazer, o que desejam saber? - O homem relatou a ocorrência e exigiu a presença do envolvido no dia seguinte, pela manhã, na delegacia, a fim de prestar depoimento. Cleber achou tudo muito engraçado e chegou a dar uma risadinha silenciosa mas logo ficou sério com a frase seguinte do homem da lei.

- Estaremos esperando às dez horas. Contamos com a colaboração. Avisamos que, se ele não comparecer, ou se tentarem algum truque, seremos forçados a detê-la como cúmplice. - Dizendo isto, despediu-se, virando as costas. Entrou na viatura, sentou-se ao lado do outro já no volante e, com o motor ligado, ajeitou a arma da cintura para poder melhor acomodar-se. Mal bateu a porta, o carro disparou mais uma vez cantando os pneumáticos.

- Posso saber o que o mocinho andou aprontando desta vez? - disse Damiana já ao volante e com o veículo em trânsito. Teve que ser duplamente cautelosa ao fazer com que Cleber embarcasse, dado a aglomeração ávida e ressabiada que espreitava-lhes os movimentos. Em cidades pequenas as notícias correm rápido. Com certeza, no dia seguinte, os jornais estampariam, em suas primeiras páginas, notícias e fotos das confusões do homem invisível. Saindo do alcance das vistas curiosas que testemunharam o contratempo, alcançou a cancela e parou para aguardar a passagem de uma composição. - Não se faça de engraçadinho, sei que está aí atrás. - Como ele não respondesse, ela se virou e, óbvio, não viu nada. A barreira amarela ergueu-se à sua frente. Ela atravessou e, mais adiante, parou sobre uma calçada, rente a um paredão argamassado e sem brilho que escondia uma olaria desativada. - Cleber! Cleber! - chamou, ajoelhada em seu banco e errando no ar os braços, a ver se o tocava. Uma menina, adolescente, sobre uma bicicleta, grande demais para ela, passou ao lado do carro, beirando a rua, tão preocupada em manter o equilíbrio que mostrou-se indiferente à esquisitice de Damiana. Esta, ajeitou-se novamente à direção e ligou o motor. Ia retornar ao local para pegá-lo de verdade. Antes, porém, de atrelar a primeira marcha, sentiu duas mãos tapando-lhe os olhos e lábios invisíveis beijar-lhe uma das faces.

O susto não foi maior do que sua zanga. - Puxa! Isto não se faz, amor - disse, sacando-lhe as mãos. Cleber desculpou-se com ternura.

- Foi só uma brincadeira para afastar a tensão, diga que estou perdoado, vai, estou perdoado? Olha como estou triste. - ela olhou para trás e, ao compreender que era mais uma de suas brincadeiras, aceitou o pedido de desculpas que veio com outro beijo.

- Agora, fala sério - disse, saindo com o carro - conte-me o que aconteceu. Você ouviu o policial; estou ficando preocupada.

- Fique tranquila e deixe tudo por minha conta.

- O que vai fazer?

- Simplesmente ir à delegacia e ser interrogado. Não cometi nenhum crime.

- Causou uma arruaça e a cidade está em polvorosa.

Com efeito, no dia seguinte, as incursões pela região do temido homem invisível e suas consequências já eram assunto de destaque em cada esquina e das manchetes de todos os noticiários. As estações de TV deram prioridade em suas programações a especiais de esclarecimento e alerta a seus telespectadores. O público feminino recebeu atenção especial e a polícia redobrou o seu contingente em bancos, escolas, fábricas e outros locais de investidas de réprobos e falsários. Cleber, de sua poltrona escarlate, a tudo assistia fria e zombeteiramente. Damiana, do sofá à sua frente, passava no cabelo, ainda molhado do banho matinal, um pente de plástico cor-de-rosa, agarrando com força o seu comprido cabo. A água, respingona, acumulava-se-lhe nas costas, sobre o roupão adamascado, deixando um vestígio úmido que aos poucos ia crescendo e alargando-se. Uma caneca, com asa de metal, ainda com um resto de café, pousou na mesinha com tampa de vidro à sua frente. Depois foi a vez do maço de cigarros oscilar em direção a Cleber. Como não conseguia ver-lhe as expressões faciais, Damiana precisou saber de viva voz o que achava da situação.

- É simplesmente ridículo - respondeu, acendendo o cigarro. Estão agindo como se estivessem lidando com um criminoso.

- O que andou fazendo no passado aqui nesta cidade?

- Nada! Não fiz nada!

- Cleber, - disse a mulher desprendendo fiapos ruivos de seu cabelo - não sou nenhuma ignorante; ouvi muito bem quando mencionaram um assalto de que tomou parte. Sem falar em depoimentos de ex-amantes. Quer que enumere mais? - completou, irritada. O isqueiro veio para cima da mesa e assentou-se. Jatos de fumaça expelidos nervosamente davam conta da alteração de humor de quem os provocava. O cigarro subiu alguns centímetros e começou a balançar denotando o nervosismo de Cleber.

- Não precisa se aborrecer, - ela disse ao sentir que ele se levantara - só quero o seu bem…

- Eu sei disso. Ouça: o meu passado não importa mais, estou regenerado.

- Como vou saber? Não estou vendo. - Voltou a passar sobre os cabelos o pente com indiferença.

- Muito bem. - Cleber sentou-se; ela soube pelo cigarro que voltou à posição anterior e por uma última baforada seguida da extinção, no cinzeiro de vidro sobre a mesa, da guimba pressionada pela mão dele. Contou sua história de vida desde o dia em que viera para aquela cidade. Falou da má influência sofrida quando, antes de completar a maioridade, decidiu abandonar o lar e a cidade natal. - Já ia adentrando na criminalidade - disse. - Meti-me numa quadrilha, sim, e cheguei a participar de dois assaltos. Consegui sair ileso e com minha parte em dinheiro, muito dinheiro. Mas isso em outra cidade, em outro estado, por isso vim para cá.

Aos dezessete anos, na época em que cometeu os crimes, portanto menor de idade, Cleber foi parar dentro de uma instituição. Aos dezoito, tomou parte em uma rebelião seguida de fuga. Recapturado dois dias depois, foi conduzido à prisão comum, com julgamento marcado.

- E o dinheiro, o que foi feito do dinheiro? - Damiana colocou o pente sobre a mesa ao lado do cinzeiro e pegou no maço de cigarros e no isqueiro.

- Aí é que está; foi a minha salvação.

- Não compreendo.

- Vai compreender. Fiz um trato com meu advogado. Tinha toda a grana muito bem escondida. Na verdade, usara dela um percentual para pagar-lhe os honorários. Fui a julgamento e condenado a doze anos em regime fechado; já havia cumprido três.

- E qual fora o trato? - ela perguntou, pousando o isqueiro e soltando pelo nariz a fumaça.

- Muito simples. Se entregasse o dinheiro tirar-me-ia detrás das grades em questão de semanas. Exigi minha liberdade primeiro. Ele cumpriu a parte dele e eu a minha; o homem era poderoso e influente e sei que não resistiria a uma bolada.

- Entregou-lhe tudo?

- Também não sou tolinho, não é, meu amor? Fiquei com uma boa parte. Disse que já havia gasto, não sei se acreditou, nem me importo. Só sei que em quinze dias era um homem livre.

- E regenerado - disse a mulher com um sorriso.

- Mas é evidente; hoje sou outro homem, você sabe disso. Porém, e esta casa, e a nossa lua de mel maravilhosa, e aquela limusine, de onde acha que vieram? Não seria como caminhoneiro assalariado. Damiana sorriu novamente.

- Mas, amor, você comprou a lei!

- Não sei na verdade quem comprou quem. Estou livre; bem ou mal, cumpri a pena. Contudo não devo mais nada a ninguém. Já fazem mais de vinte anos e o crime já prescreveu.

Ás dez horas e cinco minutos daquela mesma manhã cinzenta e nebulosa, Damiana encostou, com o sedan ocreoso de Cleber, à porta da delegacia. Como parte da conversa que haviam tido em casa, o casal resolvera assumir de vez o problema. Não mais furtar-se-iam aos fatos. Sendo assim, quando ela abriu sua porta e apeou-se, do outro lado o mesmo aconteceu, mas de outra forma. Pairou no ar uma vestimenta masculina composta de camisa branca, de botões, e calça bege, cobrindo um par de meias que se metiam em sapatos de cor marrom; o espanto foi geral. Muitos, ao verem aquilo, pararam na calçada, interrompendo suas caminhadas. Através da transparência envidraçada das duas portas de vaivém da repartição policial via-se, estuporado, não só o representante máximo da lei ali dentro, mas todos os seus subalternos. Ao lado, uma senhora gorda falava em um telefone público vermelho, instalado na parede à entrada de uma padaria. Vendo o fenômeno, seu sorriso e simpatia desvaneceram-se por completo e ela largou o fone, muda e espantadiça.

Entraram. O delegado, barbudo e engravatado, com uma camisa social azulada e ostensivo par de abotoaduras douradas, recebeu-os de pé, à porta de sua saleta. - Podem voltar ao trabalho - disse, dirigindo-se aos funcionários ainda meio que boquiabertos com o ineditismo do espetáculo. Todos obedeceram e ele virou-se, empurrando a maçaneta; a porta escancarou-se e o casal entrou. Damiana sentou-se em frente a ele, já atrás da mesa cheia de papéis e documentos. Cruzou as pernas morenas sob uma saia justa mas discreta. A vestimenta de Cleber pairou na outra cadeira ao lado dela. O delegado olhou através do vidro e notou a aproximação do escrivão. Ele entrou sem bater e entregou ao outro uma pasta de documentos. O oficial saiu e ele abriu a pasta para examinar autos e termos processuais com declarações exaradas contra Cleber que comprometeram sua vida pregressa. Após olhar por uns dois minutos, fechou-a e pegou em duas folhas de papel presas por um clipe de metal que continham o relatório da última ocorrência.

Quanto ao processo antigo, tratava-se de um fato consumado, prescrito, a julgar pelos ditames da lei. E o pagamento de fiança livraria o réu de uma nova ação judicial, tendo, se por um lado, um abrandamento da punição, por outro, a reincidência do crime. Os depoimentos das vítimas também seriam sanados em forma de paga dos prejuízos pertinentes. Cleber poderia, se assim desejasse, alegar inocência, dado a falta de provas mas, sabiamente, preferiu não optar por este caminho; seu passado era o seu maior delator. Contratou advogado, pagou todos os prejuízos e a dor do bolso parece ter-lhe doído também na consciência, pois passou a fazer de tudo para fugir das encrencas e dos atropelos.

Conseguiu da empresa uma licença para tratar-se e buscar solução para o problema que já ia para lá de um mês; mas nada funcionou. Ficava a maior parte do tempo dentro de casa. Lia, assistia televisão; pouco agora se falava sobre ele. Para afastarem a rotina, Damiana arranjou um emprego. A noite, matavam a saudade e riam muitas vezes das histórias pitorescas e mordazes que ela trazia da empresa de moda íntima feminina em que passou a trabalhar. Quando saía, Cleber geralmente fazia-o só; queria despertar a mínima atenção possível. Com a mulher ia, ela ao volante, à casa de praia que possuíam a uma hora e meia de viagem. Faziam isso quase todo fim de semana. Porém, a rotina de apanhá-la, nu e a pé, aos sábados, em nada mudou.

Numa terça-feira pela manhã, quando Damiana contornava a pracinha do chafariz, tendo acabado de sair de casa para se dirigir ao trabalho, seu carro foi abalroado por uma viatura policial; o mesmo furgão azul-marinho tarjado de branco, com os mesmos homens, atarracados e de uniformes. Obrigaram-na a fazer uma manobra e acompanhá-los. Surpresa, viu-os parar em frente a sua própria casa; na certa procuravam por Cleber. Ela estacionou logo atrás e, antes mesmo de desligar o motor, um dos homens, o que estava ao lado do motorista, já havia desembarcado e encontrava-se agora ao lado de sua porta.

- Bom dia - Damiana não respondeu. - Temos uma ordem de prisão contra o seu marido. Queira chamá-lo, por favor. - Ela desligou, pediu licença e desceu do carro. O barulho dos motores trouxera Cleber até a varanda, vindo de trás da casa onde regava as plantas do jardim. Como nada trajava, não era percebido. Assim, avançou até o portão e, do lado de dentro, ouvia a conversa.

- O homem explicou a razão da ordem. Houvera, sábado de madrugada, um arrombamento seguido de assalto, no banco principal da cidade. Conseguiram penetrar no interior da agência e, pé ante pé, usando maçarico e alavancas, abrir o cofre carregando uma fortuna. Como o casal havia chegado de sua casa de praia no domingo à noite, não dera pela notícia, diferentemente do resto da cidade que estava em alerta. Embora não houvesse provas suficientes, Cleber era considerado fortíssimo suspeito e precisava ser detido até que apresentasse um álibi ou outro convincente meio de defesa.

- Não me diga que não sabem do fato? - perguntou o policial a Damiana que sentiu, de leve, um toque em seu ombro. Cleber andara rente ao muro pelo lado de dentro e conseguiu alcançá-la esticando o braço. Ela disfarçou e eles nada perceberam.

- Chegamos ontem à noite de viagem; meu marido é inocente.

- Terão que provar isso ao delegado. No momento tenho que cumprir o mandado; chame-o, por favor.

Cleber apresentou-se. Sua rapidez de pensamento lhe mostrou que era o melhor que tinha a fazer. Portanto, sem temor e sem querer esconder nada, nem a si próprio, vestiu uma roupa que flutuou até o seu carro; Damiana partiu, seguindo o furgão até a delegacia. A mesma comoção pública no caminho do homem invisível. Conduzido a delegacia, foi metido em uma cela única em prisão temporária. Na segunda visita de Damiana, combinou com ela uma fuga. Preso há quatro dias, pagar por um crime que não cometera não era com ele. Escapar não representou problema. Nada mais simples. No dia seguinte à visita, a mulher aguardava-o na saída da cidade; iriam para a casa de praia até que as coisas se acalmassem. Fugiu na hora do banho, despistando o carcereiro que, quando desconfiou do chuveiro que nunca se fechava já era tarde. Saiu à barba dele e de todos. Quando perceberam já estava longe.

Por conta de um outro crime, porém, caçaram e prenderam o bando que confessou o repercutido assalto ao banco. Inocentado, Cleber retorna e novamente toca a sua vida.

Segue a rotina. Voltando os dois da academia em uma manhã chuvosa de sábado, Damiana que já não mais se importava com os olhares de mofa e admiração das outras pessoas, abraçava, ao deixar o Shopping Center, um corpo nu e invisível e protegia-se sob um guarda-chuva preto que andava sozinho no ar. Atravessaram uma rua e foram para a rodoviária. Queriam almoçar em seu restaurante favorito. Ela, ainda em sua calça azul escura de nylon colada ao corpo, exibia suas formas bonitas e torneadas. Almoçaram e conversaram como se estivessem em sua própria casa. Algumas pessoas, sentadas em mesas próximas, ouviam a voz de Cleber e outras ainda o cumprimentavam, chegando a apertar sua mão invisível. Por certo havia mulheres que, sabendo-o nu, torciam para que ele voltasse, ali mesmo, ao normal.

Saindo dali, já com a chuva amenizada e transformada em garoa, tomaram o caminho rotineiro de volta ao lar. Cruzaram a rodovia e foram em direção à estrada de ferro. Ao saírem, porém, do beco alamedado entre as vilas de casas, ocorreu outro fenômeno, o qual, tanto Cleber quanto Damiana, nunca mais iriam esquecer, como não se esqueciam do primeiro, passado ali naquele mesmo descampado. Não carece detalhar o que se passou. O mesmo tipo de raio, o mesmo estrondo, o guarda-chuva voando pelos ares e o espanto da jovem e bela mulher. Só que, e para a felicidade de ambos, mormente dela, o Cleber invisível deixou de existir. Deu lugar ao homem alto, forte e moreno que ela amava. Ato contínuo, ela o agarrou, enchendo-o de beijos, desgrenhando-lhe os cabelos pretos e molhados. Agarrou-o, tratando de levar para casa o homem que queria ver dos pés à cabeça enquanto faria amor com ele.

O domingo foi todo alegria e emoção, com o casal a sorrir mostrando-se por inteiro com Cleber ao volante. Rodaram pela cidade vazia de atividades, mas repleta de interesse pela novidade. Pararam na praça e muito conversaram com amigos e conhecidos. No dia seguinte, os jornais e outros meios muito teriam para contar e faturar com as aventuras do homem visível, ou invisível, como queiram.

  • Publicado em: 05/09/2006
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