Ele não era. O sujeito pode não estar oculto aí na simplicidade
deste período. Mas na realidade da ficção, se é
que isto seja possível, o homem era tão invisível quanto
o ar que respiramos, o qual, mesmo sem vê-lo, sabemos da sua existência.
Muito mais fácil e lógico seria classificar ou alcunhar o que,
dele, alguns privilegiados conseguiam captar. Uns, o som; outros, suas peças
de roupa. Viam-se, então, a dona cueca, o senhor blusão ou a senhora
calça, ou todos a um só tempo, vagueando nas sombras da noite,
pulando um muro ou abrindo uma porta.
Era um ser humano como qualquer outro, afirmam os que confessaram tê-lo
conhecido antes daquele marcante dia de tempestade que lhe lançou sobre
o corpo um raio, fazendo-o desaparecer da vista da esposa. Atravessavam uma
ruela entre muros altos que costeavam avenidas independentes de residências
campestres. Os ramos enfolhados dos álamos em primavera os protegiam
dos pingos da chuva fina e persistente da manhã. Ao atingirem o descampado
e aberto o guarda-chuva, veio o estrondo. Ela não foi atingida mas o
homem deixou de existir, ou melhor, seu corpo deixou de ser percebido. Se não
houve velório e nem enterro, posto não ter havido o morto com
o seu cadáver, concluiu-se daí que algo estranho tenha ocorrido
e muito mais estaria para acorrer.
Ele pode não ter sido dado como morto mas a mulher, tida como viúva,
passou a ser vista também como louca. Ver alguém a conversar com
um fantasma era, no mínimo, engraçado. Pois era o que fazia Damiana
com Cleber e até que o provasse concretamente, tinha que aguentar
as gozações e os achaques. Quer isso dizer que, enquanto não
se vissem o balouço de suas peças de vestuário ou uma ação
de sua parte cumprindo uma ordem ou um mando, Cleber era visto, ou melhor, não
era visto como nada ou como coisa alguma, o que vem a ser, ou não, a
mesma coisa.
Passou-se a falar na cidade sobre o homem invisível. À princípio,
o medo foi a sensação dominante. Não tinha a cidadezinha
mais do que sete mil almas, todas precavidas contra o temível impostor.
Era assim que o viam. A notícia invadiu a imprensa local com a mesma
velocidade do inusitado raio; daí espalhou-se com igual ímpeto.
Uma semana após a divulgação do fato, a pracinha principal
do lugarejo foi invadida. Rádio, televisão e outros interessados
em busca de testemunhos e reportagens. Nos espaços reservados ao tobogã,
às gangorras e aos balanços, como na quadra de esportes, na grama
e nos bancos de madeira, em vez de crianças a brincar e casais apaixonados,
grassava a multidão e os comentários. Em meio ao cenário
um velho, com seu chapéu coco e terno cinza amarrotado, falava ao jovem
repórter cabeludo com rabo de cavalo e brinquinho na orelha.
- O Sr. pode nos contar o que viu? - perguntava o repórter.
- Como é que eu vou ver alguma coisa se o tipo é invisível,
meu menino? - dizia o homem num motejo, a exibir a dentadura amarelada e bamboleante.
- O que eu posso garantir é que o tipo é dos que enganam a própria
sombra.
- O Sr. o conhece?
- Não é de hoje, moço, não é de hoje!
- Por que o acusa, já foi vítima alguma vez?
- Eu mesmo não, mas conheço a vida do sujeito.
O repórter agradeceu e o homem fez um gesto pondo a mão no chapéu
e afastou-se. Uma jovem mãe, sentada em um dos bancos, meneava o carrinho
cor de rosa e, dentro dele, seu lindo bebê, uma menina, deliciava-se com
o ritmado vaivém e dormia alheia a tudo e a todos, mascando a chupeta
branca. Ao lado, no banco, a repórter de famoso jornal de grande circulação,
segurava um microfone bojudo ligado a um fio preto e comprido que vinha de dentro
da Kombi branca estacionada no canto da rua.
- É verdade que você teve um caso amoroso com o homem invisível?
- quis saber da mãe, enquanto puxava o fio que ameaçava enroscar-se
à roda de uma carrocinha de pipocas.
- Sim, é verdade - disse a mãe, não muito simpática,
segurando a ponta do xale que lhe cobria o peitilho de tule preto de algodão.
- Não sei como souberam; por certo foi a megera da Damiana que passou
essa informação. Enfim, não me importo, já faz cinco
anos que estou casada e muito feliz. Em todo caso, não sei em que o meu
relacionamento com ele pode ajudá-los no caso. O que vocês precisam
investigar são as causas do acidente, isso sim. Não foi o raio?
Já não viram as roupas mexendo-se sozinhas? Se acham que ele merece
confiança, sigam adiante; não tenho mais nada a declarar - completou
impaciente. A repórter desligou o pequeno gravador, entregando-o ao auxiliar.
Este levou-o para o carro enquanto ela sacava do bolso de sua calça jeans
azul clara um bloquinho de anotações com espirais de arame. Escreveu
alguma coisa, olhou o relógio do pulso, escreveu novamente e despediu-se
da entrevistada que fez um sim com a cabeça e prosseguiu indiferente
a embalar a pequerrucha.
Escusado mencionar a notoriedade que alcançou a cidadezinha a pouco mais
de uma semana do ocorrido. Após os depoimentos dados na praça,
outros foram surgindo. E, na maioria esmagadora, o conceito do homem em questão
pendia para o negativo. Então, precaveram-se todos. Os visitantes encontraram
dificuldades para instalarem-se. Os hotéis e hospedarias redobraram os
cuidados, as casas fecharam as portas e janelas e os maridos trancafiaram a
sete chaves as suas esposas, os pais, as filhas e por aí vai. É
que a fama de ladrão e sem vergonha, já conhecida e corroborada,
disseminou-se de vez. A cidade compunha-se de diversas ruas curtas e paralelas,
algumas asfaltadas e outras não. Duas outras vias de maior acesso passavam
ao longe e serviam de escoamento. No entroncamento das duas estradas ficavam
a delegacia, a prefeitura e, mais à frente, ao longo de um centro urbanizado,
com hotéis, a rodoviária. Do outro lado, mais comércios
e algumas casas que iam terminar ao sopé de um morro. Margeando a outra
estrada, uma via férrea que, a uns duzentos metros, desaparecia nas faldas
de uma montanha. No extremo oposto, seguindo-se por qualquer uma daquelas ruazinhas,
jazia o cemitério cuja extensão pegava um pedaço do morro
e subia por este. Algumas cruzes e mausoléus eram vistos a grandes distâncias;
certos moradores tinham esta visão como sendo a primeira da manhã
ao abrirem as janelas de suas casas. E tanto o fizeram que se acostumaram à
paisagem.
Atravessando-se a linha férrea em sentido contrário ao do centro,
tem-se o outro lado da cidade, um pouco mais ameno e sossegado. As residências
são maiores e requintadas. É, na verdade, uma vila moderna para
os mais abastados que queriam paz e privacidade, podendo pagar por isso. As
ruas arborizadas serpenteavam entre as herdades, algumas com dois ou três
pavimentos, e contornavam um parque com playground e chafariz. O comércio
era mínimo e os moradores em seus carros luxuosos saíam e entravam
na vila por uma estrada vicinal ligando-se por uma cancela à rota primordial.
Cleber e Damiana moravam neste local privilegiado. A vida pregressa do moço,
destrinçada por quase todos que, há anos, o conheciam, escandalizou
a mulher. Juntos há pouco tempo, ela desconhecia-lhe o passado. A casa
abrigou-os, após o casamento, para a lua de mel e moradia. Cleber fez
questão de guiar, ele próprio, a limusine vermelha que alugara.
Retornando da cerimônia religiosa em que participaram uns poucos amigos
do casal, parou, às nove e meia, junto ao portão de grades automático,
abriu-o sem sair do carro e, na garagem, desceu dando a volta pela frente do
automóvel. Pegou no colo a noiva. Damiana enroscou-se-lhe ao pescoço
com os dois braços e o buquê vermelho de rosas bem preso na mão
direita. Ele beijou-a e assim entraram. A cauda do vestido branco arrastando-se
no chão da varanda, Cleber descansou um pé no assento de uma cadeira
enquanto tirava do bolso as chaves para uma nova vida.
O casal não tinha filhos. Damiana, na flor dos vinte e três anos,
frequentava uma academia que ficava num mini Shopping Center ao
lado da rodoviária. Seu corpo jovem, quase magro e elegante, estava totalmente
em forma para todos os olhares que a admiravam e, principalmente para o marido
que a amava. Mas teve que perder a gordurinha localizada na cintura e endurecer
o bumbum. Religiosamente, todos os sábados pela manhã, acompanhava-a
no passeio que fazia a pé para também exercitar-se. Foi num desses
retornos que aconteceu o incidente. Cleber esperava por ela quase na saída
do Shopping, sentado a uma mesa de lanchonete. Folheava uma revista que acabara
de comprar na banca em frente; sobre a mesa uma garrafa e um copo em feitio
de tulipa com mais espuma do que cerveja. A morena desceu os degraus da escadaria
e, do patamar, jogou um beijo quando ele se virou para olhar. Ainda trajava
calça de nylon azul escuro colada ao corpo e um mocassim branco nos pés.
A blusa de malha tinha marcas de suor recente da ginástica. Ele fez um
sinal de OK e ela voltou para onde estava. Em menos de dez minutos já
estava em seus braços de banho tomado, roupa trocada e cheirosa.
A chegada à casa foi diferente e insólita. Damiana tinha que disfarçar
ao dirigir-se a ele na rua. As roupas que Cleber usava no momento do choque
também sumiram inexplicavelmente, portanto o único sinal, em princípio,
era a sua voz. Não havia viva alma no local. Eles tinham acabado de atravessar
a estrada e o beco entre as casas para seguir em direção à
estrada de ferro. A chuvinha fria incomodava e o guarda-chuva voou pelos ares.
Damiana viu-se desesperada. - Meu Deus! Amor, onde está você? Cleber!!!
- gritou atônita.
- Hei! Estou aqui do seu lado, não está me vendo? - ele abraçou-a;
a mulher tremeu da cabeça aos pés.
- Acalme-se, está tudo bem. Onde está o guarda-chuva? Vamos para
casa.
- Amor, o que está acontecendo? Onde você está? Eu sinto
você mas não o vejo.
- O que!? Olhe aqui minha mão; esta vendo? Vê a minha mão?
- Não; eu não vejo sua mão, nem seu rosto, nem seu corpo.
Eu não vejo você.
- Você está cega! Você quer dizer que ficou cega?
- Não! Você não está entendendo, amor, eu vejo tudo
muito bem. Só não vejo é
você
não
vejo você.
- O que!? Quer dizer que eu morri!
já não pertenço
a este mundo? E eu que nunca acreditei nessas coisas.
- Mas eu sinto você; acho que não morreu. - Cleber segurou-lhe
no braço.
- Sente minha mão? - perguntou.
- Claro! Perfeitamente.
- Tem certeza que não é a mão de outro homem? - brincou.
- Cleber?
- Oi!
- Não está usando um dos seus truques engraçadinhos?
- Juro que não; também não sou tão bom assim. Acho
que está é querendo se vingar das minhas brincadeiras.
- Estou com medo - disse Damiana com a expressão contraída. Cleber
viu que ela não brincava. Abraçou-a mais uma vez, acalmando-a.
- Vamos para casa; estou ensopado.
Passaram o resto do dia entre ações e experimentos, buscando um
meio qualquer de reverter aquele quadro. Como não conseguissem, tiveram
que se adaptar, principalmente Damiana que não estava acostumada a conviver
com uma pessoa invisível. Ver copos, garrafas, livros e toalhas passeando
pela casa, portas e janelas abrindo-se e fechando-se sozinhas e ouvir o som
de uma voz sem saber ao certo a direção, era, no mínimo,
inusitado para ela, quando não, hilariante. Fizeram o teste das roupas
e constataram, dentro do óbvio, uma assustadora realidade. Cleber tinha
que andar nu para não ser percebido ou conviver em ambiente cuja familiaridade
o protegesse contra possíveis situações constrangedoras
e de risco. Deduz-se logo que, a depender das circunstâncias, isto seria
impraticável.
Esperaram três dias, no quarto saíram às ruas. O céu
enfarruscado do fim de semana havia dado lugar a uma manhã limpa e agradável.
Entraram no automóvel, um Alfa Romeo prateado, com Damiana ao volante.
Para precaverem-se contra um eventual contratempo, tinham, no banco traseiro
do carro, uma vestimenta completa para Cleber, composta de camisa esporte enxadrezada,
calça de brim e sapatos com meias e uma cueca branca. Desceram a rua
de paralelepípedos, contornaram a pracinha e, a estátua branca
do chafariz, a botar água pelas ventas, parecia entender a situação
de Cleber e zombar dela. Seguiram pela rua preferencial e Damiana, extremamente
acautelada, premia a buzina ao aproximar-se de cada cruzamento. Chegaram em
frente à cancela e tiveram que esperar pacientemente a passagem de um
trem de carga com seus intermináveis vagões atulhados de carvão
mineral a granel que desfilavam indiferentes ante os veículos que já
começavam a se fazerem numerosos; passaram finalmente. Alcançaram
a via de alto acesso, pegando o sinal ainda verde e atravessaram-na dobrando
então a primeira à esquerda e Damiana estacionou ao final de uma
fila de táxis amarelos a espera de passageiros e suas bagagens. Um menino
magricela, de chinelos azuis e camiseta branca, quase escondendo uma surrada
bermuda jeans, aproximou-se com uma caixinha contendo amendoins e chicletes.
Ela adquiriu alguns e o guri, sorridente, embolsou logo as moedas. Distraída,
Damiana ofereceu o amendoim ao marido que o pegou também sem cuidados.
Foi o suficiente para o moleque arregalar os olhinhos encantados ao ver o saquinho
flutuante e solitário. Cleber, entretanto, atinou com a gafe e desceu
a mão insistente para o assento do carro e fez desaparecer da vista do
atordoado garoto o enigma.
A mulher pegou as peças de roupa, dobrou-as com cuidado e meteu-as numa
bolsa grande de couro marrom com zíper. Daí, saíram a pé
para uma insólita caminhada. Foram horas de apreensão e muitas
vezes mal estar, ao fim das quais Damiana viu-se completamente estressada. As
situações que precisou enfrentar, os disfarces e as constrições
acabaram por afetar-lhe o humor ao fim do dia. - não sei o que vai ser
de nós. Você viu que maçada? - disse, atirando-se no sofá
escarlate de sua confortável sala de estar. Os pés, ajudando-se
mutuamente, livraram-se das sandálias de tiras douradas e ela descansou
as pernas sobre um dos braços do estofado e a cabeça e as mãos
sobre o outro. Na poltrona em frente, um copo comprido com conhaque e gelo subia
e descia.
- Não foi engraçado aquela cena na porta da academia? Sua amiga
loirinha deve ter achado que você perdeu o juízo quando olhou para
o lado e falou com a parede. E o pior é que eu nem estava ali.
- Aonde você tinha ido?
- Você não se lembra, paixão? Desci para ir ao banheiro,
até dei um beijinho com estalido em sua boquinha
invisível,
é claro.
- A coisa não é para brincadeiras. Foram tantos os momentos de
tensão que tive que contornar. Tenho quase a certeza de que não
consegui enganar muita gente. Imagino o que devem ter pensado de minhas estripulia
aqueles que as perceberam. Devem ter-me tomado como maga ou, pior, como doida
varrida.
Cleber, ou melhor, o seu espectro, levantou-se e, acocorando-se junto à
esposa com o copo agora pairando entre as pernas, beijou-a e ela sentiu-lhe
os lábios úmidos e um leve aroma da bebida ao retribuir-lhe o
gesto com afagoso toque de mão entre os cabelos da nuca.
- Você está cansada. Vamos esquecer o que passamos hoje e pensar
só em nós dois. Não vejo a hora de tomar aquele banho gostoso
com você que sabe, como ninguém, esfregar umas costas; depois do
amor e relaxados vamos nos sentir muito melhores, posso garantir. Aliás,
você ficou ainda mais bela depois que arruivou os cabelos; parece que
combinam mais com o castanho dos seus olhos. Na verdade você está
linda de tudo - completou, beliscando de leve uma das bochechas da esposa.
- Pena que não possa dizer o mesmo de você - Damiana brincou, conseguindo
relaxar um pouco. Sem dizer palavras, levantou-se e caminhou lenta e provocadoramente
o corredor em direção à porta do banheiro. Enquanto o fazia,
despia-se das peças que usava. Desvencilhou-se do corpete lilás
e Cleber viu, do sofá onde se sentara, quando ela levou as mãos
às costas e desabotoou o soutien de cor preta deixando à mostra
todo um contorno de formas perfeitas e bem tratadas. A pele morena clara de
Damiana, curtida pelas manhãs de sol do seu amplo terraço e pelo
benefício da ginástica, fazia a preferência dele e acendia-lhe
o desejo que tinha por ela. Quando se virou para entrar no banheiro, o bico
firme do seio rosado mostrou-se a sua visão já deslumbrada.
Damiana, já no boxe e como veio ao mundo, gozava agora as delícias
da água espumosa que cobria, por completo, o seu corpo dentro da banheira
comprida e azulada. Sobre a cabeça, uma touca alaranjada protegia-lhe
os cabelos recentemente reflexos. Percebeu o borbulhar do líquido, no
momento em que Cleber entrou e juntou-se a ela no banho, e sentiu o contato
de um corpo másculo a lhe fazer carícias. Banharam-se e fizeram
amor tendo, como testemunhas, os últimos raios do sol, coando-se, furtivo,
por entre as vidraças do ambiente. O auge do prazer chegou para Damiana
entremeado de alguns soluços de aflição que ela tentou
ocultar do marido mas sem sucesso. Ele percebeu e procurou confortá-la
enumerando-lhe as vantagens que poderiam tirar do dilema.
De fato, os comentários que correram na cidade, logo após a divulgação
da ocorrência que o tornara invisível, davam conta de um Cleber
não muito bem conceituado na sociedade local. É certo que, sendo
o lugar muito pequeno, qualquer ação inadvertida tornava-se grande
demais. Ele aproximava-se dos trinta anos e, até conhecer Damiana, não
podia ver rabo de saia. Além de muito pouco gostar de trabalho. O amor
dela transformou-o, ou assim dava mostras. Quando não viajava pelas estradas
do país a transporta em seu caminhão baú inúmeros
equipamentos de informática: microcomputadores e eletrônicos para
a empresa na qual trabalhava, passava em casa a maior parte do tempo e com a
esposa. Ela retribuía este amor com afeição e respeito
embora não muito convicta da fidelidade dele. O trabalho obrigava-o por
vezes a permanecer dias longe de casa, dormindo e comendo em hotéis e
pensões à beira da estrada, sem contar com a influência,
às vezes negativa, dos companheiros de trabalho, outros caminhoneiros,
na profissão por causa do lado liberal e desregrado.
As vantagens as quais se referia Cleber diziam respeito a uma espécie
de retorno suave ao tipo de vida que tinha antes - não em relação
ao seu comportamento com as mulheres porquanto agora estava amando de verdade
- e precisou ser deveras sutil ao mencionar isto a ela. Damiana, é óbvio,
não gostou nada da ideia; ficou, na verdade, visivelmente chateada.
Levantou-se sem dizer palavras e, ao gesto de por o pé para fora da espuma,
sentiu o leve toque da mão de Cleber segurando-lhe o tornozelo que pisava
o mármore da banheira. - Me dá licença um pouquinho, preciso
de uma ducha fria. - Saiu e ao fundo do boxe, no espaço entre a banheira
e a parede azulejada, abriu um forte jato, inundando da cabeça aos pés
o belo corpo, fazendo coar pelo ralo os últimos vestígios de espuma.
- Posso saber o que pretende? - perguntou secamente, fechando a torneira do
chuveiro.
- Nada demais. Damiana viu a toalha vermelha sair da coluneta esmaltada presa
à parede a sua frente e vir em sua direção. Sentiu o tecido
lanoso e macio quando o segurou. O chuveiro abriu-se novamente e a água
voltou a jorrar. - só quero que compreenda, a maré está
a nosso favor.
- A seu favor, tenho certeza de que está. - terminou de secar-se, recolocou
no lugar a toalha e falou da porta, exibindo de lado, o corpo exuberante ao
marido que nunca cansava de apreciá-lo. - Quanto a mim, faço sexo
com alguém que sequer consigo enxergar. O prazer que você está
tendo nesse momento me está sendo negado e eu não sei por quanto
tempo vou conseguir suportar isso.
- Vamos achar um jeito; confie em mim. - A toalha começou a se mexer
novamente. - Enquanto não aparece a solução, teremos que
conviver com o problema; não há outra saída. Agora vem
cá, - disse com ternura. - dá mais uma esfregadinha nas minhas
costas, acho que ainda tem uma sujeirinha. - Damiana não viu muita graça
na brincadeira desta vez.
- Sinto muito, estou com dor de cabeça - e saiu para o quarto. Naquela
noite traçaram planos e estratégias para uma adaptação
e enfrentamento dos possíveis obstáculos. Preparada para dormir
dentro da camisola preta e sedutora e abraçada na cama a um pijama que
protegia Cleber contra a baixa temperatura que vinha fazendo Damiana, debaixo
de um lençol amarelo até a cintura, ouvia com atenção
e preocupada, as explicações dele. Como primeira medida, e para
evitar situações delicadas, não poderiam sair juntos, ao
menos por ora. Damiana olhava o teto enquanto se punha pensativa. Ele percebeu
e, a cada mudança de fisionomia que nela percebia, procurava encorajá-la.
Não foi fácil para a moça aceitar tais alterações.
Tão drásticas e inesperadas. Só ao final de uma semana,
quando as notícias diminuíram e se arrefeceram os comentários,
Cleber se arriscou a uma saída.
As primeiras incursões pelas redondezas não representaram problemas.
Gastou quase uma inteira manhã em caminhadas sem arriscar-se a ousadias.
No dia seguinte, uma terça-feira, acatou uma sugestão de Damiana
de apenas dar-lhe uma carona até onde desejasse e pegá-lo mais
tarde. Sendo assim, foram até a praça principal. Ela desceu do
automóvel, deu a volta pela frente e abriu a outra porta. Disfarçadamente,
fingiu que tirava algo do porta-luvas, dando chance a que ele desembarcasse
sem problemas. Enquanto o fazia, ela, sentindo-lhe o hálito e o resvalo
do corpo, ciciou-lhe o horário do reencontro. Em seguida, sentou-se novamente
ao volante e, contornando a praça, pegou a mesma via. A uns cem metros
à frente fez uma manobra e voltou pelo outro canto da pista. Passou novamente
em frente à praça e entrou à direita em direção
ao Shopping Center. Cleber acompanhou, parado ao meio-fio, toda a operação
e, quando ela passou de volta ele, esquecendo-se por momentos de sua invisibilidade,
acenou-lhe com um beijo. Recolheu a mão, lamentando a gafe mas satisfeito
por ninguém ter atinado com ela. Contudo, serviu-lhe como advertência;
precisava acautelar-se dali em diante.
Por dentro, uma sensação agradável dizia-lhe que o melhor
estava para acontecer. Antevendo o prazer da liberdade que ia além do
ir e vir, gastava o passeio apreciando sem pudor os rostos, os corpos e os saracoteios
de sua preferência. Atravessou pela faixa debaixo do sinal luminoso e
seguiu pelo canto da calçada em direção oposta à
rodoviária. Tomando cuidado com os encontrões, desviava-se de
tudo e de todos mas nem sempre isso era possível. Um gordo, saindo apressado
do restaurante, deu com o braço curto e excessivamente peludo em seu
ombro, ao sinalizar para um táxi que vinha passando. O motorista não
parou e o homem, frustrado, com as mãos na cintura, ao lado da banca
de jornal, exibia a barriga enorme e oblonga e olhava de vez em quando para
trás, enigmático e curioso.
O grande problema para Cleber era não poder em nada segurar, com ninguém
falar e nem exercer outras singularidades. Sentiu vontade de fazer xixi. Percebeu,
passando em frente a uma choperia, uma porta entreaberta ao fundo do balcão;
era um banheiro masculino. Entrou espremido rente aos bancos altos ocupados
por animada gárrula de bebedores. Uns, debruçavam-se sobre o mármore
gelado, a ouvir a prosa do companheiro de copo. De vez em quando um chope espumante
vinha, trazido pela mão hábil do balconista de branco, com um
pano meio sujo sobre os ombros, juntar-se às porções de
queijos e linguiças cheios de palitos espetados. Cleber esvaziou-se
e, por pouco, um garoto loirinho, de uns quinze, anos não flagra o esguicho
da urina saindo do nada. Para não esbarrar no menino, esgueirou-se, cosendo-se
à porta que bateu de leve, causando um movimento e um som, por sorte,
não percebidos.
Na saída, um desejo irresistível. Viu os corpos suados pela bebida
predileta e sentiu vontade de pedir o seu; mas como fazer? Teve uma ideia.
Deu a volta, esperou que um magricela sem camisa e já um tanto borracho
desobstruísse a passagem e ganhou o lado de dentro do balcão.
O balconista, empanado no ombro, estava do lado de fora, entre as mesas da calçada,
servindo a um casal que acabara de chegar numa moto vermelha e preta. Lá
dentro, o patrão do rapaz, com sotaque espanhol, monopolizava a caixa
registradora e a máquina de chope atrás dele, copiosa e abandonada,
pingava pela torneirinha o néctar dos deuses; a visão umedeceu
os lábios invisíveis de Cleber. O homem afastou-se um pouco a
fim de atender a um cliente bem vestido com camisa branca e gravata, a procura
de certa marca de cigarro. Enquanto pesquisava o mostruário e vasculhava
embaixo do balcão atrás da mercadoria, a gaveta aberta e deleitante
transbordava de notas e provocava o rapaz, como a lhe instar uma ação
rápida e inconsequente, mas ele disse não ao seu instinto.
Por outro lado, percebeu a inviabilidade do ato. Por um momento, imaginou um
maço de dinheiro a correr de curiosos ávidos e policiais perplexos.
Mas, um chopinho
apenas um, bebido à espreita, não faria
mal a ninguém. Aproveitou-se das costas do espanhol, sacou de uma toalha
amarela no espaldar de uma cadeira e cobriu a máquina. Por sorte, nenhum
dos fregueses percebera este lance rápido, com exceção
de uma criança moreninha e rechonchuda, bebendo guaraná ao lado
da mãe, de lenço na cabeça. - Mamãe, a senhora viu
a toalha andando sozinha? - A mulher largou o copo em cima do balcão
para dar um tapinha de leve no ombro da menina.
- Larga de falar bobagem, o troço! Onde já se viu? Acaso tem alguém
invisível aqui? - Elas não eram da cidade.
- Se tem eu não tô vendo - Zombou a pequenina.
A mão invisível de Cleber agarrou por trás da toalha, o
copo, agora também invisível, e o encheu. Agachou-se ali mesmo
e mandou a bebida; gostou. Quis repetir a dose. Porém, no meio do enchimento,
eis que lá vem o garçom, secando as mãos no pano escurecido.
Lançou-o sobre o ombro, pediu licença ao magricela e foi à
prateleira, de onde pegou um copo. Quando viu a toalha, estranhou.
- Foi o senhor quem colocou isto aqui?
- É claro que não; para que? - Disse o espanhol, já em
cima do dinheiro.
- Cleber encolheu-se todo onde estava, na espera de uma brecha para escapulir
por onde entrara. O empregado arregalou os olhos, meio que descrente de sua
lucidez. Por instantes, achou que merecesse umas férias pelo excesso
de trabalho. Como só lhe restasse o trabalho para consolo, puxou a toalha,
o que fez vir ao chão o copo. Antes de estatelar-se, porém, pairou
por instantes sobre o colo invisível de Cleber que, rapidamente, lançou-o
ao chão para que completasse a sua trajetória, cumprindo, a rigor,
a lei da física. O rapazola ficou apalermado e, para desviar-se de um
caco que ressaltou e o já ia atingindo, deu um passo para trás,
caindo, imaginem, por cima do invisível Cleber. O espanhol, estupefato,
com o alvoroço do outro, desconcentrou-se do que vinha fazendo e também
sentiu a incoerência dos movimentos. O barulho chamara a atenção
de alguns fregueses. Estes, e depois, todos, viram quando o funcionário
largou tudo e, achegando-se ao balcão, desabafou: - O homem invisível!
Ele está aqui! Ele está aqui! Dentro do balcão! - O espanhol
fez o que lhe competia: agarrou-se a sua gaveta preciosa e esqueceu o resto,
vendo, ou não vendo, no que ia dar a balbúrdia.
A reação assustada e instintiva do comerciante e o choque do empregado
impediram-lhes de fazer o que deviam. Como torna-se difícil agarrar o
que não se vê, perderam o invasor. Cleber viu que, além
do magricela alcoólatra, outros impediam a passagem. O que fez, sem pensar
e sem dificuldades, foi saltar o mais veloz e preciso que conseguiu, por sobre
o balcão, sem deixar de derrubar açucareiros, xícaras,
esbarrar em clientes e, para piorar e incriminá-lo, quebrar carradas
de copos, um espelho e machucar uma senhora idosa, muito maquiada, de batom
vermelho e sapato preto de salto alto, que interpôs-se em seu caminho
ao penetrar no recinto naquele momento; foi levada ao chão, caindo sentada.
Até ser socorrida, viu-se praguejando e bracejando, esquecendo a vaidade.
Ao olhar para trás, já afastado, viu Cleber a aproximação
de uma viatura policial, um furgão azul marinho tarjado de branco e novo
em folha. Desceram dois homens, uniformizados, mais barrigudos do que fortes,
e entraram no estabelecimento. Não esperou para ver o que acontecia.
Quando a multidão de curiosos invadiu a calçada, tapando-lhe a
visão, ele virou-se e seguiu em frente. Cansado e faminto, lembrou-se
de Damiana. Continuou caminhando e, ao passar em frente a uma barbearia, olhou
para o relógio ao fundo, no alto da parede. Três horas e cinco
minutos, ela já devia estar esperando por ele. Porém, ao ver um
freguês recostado à cadeira, com a cabeça caída para
trás e gozando as volúpias do pincel que encharcava-lhe de espuma
o rosto, sentiu inveja e saudade. Deu vontade de entrar e pedir ao seu Manoel,
o bigodudo português, sempre tão simpático, que lhe fizesse
também a sua. Aproveitariam para colocar em dia as fofocas e discutirem
as últimas notícias do bairro e da cidade. Entrou. Mas, além
de lhe faltar coragem e disposição para enfrentar outra corriola,
o momento não era propício. Parou ao lado da cadeira e olhou o
espelho, realmente não havia reflexo; chegou a duvidar da própria
existência.
Esperando o sinal verde para atravessar, viu de longe o seu carro parado ao
estacionamento da praça; não viu Damiana. O movimento da tarde
aumentava e Cleber, já do outro lado, encostado ao automóvel,
de braços cruzados, olhava as mulheres que passavam por ele. Algumas
tão próximas que o perfume inebriava-o. Nesse momento, viu que
a esposa, saindo de uma farmácia, cruzou a faixa em sua direção.
Ao abrir a porta do veículo, um beijo furtivo assustou-a.
- Cleber? - perguntou, estendendo o braço disfarçadamente.
- E quem mais queria que fosse, o meu fantasma? - brincou dando-lhe um outro
beijo, agora nos lábios.
Neste momento, um carro se aproximou fazendo cantar os pneus e parou junto ao
meio-fio; era o furgão da polícia. Os dois homens corpulentos
apearam-se e Damiana percebeu que vinham em sua direção. Ela abriu
a boca para falar com o marido alguma coisa mas desistiu com receio e desconfiança
de que algo havia acontecido. Cleber ainda teve tempo para confessar e alertá-la:
- Acho que me meti numa enrascada. Aja naturalmente e, não se esqueça:
não pode me dirigir a palavra; estarei ouvindo a conversa.
- Boa tarde! - disse um dos policiais. Ela estava em pé, segurando a
porta aberta, pronta para sentar-se ao volante. - Sabemos que é a esposa
do Sr. Cleber; poderia prestar-nos algumas declarações?
- Com prazer, o que desejam saber? - O homem relatou a ocorrência e exigiu
a presença do envolvido no dia seguinte, pela manhã, na delegacia,
a fim de prestar depoimento. Cleber achou tudo muito engraçado e chegou
a dar uma risadinha silenciosa mas logo ficou sério com a frase seguinte
do homem da lei.
- Estaremos esperando às dez horas. Contamos com a colaboração.
Avisamos que, se ele não comparecer, ou se tentarem algum truque, seremos
forçados a detê-la como cúmplice. - Dizendo isto, despediu-se,
virando as costas. Entrou na viatura, sentou-se ao lado do outro já no
volante e, com o motor ligado, ajeitou a arma da cintura para poder melhor acomodar-se.
Mal bateu a porta, o carro disparou mais uma vez cantando os pneumáticos.
- Posso saber o que o mocinho andou aprontando desta vez? - disse Damiana já
ao volante e com o veículo em trânsito. Teve que ser duplamente
cautelosa ao fazer com que Cleber embarcasse, dado a aglomeração
ávida e ressabiada que espreitava-lhes os movimentos. Em cidades pequenas
as notícias correm rápido. Com certeza, no dia seguinte, os jornais
estampariam, em suas primeiras páginas, notícias e fotos das confusões
do homem invisível. Saindo do alcance das vistas curiosas que testemunharam
o contratempo, alcançou a cancela e parou para aguardar a passagem de
uma composição. - Não se faça de engraçadinho,
sei que está aí atrás. - Como ele não respondesse,
ela se virou e, óbvio, não viu nada. A barreira amarela ergueu-se
à sua frente. Ela atravessou e, mais adiante, parou sobre uma calçada,
rente a um paredão argamassado e sem brilho que escondia uma olaria desativada.
- Cleber! Cleber! - chamou, ajoelhada em seu banco e errando no ar os braços,
a ver se o tocava. Uma menina, adolescente, sobre uma bicicleta, grande demais
para ela, passou ao lado do carro, beirando a rua, tão preocupada em
manter o equilíbrio que mostrou-se indiferente à esquisitice de
Damiana. Esta, ajeitou-se novamente à direção e ligou o
motor. Ia retornar ao local para pegá-lo de verdade. Antes, porém,
de atrelar a primeira marcha, sentiu duas mãos tapando-lhe os olhos e
lábios invisíveis beijar-lhe uma das faces.
O susto não foi maior do que sua zanga. - Puxa! Isto não se faz,
amor - disse, sacando-lhe as mãos. Cleber desculpou-se com ternura.
- Foi só uma brincadeira para afastar a tensão, diga que estou
perdoado, vai, estou perdoado? Olha como estou triste. - ela olhou para trás
e, ao compreender que era mais uma de suas brincadeiras, aceitou o pedido de
desculpas que veio com outro beijo.
- Agora, fala sério - disse, saindo com o carro - conte-me o que aconteceu.
Você ouviu o policial; estou ficando preocupada.
- Fique tranquila e deixe tudo por minha conta.
- O que vai fazer?
- Simplesmente ir à delegacia e ser interrogado. Não cometi nenhum
crime.
- Causou uma arruaça e a cidade está em polvorosa.
Com efeito, no dia seguinte, as incursões pela região do temido
homem invisível e suas consequências já eram assunto
de destaque em cada esquina e das manchetes de todos os noticiários.
As estações de TV deram prioridade em suas programações
a especiais de esclarecimento e alerta a seus telespectadores. O público
feminino recebeu atenção especial e a polícia redobrou
o seu contingente em bancos, escolas, fábricas e outros locais de investidas
de réprobos e falsários. Cleber, de sua poltrona escarlate, a
tudo assistia fria e zombeteiramente. Damiana, do sofá à sua frente,
passava no cabelo, ainda molhado do banho matinal, um pente de plástico
cor-de-rosa, agarrando com força o seu comprido cabo. A água,
respingona, acumulava-se-lhe nas costas, sobre o roupão adamascado, deixando
um vestígio úmido que aos poucos ia crescendo e alargando-se.
Uma caneca, com asa de metal, ainda com um resto de café, pousou na mesinha
com tampa de vidro à sua frente. Depois foi a vez do maço de cigarros
oscilar em direção a Cleber. Como não conseguia ver-lhe
as expressões faciais, Damiana precisou saber de viva voz o que achava
da situação.
- É simplesmente ridículo - respondeu, acendendo o cigarro. Estão
agindo como se estivessem lidando com um criminoso.
- O que andou fazendo no passado aqui nesta cidade?
- Nada! Não fiz nada!
- Cleber, - disse a mulher desprendendo fiapos ruivos de seu cabelo - não
sou nenhuma ignorante; ouvi muito bem quando mencionaram um assalto de que tomou
parte. Sem falar em depoimentos de ex-amantes. Quer que enumere mais? - completou,
irritada. O isqueiro veio para cima da mesa e assentou-se. Jatos de fumaça
expelidos nervosamente davam conta da alteração de humor de quem
os provocava. O cigarro subiu alguns centímetros e começou a balançar
denotando o nervosismo de Cleber.
- Não precisa se aborrecer, - ela disse ao sentir que ele se levantara
- só quero o seu bem
- Eu sei disso. Ouça: o meu passado não importa mais, estou regenerado.
- Como vou saber? Não estou vendo. - Voltou a passar sobre os cabelos
o pente com indiferença.
- Muito bem. - Cleber sentou-se; ela soube pelo cigarro que voltou à
posição anterior e por uma última baforada seguida da extinção,
no cinzeiro de vidro sobre a mesa, da guimba pressionada pela mão dele.
Contou sua história de vida desde o dia em que viera para aquela cidade.
Falou da má influência sofrida quando, antes de completar a maioridade,
decidiu abandonar o lar e a cidade natal. - Já ia adentrando na criminalidade
- disse. - Meti-me numa quadrilha, sim, e cheguei a participar de dois assaltos.
Consegui sair ileso e com minha parte em dinheiro, muito dinheiro. Mas isso
em outra cidade, em outro estado, por isso vim para cá.
Aos dezessete anos, na época em que cometeu os crimes, portanto menor
de idade, Cleber foi parar dentro de uma instituição. Aos dezoito,
tomou parte em uma rebelião seguida de fuga. Recapturado dois dias depois,
foi conduzido à prisão comum, com julgamento marcado.
- E o dinheiro, o que foi feito do dinheiro? - Damiana colocou o pente sobre
a mesa ao lado do cinzeiro e pegou no maço de cigarros e no isqueiro.
- Aí é que está; foi a minha salvação.
- Não compreendo.
- Vai compreender. Fiz um trato com meu advogado. Tinha toda a grana muito bem
escondida. Na verdade, usara dela um percentual para pagar-lhe os honorários.
Fui a julgamento e condenado a doze anos em regime fechado; já havia
cumprido três.
- E qual fora o trato? - ela perguntou, pousando o isqueiro e soltando pelo
nariz a fumaça.
- Muito simples. Se entregasse o dinheiro tirar-me-ia detrás das grades
em questão de semanas. Exigi minha liberdade primeiro. Ele cumpriu a
parte dele e eu a minha; o homem era poderoso e influente e sei que não
resistiria a uma bolada.
- Entregou-lhe tudo?
- Também não sou tolinho, não é, meu amor? Fiquei
com uma boa parte. Disse que já havia gasto, não sei se acreditou,
nem me importo. Só sei que em quinze dias era um homem livre.
- E regenerado - disse a mulher com um sorriso.
- Mas é evidente; hoje sou outro homem, você sabe disso. Porém,
e esta casa, e a nossa lua de mel maravilhosa, e aquela limusine, de onde acha
que vieram? Não seria como caminhoneiro assalariado. Damiana sorriu novamente.
- Mas, amor, você comprou a lei!
- Não sei na verdade quem comprou quem. Estou livre; bem ou mal, cumpri
a pena. Contudo não devo mais nada a ninguém. Já fazem
mais de vinte anos e o crime já prescreveu.
Ás dez horas e cinco minutos daquela mesma manhã cinzenta e nebulosa,
Damiana encostou, com o sedan ocreoso de Cleber, à porta da delegacia.
Como parte da conversa que haviam tido em casa, o casal resolvera assumir de
vez o problema. Não mais furtar-se-iam aos fatos. Sendo assim, quando
ela abriu sua porta e apeou-se, do outro lado o mesmo aconteceu, mas de outra
forma. Pairou no ar uma vestimenta masculina composta de camisa branca, de botões,
e calça bege, cobrindo um par de meias que se metiam em sapatos de cor
marrom; o espanto foi geral. Muitos, ao verem aquilo, pararam na calçada,
interrompendo suas caminhadas. Através da transparência envidraçada
das duas portas de vaivém da repartição policial via-se,
estuporado, não só o representante máximo da lei ali dentro,
mas todos os seus subalternos. Ao lado, uma senhora gorda falava em um telefone
público vermelho, instalado na parede à entrada de uma padaria.
Vendo o fenômeno, seu sorriso e simpatia desvaneceram-se por completo
e ela largou o fone, muda e espantadiça.
Entraram. O delegado, barbudo e engravatado, com uma camisa social azulada e
ostensivo par de abotoaduras douradas, recebeu-os de pé, à porta
de sua saleta. - Podem voltar ao trabalho - disse, dirigindo-se aos funcionários
ainda meio que boquiabertos com o ineditismo do espetáculo. Todos obedeceram
e ele virou-se, empurrando a maçaneta; a porta escancarou-se e o casal
entrou. Damiana sentou-se em frente a ele, já atrás da mesa cheia
de papéis e documentos. Cruzou as pernas morenas sob uma saia justa mas
discreta. A vestimenta de Cleber pairou na outra cadeira ao lado dela. O delegado
olhou através do vidro e notou a aproximação do escrivão.
Ele entrou sem bater e entregou ao outro uma pasta de documentos. O oficial
saiu e ele abriu a pasta para examinar autos e termos processuais com declarações
exaradas contra Cleber que comprometeram sua vida pregressa. Após olhar
por uns dois minutos, fechou-a e pegou em duas folhas de papel presas por um
clipe de metal que continham o relatório da última ocorrência.
Quanto ao processo antigo, tratava-se de um fato consumado, prescrito, a julgar
pelos ditames da lei. E o pagamento de fiança livraria o réu de
uma nova ação judicial, tendo, se por um lado, um abrandamento
da punição, por outro, a reincidência do crime. Os depoimentos
das vítimas também seriam sanados em forma de paga dos prejuízos
pertinentes. Cleber poderia, se assim desejasse, alegar inocência, dado
a falta de provas mas, sabiamente, preferiu não optar por este caminho;
seu passado era o seu maior delator. Contratou advogado, pagou todos os prejuízos
e a dor do bolso parece ter-lhe doído também na consciência,
pois passou a fazer de tudo para fugir das encrencas e dos atropelos.
Conseguiu da empresa uma licença para tratar-se e buscar solução
para o problema que já ia para lá de um mês; mas nada funcionou.
Ficava a maior parte do tempo dentro de casa. Lia, assistia televisão;
pouco agora se falava sobre ele. Para afastarem a rotina, Damiana arranjou um
emprego. A noite, matavam a saudade e riam muitas vezes das histórias
pitorescas e mordazes que ela trazia da empresa de moda íntima feminina
em que passou a trabalhar. Quando saía, Cleber geralmente fazia-o só;
queria despertar a mínima atenção possível. Com
a mulher ia, ela ao volante, à casa de praia que possuíam a uma
hora e meia de viagem. Faziam isso quase todo fim de semana. Porém, a
rotina de apanhá-la, nu e a pé, aos sábados, em nada mudou.
Numa terça-feira pela manhã, quando Damiana contornava a pracinha
do chafariz, tendo acabado de sair de casa para se dirigir ao trabalho, seu
carro foi abalroado por uma viatura policial; o mesmo furgão azul-marinho
tarjado de branco, com os mesmos homens, atarracados e de uniformes. Obrigaram-na
a fazer uma manobra e acompanhá-los. Surpresa, viu-os parar em frente
a sua própria casa; na certa procuravam por Cleber. Ela estacionou logo
atrás e, antes mesmo de desligar o motor, um dos homens, o que estava
ao lado do motorista, já havia desembarcado e encontrava-se agora ao
lado de sua porta.
- Bom dia - Damiana não respondeu. - Temos uma ordem de prisão
contra o seu marido. Queira chamá-lo, por favor. - Ela desligou, pediu
licença e desceu do carro. O barulho dos motores trouxera Cleber até
a varanda, vindo de trás da casa onde regava as plantas do jardim. Como
nada trajava, não era percebido. Assim, avançou até o portão
e, do lado de dentro, ouvia a conversa.
- O homem explicou a razão da ordem. Houvera, sábado de madrugada,
um arrombamento seguido de assalto, no banco principal da cidade. Conseguiram
penetrar no interior da agência e, pé ante pé, usando maçarico
e alavancas, abrir o cofre carregando uma fortuna. Como o casal havia chegado
de sua casa de praia no domingo à noite, não dera pela notícia,
diferentemente do resto da cidade que estava em alerta. Embora não houvesse
provas suficientes, Cleber era considerado fortíssimo suspeito e precisava
ser detido até que apresentasse um álibi ou outro convincente
meio de defesa.
- Não me diga que não sabem do fato? - perguntou o policial a
Damiana que sentiu, de leve, um toque em seu ombro. Cleber andara rente ao muro
pelo lado de dentro e conseguiu alcançá-la esticando o braço.
Ela disfarçou e eles nada perceberam.
- Chegamos ontem à noite de viagem; meu marido é inocente.
- Terão que provar isso ao delegado. No momento tenho que cumprir o mandado;
chame-o, por favor.
Cleber apresentou-se. Sua rapidez de pensamento lhe mostrou que era o melhor
que tinha a fazer. Portanto, sem temor e sem querer esconder nada, nem a si
próprio, vestiu uma roupa que flutuou até o seu carro; Damiana
partiu, seguindo o furgão até a delegacia. A mesma comoção
pública no caminho do homem invisível. Conduzido a delegacia,
foi metido em uma cela única em prisão temporária. Na segunda
visita de Damiana, combinou com ela uma fuga. Preso há quatro dias, pagar
por um crime que não cometera não era com ele. Escapar não
representou problema. Nada mais simples. No dia seguinte à visita, a
mulher aguardava-o na saída da cidade; iriam para a casa de praia até
que as coisas se acalmassem. Fugiu na hora do banho, despistando o carcereiro
que, quando desconfiou do chuveiro que nunca se fechava já era tarde.
Saiu à barba dele e de todos. Quando perceberam já estava longe.
Por conta de um outro crime, porém, caçaram e prenderam o bando
que confessou o repercutido assalto ao banco. Inocentado, Cleber retorna e novamente
toca a sua vida.
Segue a rotina. Voltando os dois da academia em uma manhã chuvosa de
sábado, Damiana que já não mais se importava com os olhares
de mofa e admiração das outras pessoas, abraçava, ao deixar
o Shopping Center, um corpo nu e invisível e protegia-se sob um guarda-chuva
preto que andava sozinho no ar. Atravessaram uma rua e foram para a rodoviária.
Queriam almoçar em seu restaurante favorito. Ela, ainda em sua calça
azul escura de nylon colada ao corpo, exibia suas formas bonitas e torneadas.
Almoçaram e conversaram como se estivessem em sua própria casa.
Algumas pessoas, sentadas em mesas próximas, ouviam a voz de Cleber e
outras ainda o cumprimentavam, chegando a apertar sua mão invisível.
Por certo havia mulheres que, sabendo-o nu, torciam para que ele voltasse, ali
mesmo, ao normal.
Saindo dali, já com a chuva amenizada e transformada em garoa, tomaram
o caminho rotineiro de volta ao lar. Cruzaram a rodovia e foram em direção
à estrada de ferro. Ao saírem, porém, do beco alamedado
entre as vilas de casas, ocorreu outro fenômeno, o qual, tanto Cleber
quanto Damiana, nunca mais iriam esquecer, como não se esqueciam do primeiro,
passado ali naquele mesmo descampado. Não carece detalhar o que se passou.
O mesmo tipo de raio, o mesmo estrondo, o guarda-chuva voando pelos ares e o
espanto da jovem e bela mulher. Só que, e para a felicidade de ambos,
mormente dela, o Cleber invisível deixou de existir. Deu lugar ao homem
alto, forte e moreno que ela amava. Ato contínuo, ela o agarrou, enchendo-o
de beijos, desgrenhando-lhe os cabelos pretos e molhados. Agarrou-o, tratando
de levar para casa o homem que queria ver dos pés à cabeça
enquanto faria amor com ele.
O domingo foi todo alegria e emoção, com o casal a sorrir mostrando-se
por inteiro com Cleber ao volante. Rodaram pela cidade vazia de atividades,
mas repleta de interesse pela novidade. Pararam na praça e muito conversaram
com amigos e conhecidos. No dia seguinte, os jornais e outros meios muito teriam
para contar e faturar com as aventuras do homem visível, ou invisível,
como queiram.