A Garganta da Serpente
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Infanticídio

(Edmilson Sanches)

Pensei em bater - toc toc. Toc toc toc. Silêncio. Olhei pela fechadura. Uma enorme angústia entortou-se-me nos peitos. Subiu pra garganta. Virou pomo-de-adão. Fiquei cacundo pra olhar de novo pelo buraco. Aí veio a solidão devagarzinho, pelo lado de dentro, e colocou a chave. Tapou minha visão. Mas tardiamente: eu já vira, lá dentro, qualquer coisa estirada, imóvel, sobre o catre.

Fiquei ali. Encostado à porta. Paradão. Bruto bicho estático. Enorme inerme. E a visão: lá dentro um corpo. Morto. E o passado: todinho na cachola. Esperando a vez de ser lembrado. E o presente? Apenas um homem de pasta. Numa porta rústica. Buscando a si mesmo criança. Procurando sua história nas origens. No baixo. Numa casa de favela. Donde fizera projetos para o futuro. Futuro realidade. Futuro passado. E o barraco de madeira lascada? Imutável. Conservado pelos vizinhos amigos. Fechado. Intacto. Mas alguém houvera se descuidado (eu mesmo --- concluí depois): lá dentro, sobre a cama tosca, estava, meio menino e torto, algo morto. Um corpo. Com ele e ali, também um passado, morto tornado, agora lembrado. Mas não ressuscitado.

Suor na testa. Tremura nas pernas. Que fazer? Ir-se embora. Se mandar dali. Deixar o tempo para trás, rolando como bosta n'água. Qualquer tentativa de revivê-lo poderia ser inútil. E talvez ainda me levassem preso.

Acusado de ter matado minha própria infância.

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